O irmãozinho chegou como quem deseja agradar. Talvez o bulício do mundo exterior ao da barriga lhe tivesse dado a idéia de que a melhor política seria manter-se de bem com o mais velho. Talvez fosse criatura de ânimo pacato, vinda à luz para dar sossego aos familiares, contraponto necessário para a fogosidade do primogênito.
A mãe inventou que ele havia trazido um brinquedo para Cléber, bola de couro, muito parecida com as que via sendo chutadas na televisão. E permitiu que fosse ao campinho ali perto, para mostrar aos outros que ele era dono da bola. Se tivesse vontade de emprestar aos demais, perderia o precioso bem em poucos dias. Pensando em preservar o que era seu, nem se haviam passado dez minutos, foi-se embora. A turminha não esperava outra coisa, tanto que continuou o jogo com a bola de meia a que estavam acostumados. Aliás, a bola cheia era um perigo para as vidraças das vizinhanças, muitas delas quebradas por pelotas mais pesadas. O efeito, no entanto, foi o menosprezo pelo ouriçado proprietário, que se traduziu em caçoadas:
— Vai, mulherzinha, cuidar da bola!
— Vai dar papinha pra ela!
— Será que vai dar à luz outras bolinhas?
Cléber não se preocupava com as amizades. Esperava catar um por um sozinho, para lhes demonstrar quem é que era o mais valente. E assim fez, até que, um dia, os adversários se reuniram e lhe pespegaram tremenda surra.
Ao chegar em casa, aguardou momento de distração da mãe e deu tremenda bolada no pequerrucho, no berço. O caso foi grave, tanto que Gaspar carregou a cicatriz acima do lábio, do lado esquerdo, pelo resto da vida. E Cléber sentiu o peso da mão do pai, como a lhe afirmar que o preferido não seria ele. Jamais.
Aos oito anos de idade, Gaspar ingressava na escola primária. Freqüentara a mesma escolinha maternal, mas não demonstrara facilidade em aprender. Levantou-se a suspeita de que as freqüentes sovas que levava do irmão o teriam feito ficar atrasado mentalmente. Mas Cléber, apesar de “recompensado” constantemente pelas chineladas do pai, não oferecia graves resistências ao alfabeto ou à aritmética. Aos doze anos, ingressava na quinta série, terror das professorinhas primárias, que lhe aplacavam a sede da violência com o castigo do lado de fora da porta da sala. Às vezes, o diretor o reconduzia para a aula, mas o desespero das professoras obrigava o administrador escolar a chamar os pais. O que não se entendia era como conseguia assimilar a matéria, se não se dedicava ao aprendizado.
Gaspar, por seu turno, rabiscava folhas e mais folhas, sem alcançar a felicidade de dois pauzinhos juntos ou de pequeno círculo. O lápis não se compunha com a mão e ficava horas a fio desenhando quiméricas casinhas, junto das quais desenhava rústicas figuras, desgrenhadas e desproporcionais. Acabava sempre por riscar tudo, decepcionado, cobrindo a folha de traços, escondendo a incapacidade motora.
A professora chamou a mãe e mostrou que Gaspar não apresentava os mesmos recursos dos colegas. Disse-lhe que deveria levá-lo ao médico. Este, por seu turno, prescreveu certos exames caros, que demorariam mais de ano para se realizarem pelo sistema oficial de saúde. Aos nove anos, Gaspar voltava a ser matriculado no primeiro ano, desleixando-se a professora de atendê-lo, para propiciar-lhe cuidados adequados ao nível da inteligência. A medida oficial que propugnou foi a de levar o pequeno à classe dos retardados, onde a mestra especializada poderia dar o mínimo que conseguisse aprender. No entanto, os testes de capacidade intelectual não recomendaram a transferência, indicando que o petiz seria bem capaz de desenvolver os tópicos do programa, se fosse acompanhado de perto por alguém competente.
A mãe se recusou:
— Eu não tenho tempo, porque as meninas menores precisam muito mais de mim.
Terá sido esta a melhor hora de revelar que havia três jovenzinhas mais na família: Isaura, Beatriz e Lurdes, respectivamente com seis, três e um aninho? Pois fique o registro.
Gaspar, à vista desse conjunto de fatores, foi retirado da escola, já que o salário do pai não se avolumara, apesar do crescimento da família. De resto, as coisas começavam a desandar no relacionamento do casal, tanto que Cléber punha já na cabeça a idéia de ir viver nas ruas.