Um mês depois, quando Janete já contribuía para os serviços domésticos, Prisco experimentou fechar-se em seu estúdio, no horário habitual dos apanhados mediúnicos, a ver se repetiria o feito, concentrando-se no trabalho. Imediatamente, sentiu intenso empuxo intelectual, como se alguém se lhe assenhoreasse da vontade, pondo-se a tanger o instrumento de forma bastante diferente de seu estilo.
Quando voltou a si do transe, não sabia quanto tempo estivera sob o domínio da espiritualidade. Ao constatar que ficara mais de hora gravando, sentiu forte arrepio perpassar-lhe pela espinha. Nunca se deixara empolgar pelas melodias a ponto de se alhear das técnicas.
Ao ouvir o resultado da atividade, assombrou-se com o acabamento de cada composição, havendo quinze entrechos completos, claramente distintos, com início, desenvolvimento temático e fim, como se os autores estivessem recuperando o tempo perdido.
Realmente, ao pôr-se a traduzir as notas na pauta, precisou ouvir cada passagem várias vezes, dando-lhes redação harmônica definitiva, porque o computador realizava leitura mecânica de inferior qualidade, perdendo muito da contextura original.
Vieram chamá-lo para o almoço e, naquela tarde, após a sesta, voltou a transcrever as músicas, encantado com tanta inspiração. Como havia contado o que lhe ocorrera, todos quiseram ouvir a fita, aplaudindo emocionados o retorno do artista às lides em que era soberbo.
Assim se deu nos dias subseqüentes, até que os amigos da espiritualidade completassem exatamente tantas obras quantos foram os dias em que Prisco ficara afastado.
No dia em que lhe adveio apenas um pequeno concerto, caracterizado pela filigrana de volteio melódico de complicada execução, teve o casal a certeza de que estavam de novo no caminho da paz.
— Você não acha, querida, que as nossas deduções anteriores precisam ser revistas?
— Ou seja, que você não vai conseguir convencer os do outro lado de que há excesso de partituras?
— Mais ou menos isso. É que eles não parecem ligar importância ao fato de que os encarnados não conseguem assimilar as produções na mesma proporção em que são encaminhadas para mim.
— Talvez estejam compondo para o futuro.
— Você quer dizer que vão esperar pela divulgação de cada uma em tempo hábil?
— Perfeitamente, querido. Digo mais: os compositores querem deixar claro que você é mero instrumento deles. Caso não tenha certeza ainda de que você não é o autor, agora isso não pode mais ser colocado em dúvida.
— Eu ou alguém poderia dizer que meu inconsciente acumulou as composições, soltando-as de uma vez, ao invés de uma por dia. Mas nem por sonho essa idéia vai passar-me pela cabeça. Aliás, estava preparando-me para as entrevistas a que terei de comparecer, de antemão prevendo que as perguntas irão conter o ranço da dúvida, uma vez que o que vou contar se realizou estando eu isolado. Acho que apenas espíritas de pensamento mais aberto é que vão aceitar como verdadeiros os relatos.
— Acredito que nem esses. Em geral, os dirigentes espíritas querem ver eles mesmos o médium trabalhando. Quando aceitam o testemunho de outras pessoas, sempre ficam com o pé atrás. Para isto é que possuem os centros: é para que possam avaliar o desempenho em ritmo real e não imaginário.
— Então, ninguém vai acreditar em mim...
— Meu caro, outros médiuns vão. Estes irão aceitar que os textos musicais, vamos chamar assim, tenham sido transmitidos em transe mediúnico.
— Já me pediram para gravar diretamente da fita original.
— Faça isso.
— Seria apenas para convencer uns poucos. O público em geral não está preocupado com o compositor, mas com a composição. Eu não me importo muito, também, que acreditem ou não que eu mesmo tenha escrito as peças. Sou obrigado a registrá-las em meu nome, ainda que com a advertência de serem mediúnicas. Com certeza, muitos dos compositores desencarnados não dão seus nomes para não causarem problemas de direitos autorais. Talvez, se algum deles não tivesse deixado descendência...
— Se você escrevesse poesias e registrasse nomes de poetas conhecidos, logo a crítica, como fez com os poemas psicografados pelo Chico, iria buscar as características lingüísticas ou peculiaridades de estilo, para afirmar que os textos não condizem com os que guardam da época em que viviam os famigerados autores.
— Conseqüência: é bom que eu fique resguardado e não me empenhe em estabelecer critérios para distinguir o que é meu do que é alheio. A obra tem de viver no coração do povo por mérito próprio, independente de quem a compôs.
— Concordo plenamente. Vamos almoçar?
— Ainda uma última idéia: e se a gente escrevesse um livro reproduzindo as nossas conversas e todo o cuidado que estamos tendo com o fenômeno mediúnico de que estou sendo alvo?
— Excelente idéia. Eu topo. Pena que nós não gravamos...
— Gravamos, sim. Desde outro dia fiquei remoendo o que havíamos dito e nem tudo me voltou à memória. Agora estamos apetrechados para o que der e vier.
— Vamos acumulando o material. Chegada a hora, daqui a alguns anos, escolheremos um trecho bem representativo, levamos a um editor e, se for aprovado o livro, contratamos uma estenógrafa para pôr em linguagem escrita.
— Querida, que você acha de fazermos um “backup” de cada conversação, tudo em “compact disc”?
— Para isso temos o equipamento. Caso nos falte alguma ferramenta eletrônica, eu providencio. Deixe comigo.
O almoço daquele dia ficaria gravado na memória de ambos como o da mais perfeita felicidade conjugal, fruto da harmonia ideal de sentimentos, de emoções e de pensamentos. Era como se estivessem cercando aquele ser que se formava da mais pura vibração de amor e de companheirismo.