Ódio, um ódio profundo era o que sentia. Jamais em sua vida pensara ser capaz de odiar alguém tão profundamente como seu marido. Sua presença, seu modo de falar, sua forma ridícula de se vestir, suas frases feitas, seu barulho ao comer, seu ronco rítmico ao dormir, seus olhos remelentos ao acordar, tudo fazia-a estremecer de asco. Repugnância pura. Sabia que ele também a odiava ou, no mínimo, a detestava de forma violenta. Estavam juntos somente pelas crianças.
Somente pelas crianças... isso não era lá completamente verdadeiro. Estavam juntos também pelo ódio. Esta era a cola que os ligava firmemente: tornar o dia do outro pior que o seu, acabar com as pequenas felicidades duramente alcançadas pelo par, ridicularizar sua presença, desmereçê-lo perante os amigos, roubar sua "moral" diante dos colegas de trabalho, mostrar a pessoa ínfima, insignificante que o outro era. Algumas razões que os uniam. O amor fora substituído pelo ódio, cola mais forte, diria mesmo chama inextinguível.
E domingo agora seria Dia dos Pais. Claro que ela se fizera toda préstimos e atenções quando as crianças sugeriram que saíssem juntos para comprar o presente dele. Diante das crianças não. Elas não deviam sofrer pela infelicidade que tivera ao escolhê-lo como marido. A culpa era toda dele, da sua pequenez, sua falta de visão, falta de ambição, sua incompetência. Diante das crianças, não...
Saíra pois com os pequenos e ajudara-os a escolher uma camisa bem bonita, sugestão da filha. Colocaram-na numa caixa toda enfeitada e brincaram com o sonhar da expressão de papai ao ganhar o presente. Ela deleitava-se com possíveis armações que faria caso fosse somente ela a dar o presente. Colocar pimenta na roupa e vê-lo vestir-se, comprar um número abaixo só para fazê-lo ir à loja trocar o presente (coisa que ele detestava!), escolher um modelo único de camisa, daqueles feitos com exclusividade e cortar o pano em algum lugar onde não seria possível deixar de ver (e, é claro que ele ficaria puto da vida, pois tinha bom gosto, em ter algo exclusivo que não poderia usar), as possibilidades tomaram de forma prazerosa sua mente durante todo o caminho de volta, a conversa das crianças no fundo...
E chegou domingo. Ela levantou-se (dormiam em quartos separados), preparou o café das crianças, e não o dele, e ficou amuada no seu canto, enquanto observava a festa que os filhos faziam ante a chegada do pai à cozinha. Culpa dela, que sempre dissera a eles que tinham um pai perfeito, sem defeitos, etc, etc... agora aquele merda infeliz recebia glória indignas. Mas este fora o acordo que fizeram... diante dos filhos, não. Esboçou um sorriso radiante e beijou-o profundamente enquanto os filhos olhavam com orgulho os pais. Sentia vontade de escarrar-lhe goela adentro enquanto trocavam aquele beijo. Amaldiçoou toda a família dele até a primeira geração, anterior mesmo a Adão. Não conseguiu evitar dar-lhe um discreto beliscão, com as unhas afiadas da mão que não estava à vista das crianças. Ele, por sua vez, colocou o tênis sobre o dedão do pé dela e soltou todo o peso do corpo em cima, fazendo-a soltar um gemido abafado, facilmente confundível com um suspiro.
Ele abriu o presente, agradeceu às crianças e sugeriu um passeio no parque. Ela, pretextando o almoço que teria que fazer em homenagem a ele (ainda isso!), alegou que não iria. As crianças foram se trocar...
Ficaram na cozinha a observar-se. O tensão que se elevava ali era tão palpável que o gato deu um miado assustado e fugiu para a sala. Fitaram-se olho no olho.
"Grato pelo presente". A ironia não podia ser mais clara.
"Vê se te enxerga! Eu só peguei as crianças e levei-as ao Shopping! Foi tudo idéia delas.”
