Quando Prisco ligou para Alfredinho, ficou sabendo que a célebre cantora e bailarina Gertrudes, “La Flor de España”, estava requisitando seus serviços em “tournée” pelas Américas. Era oportunidade que não podia desperdiçar. Sendo assim, marcou encontro para aquela manhã mesmo, afiançando que assinaria o contrato sem condições.
“Creio, pensou, que executar meu violão profissionalmente vai me absorver ainda mais do que ficar cantando por saudade e por egoísmo.”
Refletiu sobre ser por egoísmo, concluindo:
“É claro que é. Apesar de haver multidão de seres a ouvir, com certeza eles se deixam impregnar muito mais pela tristeza de meus sentimentos do que pelo virtuosismo técnico das interpretações.”
Pensou e de imediato imergiu numa série de ondas de vibrações mentais, como se recebesse o impacto de comunicações mediúnicas, já que não tinha como atribuir a rapidez das idéias ao próprio cérebro. Foi assim que, sem poder controlar a enxurrada de pensamentos, estabeleceu que o princípio que havia enunciado era de quem conhecesse profundamente a teoria espírita, uma vez que ele jamais ouvira alguém dizer que os espíritos poderiam admirar a “performance” humana, quando deveriam possuir a seu alcance artistas muito mais perfeitos, entoando canções e tangendo instrumentos apropriados ao seu meio ambiente. Também lhe veio ao limiar do cérebro a intuição de que haveria aqueles nutrindo aspirações carnais, fanáticos pela expressão do cancioneiro andaluz, que se empolgariam com ouvi-lo, ainda que movido pela dor, pela desesperação, pela estupidez em acreditar que iria, esbanjando talento, alcançar amenizar a sensação de perda dos entes queridos.
Preparou-se automaticamente para sair e, quando deu de si, chegava ao estúdio.
Gertrudes estava uma fera. Após soltar inúmeros impropérios, dirigiu-se ao violonista com o empenho das almas ardentes, dizendo-lhe que ele seria a salvação dela e de seu malfadado empresário, o qual havia deixado para assumir compromisso com a orquestra no Brasil, quando ela estava já de volta à Espanha, desencontrando-se no caminho.
— Meu querido, tu vais ter de fazer as vezes da banda inteira.
— Pode falar em espanhol, que eu entendo perfeitamente.
— E de que terão servido os doze anos que passei em Portugal? Eu até estou a aprender certos modismos e trejeitos brasileiros, sem falar na ginga das mulatas que quiseram pôr no palco comigo. Isto aqui está um banzé, uma “zorra”, uma baderna, com perdão da memória da patrícia.
— Posso ter acesso ao repertório?
— Fica à vontade. Eu só quero ter a certeza de que tu vais dar conta do recado.
Prisco tirou da capa a guitarra que havia levado, dedilhou-a para sentir-lhe a afinação, inquiriu se estava de acordo com o timbre da voz da cantora e, à vista da concordância, demonstrou conhecer três partituras que imaginava constar do rol das apresentações.
Enquanto tocava para aquele público seleto, percebeu que nunca mais iria desempenhar seu instrumento sem conjeturar em que estaria sendo ouvido e observado pelas criaturas da espiritualidade. Não se perturbou, contudo.; ao contrário, esmerou-se ainda mais, enquanto alimentava a esperança de que poderiam as entidades estarem amparando-o.
Quando terminou, Gertrudes o abraçou demoradamente, enquanto os demais o aplaudiram com entusiasmo.
Alfredinho chegou mesmo a observar:
— Você adquiriu um tom apaixonado que nunca havia demonstrado antes. Tem praticado. Não negue.
Prisco ficou meio sem jeito, desejando fazer segredo dos recitais particulares. Por isso, arrematou:
— Tenho feito o que sei fazer melhor. Só isso. Se tiver sido aprovado, como parece que fui, vamos trabalhar.
De fato, salvo ligeira interrupção para um lanche, toda a tarde foi dedicada aos ensaios. Com as marcações decoradas, às cinco horas, solicitou permissão para descansar, já que, naquela mesma noite, Gertrudes estrearia numa sala de espetáculos do circuito turístico da cidade.
Em casa, Prisco fez várias ligações, avisando os pais e convidando Janete para a apresentação. Era o único convite a que tivera direito, aliás, por instante pedido dele.
— Posso fazer-me acompanhar por minha irmã? — pediu-lhe Janete.
— Faço questão de sua presença. Se esse for o preço que terei de pagar...
— Não seja mal educado. Eu bem que estava pretendendo pagar o ingresso dela.
— Desculpe o mal-entendido. Estava só fazendo uma brincadeira.
— E eu não?!...
— De qualquer modo, minha cara, eu acho que não existem mais ingressos à venda. Quando chegar, se houver problema que a minha recomendação na entrada não resolver, peça para falar comigo. É bom chegar com pelo menos uma hora de antecedência.
O mais foram tratativas de encontro no “foyer” do teatro, onde Prisco iria buscá-las para levá-las a conhecer a diva espanhola e, talvez, ao tradicional passeio festivo da glutonaria após o espetáculo. Era um programa que avançaria pela madrugada.