Banguela chegou muito agitado mas não abriu o bico. Parecia estar ruminando um plano que não desejava partilhar com os demais. Arisco, não respondeu a nenhuma perquirição dos amigos. Nem se expandiu como costumeiramente.
Foi Cléber quem desejou propor outra estratégia para o sábado:
— Hoje é dia que meu pai está em casa e Antunes fica meio solto, porque não está dando plantão. É um perigo ficar expondo as pernas cortadas. Vamos fazer o seguinte: a gente vai a outro lugar, onde o Zelão não esteja, e, simplesmente, tentamos vender as quinquilharias. Vou fazer um cartaz, pedindo pro povo ajudar o aleijado.
— Não vai dar certo.
Era Juliano, querendo demonstrar os riscos da empreitada.
— Por quê?
— Sempre vai ter um cara querendo pôr banca em cima da gente. Se tiver um três-oitão na cintura, fica valente. Ou, então, a fiscalização da Prefeitura pode aparecer. Se não der o rapa, vai querer parte do lucro.
— E eu não sei disso? Só estou querendo ver o que acontece. Se levarem tudo, a gente se apruma na semana que vem. Não precisa pôr à mostra toda a mercadoria. Vamos tentar. Eu estou cismado que vai dar certo. Vamos procurar um bairro mais chique. Eu fico com esta roupa mais decente e vocês dão chá de sumiço, de campana, pra me avisarem se suspeitarem de algum bode. Afinal, hoje é sábado e qualquer coisa que entrar é a mais. Antunes diria que “é por acréscimo de misericórdia”.
A provocação passou desapercebida aos companheiros, mas o protetor, no etéreo, compreendeu, perfeitamente, que Cléber ironizava para receber algum sinal de boa vontade dos espíritos amigos.
A cadeira de rodas foi deixada no barraco e os três avançaram pelos trezentos metros da favela, até o asfalto. Ali conseguiram um táxi que os conduziu pelas avenidas vazias até a região dos Jardins.
Escolhido o logradouro público, os peraltas estenderam uma toalha no chão sobre a qual esparramaram os produtos, pregaram a cartolina na parede, com os dizeres: “Ajudem o aleijado, comprando uma bijuteria.” Uma hora depois, como não havia vendido uma só peça, apesar da boa movimentação das pessoas, Cléber acrescentou: “Não aceito esmolas. Trabalho pra viver.” Outra hora decorrida sem sucesso, e Cléber retirou as pernas de madeira. Aí, o povo começou a reparar no aleijão e a deixar contribuições, ignorando completamente os dizeres do cartaz. Houve quem tivesse lido mas comprar os objetos nem pensar. Esses é que deixavam mais dinheiro e ainda faziam gestos de evidente solidariedade para com o pequeno artesão, que manipulava os arames e pedras, empunhando alicates e tesouras.
Em certo momento, um velho, bem vestido, de bengala, postou-se ao lado e passou a observar o empenho de Cléber em confeccionar o artesanato. Este logo suspeitou de que o sujeito poderia entender do riscado e parou o serviço, pondo-se a conversar:
— O senhor não deseja comprar um lindo colar pra tua filha ou uma pulseira pra patroa?
— Não estou interessado.
— Quem sabe um anel pra netinha ou uma presilha de cabelo. Eu tenho diversos modelos.
— Não estou precisando de nada.
— Quem sabe...
— Ó meu jovem, não precisa se aborrecer. Não vou te dar nenhuma esmola nem adquirir nenhuma peça. Na verdade, você não entende nada desse serviço, mas louvo a iniciativa de deixar bem claro que não deseja ser considerado um inútil. Aqueles dois que estão com você devem estar se aproveitando de tua boa vontade.
— Aqueles dois são meus amigos. Sem eles, eu não ia a lugar nenhum.
— Pois deveriam estar trabalhando, sem fingimentos. Agora, fumando a erva maldita, não vão colaborar pro pagamento do aluguel do ponto.
— Que aluguel do ponto?
— Mil reais. Por dia.
— Você está sonhando!
— Não estou, não.
— Nem que eu ficasse o mês todo aqui não ia arrecadar tanto.
— Não ia mesmo. Mas ia atrapalhar os que estão reservando a área. Eu não estou no ramo há pouco tempo. Sei muito bem que vocês estão faturando a falta de pernas e mais nada. A venda do material é pra não dar na vista. Agora vocês vão recolher tudo e desaparecer pra sempre. E pra mostrar que estou sendo bonzinho, vocês não vão precisar pagar as horas que ficaram ao relento.
Cléber começava a desconfiar de que o velho era só papo furado, mas, prudente, fez a pergunta de maneira direta:
— E se a gente não sair?
— Não sair por bem, você quer dizer, porque sair por mal fica por minha conta.
O velho empunhou um apito:
— Se eu assoprar, em dois minutos vocês serão jogados numa viatura da polícia e serão acusados de uma série de coisas, inclusive de consumo e porte de drogas, o que pode ser interpretado como tentativa de venda. Vocês é que sabem.
Falava no plural, dirigindo-se a Cléber, querendo sugerir que ele explicasse aos outros o perigo que corriam.
— Vocês têm dez minutos.