"Então você não vai me dar um presente?"
"Se quiser, preparo uma xícara de café com veneno de rato... e adoçante."
"Somente se você me acompanhar".
Ela levantou-se e foi até a despensa. Pegou o veneno, colocou em duas xícaras de café e trouxe para a mesa. "Dois saquinhos, por favor" pediu ele ao vê-la servir o adoçante. Depois ficaram olhando-se nos olhos. Levantaram as bebidas e aproximaram-na dos lábios. Ela faz menção de beber e ele, num gesto brusco, atira a xícara dela longe enquanto agarra-a pelos cabelos e aproxima-a dos seus lábios. Beija-a com violência sussurrando "Se quer me dar um presente, dê-me o teu corpo que hoje estou morrendo de tesão". Surpresa com a atitude dele e, mais ainda pela proposta indecorosa que lhe foi feita, ela limitou-se a dar-lhe um tapa na cara. "Seu filho da puta! Sabe que nunca mais me terá". As crianças voltam correndo para saber que barulho era aquele mas encontram-nos debruçados no chão recolhendo os pedaços da xícara. "Podem terminar de se trocar que está tudo bem". Ele se retira com os pequenos.
O corpo dela tremia de raiva e indignação. Como aquele ser asqueroso pudera lhe fazer proposta tão vil!? Lembrou-se do beijo que trocaram e do beijo roubado e sentiu-se completamente suja. Com um gesto de nojo no rosto dirigiu-se ao banheiro. Decidira lavar-se para limpar aquela imundície toda onde se sentia mergulhada.
Mas a proposta do marido teimava em ficar-lhe na mente. Há tempos não fazia sexo com ninguém. Masturbou-se e gozou um gozo leve, procurando afastar aqueles pensamentos impuros dos olhos. Mas a imagem dos dois fazendo amor, lembrança de quando ainda eram um, gritava-lhe nas carnes do fundo da alma. Ele sempre fora um bom amante. Tiveram momentos inesquecíveis juntos.
Há tempos não fazia sexo com ninguém. Masturbar-se não preenchia aquele vazio no meio de suas pernas. Aquela boca faminta que permanecia aberta, suplicando atenção.
Há tempos não fazia sexo com ninguém... ora bolas! Por que esse pensamento não a deixava em paz?! Com ninguém...
Secou-se apressadamente e fugiu para a cozinha. Precisava preparar o almoço. Tanto tempo... Ler a receita, esquentar o forno, preparar a massa, preparar o molho. Concentre-se. Concentre-se!
Perto do meio-dia, capitulou. Merda! Queria transar com o marido! Ou melhor, queria fodê-lo profundamente, sugar todo o seu sêmen e sentir-se traspassada. Sentir-se penetrada. Gozar. Engraçado isso... desejar um homem e odiá-lo com todas as forças, pensava que isso não existia.
Foi para o quarto e se arrumou. Viu a cara de surpresa do marido ao chegar com as crianças e a pasmaceira que o tomou ao oferecer-se para servir-lhe o almoço. Tanto tempo...ninguém.
Depois do almoço ela pegou as crianças e levou-as a casa dos avós que moravam perto deles, para dar um abraço no vô, que também era pai. Ele nada disse. Ficou sentado a observá-la. Retornou sozinha e, mais uma vez ele calou-se quando ela pegou-o pela mão e encaminhou-se para o quarto dele. Ambos nada disseram e nada falariam. Dizer o quê? Juras de amor que não existiam mais!? Promessas de vida eterna, quando o que mais desejavam era que o outro morresse para livrar-se do jugo da escravidão, quebrar as cadeias onde estavam encerrados!? Nada tinha a ser dito...
Ela porém, ao fechar a porta, espiou uma vez mais como a certificar-se que não havia ninguém em casa para testemunhar aquele heresia. Ao desnudar-lhe os seios fartos tinha um brilho estranho nos olhos que demonstravam indubitavelmente que ele pagaria caro por expô-la à sua fraqueza.