O domingo passou sem grandes novidades. Enquanto Deodato arrumava a cadeira de rodas, Cléber foi de muletas à feira, em busca de explicações do artesão, pois não compreendia direito como é que se conseguiam certas presilhas ou o modo mais prático de confeccioná-las. Foi muitíssimo bem recebido, tendo sido convidado para que voltasse mais vezes. Não adquiriu qualquer peça, pois havia queimado todo o dinheiro durante a maldita excursão do prazer, mas prometeu ser fiel em relação às compras que prometera.
Na segunda-feira, teve o encontro habitual com os dois companheiros e exigiu que contassem, tintim por tintim, tudo o que acontecera durante o final de semana.
Juliano se fechou num mutismo absoluto.
— Meu pai tentou me pegar, narrou Banguela, mas escapei e fiquei o tempo todo em nosso refúgio.
— Refúgio?
— Foi você quem disse. Não se lembra?
— E que aprontou por lá?
— Não aprontei nada. Fiz minhas necessidades na privada, se é isso que você quer saber...
— Não fuja do assunto.
— Fumei um restinho de maconha...
— Mentira!
Cléber empregava o recurso que vira Antunes usar, o do jogar o verde para colher maduro. Mas Banguela pegou logo a malícia do outro:
— Se você está tão interessado, por que não foi ver?
— Isso quer dizer que fumou de cair. E não deve ter sido coisa leve.
— E que você tem de ver com isso?
— Vou explicar a vocês.
E contou a conversa com Antunes, concluindo:
— Se o vício prejudicar nossa fonte de lucro, agora que devo mesmo fazer o artesanato, não vai dar pra continuar com vocês. Também não vou querer ver nenhum dos dois desencarnar tão cedo.
— Desencarnar?
Era a vez de Banguela se surpreender.
— Bater com as dez, morrer...
— Eu entendi. Mas é só espírita que diz assim.
— Pois é um jeito bem legal de dizer. Significa que a morte liberta o espírito.
— Então, morrer não deve ser tão mau.
— Se você tiver cumprido as tuas obrigações.
— Que obrigações?
— As que você marcou antes de nascer.
— E eu marquei alguma coisa?
— Todos marcam.
— ‘Tá brincando!
— É claro que não estou.
— Histórias da carochinha...
— Que é que vocês entendem da vida e da morte?
— Vou esperar pra ver, quando chegar a minha vez.
— Bobagem! Se você não fizer o bem pras pessoas, vai ter de enfrentar o Umbral, as Trevas.
— Inferno agora mudou de nome.
— É quase isso. Quando Antunes...
— Sempre esse Antunes. Ele está metido em tua vida e agora vem causar problemas pra nós.
— Vocês querem ou não querem saber mais alguma coisa?
— Vamos deixar pra outro dia.
— Então, fiquem só sabendo que, quanto a mim, estou decidido a abrir mão das próteses mais sofisticadas.
— Que é isso, cara? Que é que vai fazer com o dinheiro?
— Vou ajudar em casa. Quem sabe até comprar uma boa casinha pros velhos. As meninas estão ficando imbecilizadas com a televisão. Não querem saber de mais nada. Eu vi o que passa nos sábados e domingos. Ficam ali babando.
— E que é que você tem com isso? Sabe o que vai acontecer? Elas vão querer outro aparelho maior. Som estereofônico. Vão querer ir no auditório. Vão vestir aquelas fantasias tolas que só mostram as imbecilidades que pensam da vida.
— Ô Banguela, até parece que você está de acordo comigo!
— Como assim?
— Pois vai ser isso mesmo que vai acontecer, se eu não ajudar a pôr outras idéias nas cabeças delas. E isso só vai ser possível se forem em boas escolas. Aí é que entra o meu dinheiro.
— ‘Tá ficando louco!
— Pensem como eu e, quando morrerem, vão ver que os bons espíritos virão receber vocês. Façam tudo errado, e vocês vão ver o que é bom pra tosse.
— Aí vêm os demônios, como dizem os padres e os pastores, e te arrastam...
— Não me ponham nessa. Isso é com vocês.
— ... e me arrastam pros caldeirões de óleo fervente.
