Mirtes recebeu os amigos na companhia do marido e de mais três senhores membros da diretoria do centro espírita. Advertidos do tema que deveriam elucidar, compareceram munidos das obras de Kardec devidamente assinaladas.
Após as apresentações, Mirtes encaminhou o diálogo, solicitando a Prisco que enunciasse o tema que o havia levado até lá.
— A bem da verdade — começou ele —, estive pensando em que as coisas que me aconteceram na vida têm produzido saudável reação em minha mente. No início, quando perdi minha esposa e a filhinha recém-nascida, tudo pareceu desabar ao meu redor. Restou-me, contudo, a minha arte, que, por incrível que pareça, acabou por me reconfortar, dado que alcancei sucesso razoável nas apresentações públicas, valendo-me excelente contrato. Agora me vejo alijado também do meu ganha-pão, pelo menos por algum tempo, embora esteja temeroso de perder a habilidade com que definia as notas do meu instrumento. Sem ter muito o que fazer, porque meus pais cuidam de mim com muito carinho e competência, desejei interpretar os acontecimentos à luz da filosofia espírita. Como não tenho muita leitura (Mirtes poderá dizer-lhes quais obras me emprestou), achei melhor ouvir pessoas a quem o tema da predestinação deve ter provocado muitos momentos de reflexão, debruçando-se sobre as principais obras.
Todos ouviram com muita atenção, admirando-se da facilidade com que Prisco expunha as idéias. A Janete, porém, pareceu que poderia simplificar um pouco:
— O que nós estamos querendo saber é se existem entidades que provocam o aparecimento de ocasiões para sermos testados, causando, por exemplo, a morte de parturiente e da filha, primeiro porque elas se encarnaram para viver até aquele momento e, segundo, porque o marido e pai estava precisando sofrer tais desditas devido à herança cármica trazida de existências anteriores.
Mirtes tentou entender o que diziam:
— Vocês estão sugerindo que uma ordem de espíritos superiores conduz o destino humano, conforme as necessidades de cada um, colocando obstáculos para serem superados através da compreensão da própria natureza perecível e transitória da passagem pelo orbe terráqueo?
Janete foi quem respondeu:
— Ouvimos dizer que somos nós mesmos que escolhemos as provações da vida, antes de encarnar. Conscientes dos crimes pretéritos, enfeixamos uma série de dificuldades a serem vencidas, estabelecendo o nosso roteiro, que entregamos aos guias ou benfeitores para que cumpram o nosso desejo.
Prisco acrescentou:
— Vejam bem que a nossa dúvida surgiu do fato de que seria preciso reunir numa só família muitas pessoas do mesmo modo endividadas, porque as perdas e sofrimentos são de todos. Eu perdi a esposa e a filha. Houve quem perdesse a filha e a neta. Outros perderam a irmã e a sobrinha. E assim por diante. É claro que uns são mais atingidos e outros menos. Mas ninguém escapa. Se a gente for pensar seriamente no que disse Jesus a respeito do amor a Deus e ao próximo, teremos de considerar que este mundo de expiações exclui a felicidade, tantas são as desgraças e tragédias que abalam a humanidade a cada instante. Cada casamento, cada nascimento, cada pequenino usufruir de bens materiais e morais, logo é contrabalançado por grandes calamidades coletivas. Os jornais e a televisão estão repletos de notícias desse teor.
Os que ouviam as explicações e que foram chamados a opinar ardiam por dar a sua contribuição, muito embora julgassem que ainda precisariam de mais alguns esclarecimentos. Foi o marido de Mirtes, Azevedo, quem primeiro se pronunciou, perguntando:
— Vamos colocar as coisas no seguinte ponto: você, Janete, não conhecia Prisco, quando aconteceram os decessos citados. Você chega a compreender toda a extensão dos sofrimentos dele?
— Entendo perfeitamente. Não sei se Mirtes já lhes contou, mas eu me dedico a comparecer, nos velórios, perante as famílias enlutadas, buscando amenizar as dores das mortes das pessoas queridas. Tenho visto reações desesperadoras como também aceitação quase natural dos fatos. Cada pessoa é uma pessoa, mas não existe ninguém que permaneça completamente alheia ao processo de estresse que se instala a partir da desencarnação. Se você quer saber se sinto o desconforto da tristeza que invadiu o coração de Prisco, pode ter a certeza disso. Sinto também um profundo mal-estar ao vê-lo ferido e impedido de atuar, ainda mais porque foi minha irmã quem se atreveu a levar o namorado agressor para dentro da casa acolhedora do nosso amigo.