Quando Cléber começou a arrumar a mala para dar o fora, percebeu que os outros dois tinham desaparecido. “Só me faltava agora carregar todo o peso.” Demorou um tempão para colocar de volta os pés, amarrou a mala nas costas com a toalha, arrancou e despedaçou o cartaz, pegou as muletas, fez enorme esforço para se levantar, quase caiu de costas, mas não obteve ajuda de ninguém. O velho estava na esquina, apoiado na bengala, observando-lhe os movimentos. De lá, fez sinal de positivo com o dedão para cima e com as duas mãos indicou o caminho que o jovem deveria seguir.
Cléber, contudo, ficou rente ao meio-fio, aguardando um táxi. O primeiro disponível só chegaria cinco minutos depois, tempo em que o sujeito não parava de acenar-lhe com o relógio.
Finalmente em casa, ajudado por pessoas da favela, pôs-se a chorar, sem conceber a verdadeira razão das lágrimas. Eram as primeiras desde que verificara a perda das pernas. Sentia-se um inútil, perante a prepotência das pessoas. Se tivesse a autonomia de antigamente, teria dado um pontapé no leão-de-chácara e corrido com ele, que não lhe parecera tão disposto a enfrentar gente inteira. “Só fez isso porque me viu incapacitado.”
Quando acalmou a crise, pôde pensar sobre as experiências. Deduziu que não iria conseguir sobreviver apenas com a venda daqueles badulaques. Se quisesse prosseguir, iria ter de se cadastrar na Prefeitura, submeter-se às leis e impostos, mudar de ramo de comércio e, ainda, se dispor a compartilhar o local com centenas de marreteiros. Nesse caso, o rendimento não iria dar para manter os amigos ajudando, sendo que ele dependia de ambos para quase tudo. E as coisas iriam piorar muito mais com as novas próteses, que lhe dariam, com certeza, a aparência de gente inteira, conforme vira nos prospectos no hospital.
“Não será o caso de deixar em casa...”
A idéia de continuar mendigando era forte em sua mente. Lembrou-se de uma piada que o Doutor contara, de um judeu curado pelo Cristo e que perdera a fonte de lucro, requerendo de volta a condição anterior. Até o médico havia concluído que há bens que vêm para mal. Ele se encontrava exatamente assim. Com uma diferença, a vida que levava anteriormente já não era mais possível, porque a dificuldade da falta de pernas o impediria de movimentar-se inteiramente à vontade. Além do mais, sua cabeça estava feita pelo sofrimento e ele acreditava que não se satisfaria em se aventurar, simplesmente, longe de casa. Precisava do apoio familiar, da mesma forma que via, na ajuda financeira possibilitada pela mendicância, a saída para os desajustes dos parentes.
Quando se lembrou de que deveria preparar alguma coisa para comer, chegaram os dois amigos, esbaforidos, querendo saber o que ocorrera, por que tinha abandonado o lugar sem esperar por eles.
Cléber é que deveria ofender-se com o desaparecimento de ambos, entretanto, contentou-se em contar tudo o que se passara, encerrando a narração com uma pergunta:
— Onde estavam vocês?
Tinham preparado a desculpa mais plausível:
— Fomos comer alguma coisa.
— Mentira. Se tivessem ido comer, teriam me procurado pra perguntar se eu também queria. O que o velho me disse é que estavam fumando maconha .
— Fumamos, mas foi só um pouco, pra nos deixar...
— Mas nós não tínhamos combinado... Deixa pra lá. O que me deixa azucrinado é que Juliano não aprendeu nada no Centro.
— Aprendi, sim. Aprendi que devo pedir desculpa a você. Aprendi que você deve me desculpar. Aprendi que devo prometer...
— Isso você não aprendeu, porque, se tivesse aprendido, não teria me deixado lá sozinho, no pior momento. E você, Banguela, está em condições de entender o que estou dizendo ou está doidão?
— Me deixa quieto, Clé. Hoje estou “fudido”. Não estou bom da cabeça. E esse cara aí ficou me passando sermão o tempo todo.
Cléber interrogou Juliano com os olhos. Este fez sinal que depois falaria. Mas Banguela revelou o que pensava:
— Eu vou acabar com aqueles caras que bateram em nós, mesmo que esse covarde não for comigo. Você tem desculpa, mas ele, não. Ficou falando em dívidas dos outros, em dívidas da gente. Que sei lá! O que sei é que eles vão me pagar. Deixa eu comprar...
— A gente não estava lá porque ele tentou comprar um revólver pra emboscar os assaltantes.
— ‘Tá maluco, seu?! Deixa pra lá. Se eles tivessem tirado as tuas pernas, até que se poderia compreender. Mas só te rasgaram um pouquinho a orelha. O médico não disse que vai dar pra pôr brinco de novo? Então?
Mas Banguela estava tomado e não queria saber de nada. Deitou na cama de sapatos e tudo e lá ficou desacordado, curtindo os efeitos da droga. Mesmo quando chegou Deodato, não acordou. Aí, causou um problema para os outros que queriam ir comer em casa, mas estavam com medo de largá-lo sozinho. Cléber considerou o perigo de um escândalo pelo estado em que Banguela se encontrava e resolveu abandoná-lo à própria sorte.