Cléber estava a ponto de desanimar. Lembrou-se, contudo, das próprias reações e decidiu dar tempo ao tempo. Tinha sido só depois de muita insistência de Antunes que tivera coragem de pensar naqueles termos. Ajudara muito ter visto a atuação do pessoal do Centro. Sentira que as pessoas ofereceram as mesmas barreiras psíquicas, embora não falassem tudo às claras. Mas a turma da doutrinação não perdera a vontade de ajudar. Durante o almoço, comeu com a maior alegria, em meio às brincadeiras de todos. Nenhuma vez fizeram qualquer referência ao fato de ter sofrido a terrível amputação. Antes, faziam questão de levantar temas que podia compreender e o tinham posto muito à vontade, para só falar se quisesse. Nenhuma vez ficou em total evidência. Tinha sido, em suma, respeitado. Pensou muito sobre tudo isso naquele período em que ficou em casa. Ao visitar o irmão, soube que, na segunda-feira, iria fazer os exames. Prometeu ir, à noite, saber como tudo tinha sido.
Essas lembranças amorteceram a discussão e os amigos se sentiram aliviados da pressão catequizadora.
O dia passou no constante temor da chegada de Antunes e companheiros. Entretanto, só Zelão foi buscar a sua quota diária. O rendimento foi excelente. Cléber, contudo, começava a se sentir mal ao deixar as pernas expostas. Houve mesmo um momento em que colocou os pés de madeira. Mas passou um “engraçadinho”, que fez uma piada de mau gosto:
— Com esses pés, você pode até correr na “São Silvestre”.
E não deu nada. Aliás, o rendimento decaiu muito naquela hora. Aí Cléber resolveu retirar as próteses, muito sentido por ter de fazer isso para que as pessoas compreendessem a sua perda. “Que diferença faz com ou sem esses pedaços de pau? Eu não estou aleijado do mesmo jeito?”
Às oito horas, chegava à casa do policial. Gaspar correu ao seu encontro. Era só sorrisos. Mas não foi capaz de explicar nada direito. Precisou que Odete relatasse o resultado dos exames:
— O Doutor ficou muito interessado no caso de Gaspar. Primeiro, fez uns testes com palitos e com riscos. Queria que equilibrasse dois ou três. Evidente que não conseguiu. Depois queria que passasse o lápis sobre umas linhas. Eu não vi direito, mas havia círculos, retas e outros desenhos. Ficou tudo muito ruim. Aí, deu um livro para ele ler. Tinha letras muito grandes. Gaspar foi perfeito. Não leu depressa, mas leu tudo. Então, as letras foram diminuindo e as frases aumentando. Com dificuldade, ele leu tudinho. O Doutor quis saber se ele havia entendido e Gaspar contou a historinha inteira, sem errar nada. O Doutor ficou impressionado. Toda vez falava “muito bem!, muito bem!” (Odete reforçava o incentivo para que Gaspar se sentisse melhor.) Depois escreveu uma longa carta, cheio de nomes complicados e disse pra passar no guichê das consultas. Lá, a moça mandou esperar um pouco e depois chamou Gaspar no alto-falante. Tinham sido marcados outros exames. Os papéis estão aqui: tomografia computadorizada do cérebro...
— Quer dizer que não tem nenhum resultado positivo?
— Quer dizer que pode ser que ele vá ser operado. O Doutor explicou que tanto pode ser um tumor como pode ter havido um problema qualquer de coagulação que deve estar pressionando os miolos.
— Ele disse isso só pra dar esperança.
— Ele disse que pode ser e não que é. As radiografias e os outros testes é que vão revelar. A enfermeira explicou que esses exames são muito caros, mas lá o atendimento é de graça. Não é uma maravilha? Você já pensou se o teu irmão puder jogar bola...
Odete mordeu os lábios. Tinha falado besteira. Cléber, no entanto, percebeu o constrangimento da boa senhora e saiu-se com esta:
— Aí eu vou torcer pro time dele. Pode deixar. Vou ser o maior fã e vou chefiar a torcida uniformizada.
Como por encanto, desfez-se o clima de expectativa e a senhora pretextou ter de sair para ligar a televisão e preparar o vídeo para gravação do capítulo da novela. Iria rezar o terço, na novena que percorria as casas do bairro. Ficassem ali vendo o programa.
Cléber imantou-se no sofá. Sempre menosprezara o enredo boçal das moçoilas e das corocas tentando enganar os galãs e velhas raposas. Interessou-se, porém, pelas cenas da mais absoluta riqueza, com cortinados de seda, grandes escadarias de mármore, móveis luxuosos, mordomo e criados, e o espírito malvado da personagem que desejava prejudicar os mais pobres. “Será que estão fazendo a crítica dos costumes depravados da gente rica?”
Naquela noite, mais que nunca, sentiu que era absolutamente ignorante, inculto, incivilizado e que ganhar dinheiro talvez não fosse o objetivo maior de sua vida. Assim que desse, no começo do ano, refaria a matrícula na escola. Queria estudar de novo. Guardaria, porém, segredo da deliberação. Os companheiros deveriam ser convencidos de maneira mais habilidosa do que o fizera a respeito das idéias espíritas.