Sem se deixar enlear pelo longo desfilar de argumentos, Azevedo voltou-se para Prisco e perguntou-lhe:
— Você deve conhecer o episódio em que Jesus cura a mão ressequida de uma pessoa. Acha possível, segundo o ponto de vista que expuseram aqui, que o roteiro estabelecido antes do nascimento possa sofrer uma alteração de tal amplitude, a ponto de se suprimir de vez o empecilho físico que atormenta a criatura? Falando no seu caso, acha você que a ciência tem recursos para curar, definitivamente, os ferimentos que sofreu, devolvendo-lhe completamente o uso da mão, para voltar a desempenhar a sua técnica de “virtuose”?
Após meditar uns instantes, Prisco respondeu:
— Na verdade, se atribuirmos a cura dos meus males físicos aos homens, deixamos de contar com a ajuda divina, porque não se irá caracterizar um milagre. Do jeito que você expôs a questão, sou levado a crer que todo o poder se concentra nas mãos das criaturas. Mesmo a intervenção de Jesus teria sido absolutamente natural, utilizando-se ele de meios, de processos e de recursos próprios do meio ambiente, através de dons que possuía e que transferia ao paciente quando dizia a frase: “Sua fé o salvou.” Vamos supor que os médicos não tivessem interferido cirurgicamente em meu punho. Vamos imaginar que tivessem apenas engessado, crentes de que os ossos estavam no lugar, o que teriam comprovado por meio dos raios X. Aí teriam deixado a natureza seguir seu curso. Em algum tempo, estaria curado. Neste caso, seria como dar um crédito de confiança ao organismo, este sim programado para refazer-se. Se fosse possível acelerar o processo de restauração, teríamos a realização do feito de Jesus, que deve ter usado um meio qualquer de concentrar a energia vital no local afetado pela doença do paralítico. Vocês devem ter a explicação científica e os nomes adequados, o que me falta. Em todo o caso, os médicos já me avisaram que, assim que o gesso for retirado, vou precisar passar por tratamento fisioterápico. Eis a parte para mim mais misteriosa das chamadas curas praticadas por Jesus, ou seja, o uso dos músculos do setor que havia ficado inativo por muito tempo. Nós lemos nos evangelhos que os cegos viam, que os coxos andavam etc., mas não há nenhuma referência à necessária adaptação à realidade que era nova para eles. Parece mais um conto de fadas do que o relato verídico de fatos ocorridos com pessoas como nós. Desconfio muito desse poder de Jesus, porque, por mais espetaculares que sejam os avanços científicos no campo da medicina, ainda resta muito para ser descoberto. Vejam bem, eu não estou afirmando que Jesus não tenha curado nem realizado atos que a compreensão humana um dia venha a admitir pela demonstração. O que estou tentando dizer é que Jesus não precisava ter feito nada disso para se constituir naquele ser iluminado que nos ensinou a amar o próximo como a nós mesmos, não de maneira filosófica e distante, mas comprovando com a entrega de sua própria vida, conforme os relatos dos evangelistas. O que mesmo eu deveria responder?
Janete lembrou-o:
— Azevedo lhe perguntou se o carma escolhido pela pessoa antes de encarnar-se poderia sofrer alterações posteriores. Devo dizer que utilizei de propósito a palavra “carma”, de que os espíritas não gostam, e que sei que se trata de uma genérica programação de vida. “Carma”, se bem compreendo, seria algo preestabelecido por força das causas. Os espíritas preferem que tais causas não motivem diretamente os acontecimentos, mas a elaboração do programa que os encarnados irão cumprir. É isso?
João, um dos calados, pediu licença levantando a mão e disse:
— Vocês dois vão desculpar-me, mas não estou entendendo o porquê de nos terem procurado, haja vista a facilidade com que discorrem a respeito de temas dos mais controvertidos no movimento espírita. Será que vieram apenas confirmar as suas teorias? Estou perguntando com o coração na mão, uma vez que o que menos desejaria neste instante seria ofendê-los.
