Prisco chegou em prantos ao portão do cemitério. Havia deixado o carro num estacionamento ali defronte e seguira a pé o curto trecho até a entrada, percurso deserto naquela hora. Recordou-se de que incompreensivelmente dormira à tarde após o falecimento da menina, não entendendo a razão de não se haver envolvido no triste episódio. Agora imaginava o desespero da mãe ao ver a filha transida de dor, culpando-se pela tragédia.
Entrou na alameda principal, em cujo término se situava o prédio destinado aos velórios. Caminhou uns passos mas se sentiu quase a desfalecer, precisando sentar-se sobre a lápide do túmulo mais próximo.
Colocou a cabeça entre as pernas, fazendo o sangue descer à cabeça. Não queria ceder ao abatimento. Foi quando percebeu aproximar-se dele multidão de espíritos, como em procissão. Vinham, mostravam as fisionomias e afastavam-se, sem transmitir-lhe nenhuma mensagem, como se fossem transeuntes em movimentada via pública.
Não se apavorou, acabando até por imaginar-se cumprimentando cada um deles.
Quanto tempo ficou, não foi capaz de definir. Pelo volume de entidades que se apresentaram, tinha a idéia de que permanecera mais de hora. Quis erguer-se e conseguiu com facilidade, já que a tontura havia passado completamente. O relógio demonstrou-lhe que ficara ali, no máximo, dois minutos.
“Será que se tratou dos espíritos das pessoas aqui enterradas?”
Perguntou e de imediato lhe veio a refutação à mente, definindo a impropriedade da conjectura pela vaga noção que lembrou contida nas observações de Mirtes, qual seja, a de que os espíritos evoluem, indo e vindo por toda a parte na erraticidade. Seria o cemitério uma prisão? Se fosse, seria pura arbitrariedade de Deus, o que chocaria com a mais elementar idéia de justiça.
O prédio estava iluminado por “spots” de luz clara, de modo que foi fácil divisar a certa distância que os pais o esperavam à entrada.
Adiantou-se a mãe a recebê-lo, abraçando-o demoradamente. Finalmente o soltou mas não deixou de perguntar-lhe, olhando-o fixamente nos olhos:
— Você realmente está bem? A vermelhidão de sua vista e esse inchaço das pálpebras estão a indicar que você esteve chorando. Hoje à tarde, o culpado foi o sol. À noite, o luar não vai ser a sua desculpa. Se você não reagir, não começar a pensar em que a vida continua, vai acabar ficando doente e as doenças provocadas pelos sofrimentos são terríveis. Você deve saber disso melhor do que eu.
— Mãe, você tem a razão no que está dizendo. Tanto eu compreendi o que disse, que estou vindo de um centro espírita, onde ouvi falar em que os espíritos são as almas das pessoas que morreram e que elas continuam existindo, permanecendo junto a nós.
— A doutrina espírita é boa para consolar os que perdem parentes e amigos queridos. A religião católica envia as almas para o purgatório, em geral.; raramente ao paraíso. Algumas, as dos criminosos e pessoas maldosas, em pecado mortal, caem diretamente no inferno, de onde não vão sair nunca mais, nem para ouvir o pronunciamento de Deus no dia do juízo.
Prisco não atinava aonde a mãe queria chegar. Aguardou que ela expusesse livremente as idéias, para extrair-lhes o objetivo. Mas Dona Maria se conteve, convidando-o a entrar:
— A mãe da menina precisou ser levada embora. Deram-lhe um sedativo muito forte, porque ela não parava de gritar. Todo o mundo tentou acalmá-la, mas foi impossível. O marido não conseguiu se aproximar dela. Os tios da menina disseram que ele falava em acabar com a vida, ameaçando também a esposa, afirmando que ela fora culpada de tudo. Agora o pior já passou. As pessoas presentes são vizinhos e colegas do casal. Os parentes vão voltar de manhã para o enterro.
Vendo que a velha não se abria, Prisco não se conteve:
— Por que, em lugar de vocês irem ao centro espírita, me pediram para que eu os viesse buscar. Fossem de táxi.
O pai quis auxiliar:
— Existe uma pessoa que...
Foi interrompido pela mulher, que não queria revelar a intenção com que o chamara:
— Eu achei que você bem podia estar precisando de um motivo para retirar-se, porque essas reuniões custam para acabar e o pessoal, com certeza, ia querer conversar com você a respeito de muitas coisas. Quis evitar um aborrecimento.
— Dona Maria...
— Até você, filho?!...
— Quem é essa pessoa que o pai ia mencionar?
— É uma moça...
— Não me venha com essa. Não é muito cedo pra bancar a casamenteira?
Joaquim interferiu:
— Ouça o que a sua mãe tem a dizer.
— Janete é o nome dela.
— Se você me chamou aqui pra isso, perdeu o seu e o meu tempo. Eu nem vou entrar aí. Vou esperar vocês no portão.
Disse e saiu, deixando os velhos sem saber como reagir.
Ainda ouviu a mãe dizer:
— Nós já vamos alcançá-lo. Só vamos nos despedir das pessoas.
No portão principal, Prisco ficou a observar os carros passando, distraindo-se com a idéia de que poderiam também estar passando veículos a conduzir espíritos, já que o mundo do lado de lá estava concretizando-se em sua mente.
“Será que vou encontrar nos livros de Kardec uma descrição do plano espiritual?”
Surpreendeu-lhe a questão, uma vez que se havia determinado a deixar as obras de lado.
Olhava para a rua. Não percebeu, portanto, que os pais chegaram acompanhados de Janete.
Quando se voltou, deparou-se com uma senhora jovem, bem vestida, sem maquiagem, cabelos loiros presos ao lado, escorridos nos ombros. Os olhos translúcidos lembravam-lhe vagamente alguém de seu passado.
Janete comentou com Dona Maria:
— Eu não lhe disse que ele não ia me reconhecer? Nós éramos crianças, quando freqüentamos a escola juntos. Mas eu posso afirmar que não iria deixar de reconhecê-lo.
Prisco apenas estendeu o mão, desculpando-se:
— Você me perdoe, mas não estou lembrado. Parece que seu olhar não me é estranho. Contudo, o seu nome não repercute na minha memória.
Dona Maria aparteou:
— Nós não jantamos ainda. Estamos com fome. Você nos leva a uma cantina?
Prisco percebeu que a mãe não desistira de apanhá-lo na armadilha. Mas não pôde fugir à solicitação.
— Vamos ao “Cicchetto di Cristallo”. Você conhece essa pizzaria?
Estabelecia-se o relacionamento. Prisco queria tirar a má impressão que deixara. Depois, precisava distrair-se...