Janete foi quem explicou:
— É perfeitamente justa essa sua observação. Nós discutimos a respeito mas não fomos muito longe. Entretanto, como isso aconteceu há alguns dias atrás, com certeza o nosso inconsciente trabalhou no sentido de nos preparar para as possíveis teses que iríamos ouvir. Neste caso, falo em inconsciente, mas estou perfeitamente cônscia de que é nesse campo que atuam os espíritos protetores, por meio de sugestões íntimas a que damos o nome de “intuição”. Também temos de considerar a inteligência com que Azevedo colocou a questão, levando-nos a pensar em certos aspectos que não havíamos ainda considerado.
Estimulado pelo atrevimento do companheiro, Manuel também interferiu:
— Eu trouxe alguns textos das obras de Kardec, para apoio do que iria dizer. Como estou vendo que os companheiros têm muita facilidade intelectual, vou passar-lhes as minhas anotações e vocês poderão estudar os tópicos assinalados com mais calma e vagar. Como tenho apenas uma cópia, vocês vão me permitir xerocar aqui mesmo no centro. Daqui a pouco estarei de volta.
Vadão segurou o parceiro pelo braço, entregando-lhe as suas próprias anotações:
— Tire cópias também das minhas. Gostei de sua iniciativa. Enquanto isso, vou propor um problema diferente, qual seja: a partir do fato de que a dor material repercute moralmente e de que a dor moral traz conseqüências físicas, como encarar o universo espiritual como co-autor das desgraças humanas (no caso em pauta) ou das bem-aventuranças (no caso de muita gente que passa pela vida em branca nuvem, ou seja, sem perceber o bulício que existe no âmago das coisas)? Vou deixar mais claro meu pensamento: somente numa pequena fração da história da humanidade é que se desconfiou da existência dos átomos e, mais recentemente, das partículas subatômicas. Quanta gente viveu e morreu na ignorância desses fenômenos hoje corriqueiros. Que digo eu?! Quanta gente está passando sem conhecer nada a respeito. Nem por isso, contudo, viveram menos intensamente. Falta-lhes apurar os conhecimentos científicos. O que eu quero dizer é que é impossível para as pessoas se assenhorearem de toda a sabedoria já existente entre os encarnados. Que se dirá, então, quando se trata de investigar o que os espíritos conhecem? Para mim, qualquer conclusão a que possamos chegar, mesmo com a ajuda da codificação e de todos os textos espíritas que se seguiram, sempre haverá de ser parcial e incompleta. E isto está registrado na doutrina, quando afirma que uma das principais leis é a da evolução. Ora, se nossos espíritos vão evoluir, irão fazê-lo em todos os ramos do saber universal, tanto no aspecto cognitivo, quanto no sensitivo. Em suma, vim preparado para dizer-lhes que não queiram entender tudo. Saio daqui, porém, crente de que vocês não vão contentar-se com meu diagnóstico simplista. Tenho dito.
— E muito bem dito, confirmou Mirtes. Espero que as suas dúvidas tenham merecido uma resposta condizente com seu interesse. Quanto à atuação dos guias de cada um e dos guardiães superiores, chamados por Kardec de “anjos guardiães”, não dá para concentrar as informações que possuímos numa simples conversação. Este é um mal do espiritismo que se pratica nos centros: a gente está sempre olhando para as horas. E não pode ser diferente, porque este assunto demandaria muitos dias de estudo e de debate. Como este existem muitos outros, para os quais vale a recomendação das leituras. Duvido que, em qualquer religião ou sistema filosófico, as lições sejam dadas de maneira completa e cabal em uma única sessão. Quando se trata de aprender a viver, então, muitas vezes encaminhamos para a leitura das entrelinhas, porque chega um momento em que a inteligência de cada um é que irá determinar o grau do aprendizado possível.
Voltou Manuel com os impressos, que distribuiu mesmo para os velhos amigos, e o grupo se desfez, cada qual levando consigo impressões diferenciadas de cada manifestação individual. O conhecimento fora inseminado na mente.; restava agora a gestação, até que viesse à luz da convicção, sob forma de atitudes e procedimentos.