Assim que chegou ao hospital, Juvenal encontrou-se com Tadeu, que estava sendo consolado por parentes e amigos da umbanda.
O empregado hesitou em abraçar o patrão e este apenas levou a mão na direção do outro, ciciando um tímido “meus pêsames” do protocolo. Na verdade, os dois temiam recíprocas recriminações.
Mas Tadeu logo cismou de aliviar a sobrecarga psíquica:
— Patrãozinho, eu deixei Brútus solto. Mereço receber toda a culpa pela morte de minha tia e dos animais.
Sem se deixar condoer pela observação do criado, Juvenal apenas atenuou o efeito da tragédia e do sentimento de culpa:
— Sua tia estava velha e doente. Desde que seu irmão morreu, ela estava muito triste. Nem prestava atenção nas coisas. Em outros tempos, ela não teria saído de casa sem estar segura de que os cachorros estavam presos. Você acredita na vida após a morte. Então, deve saber que ela foi para um lugar em que vai receber o amparo da espiritualidade.
O próprio Juvenal se surpreendeu com as suas expressões de claro fundamento espírita. Admirou-se tanto com as palavras que saíram espontâneas de sua boca que se calou.
Várias pessoas fizeram coro para o que ele havia dito, de modo que o rapaz se sentiu mais seguro de si. Então, puxou o empregado e o abraçou, complementando pelo ato afetuoso o apoio moral que lhe havia dado.
Preocupado com ter de arrumar outro caseiro, Juvenal não deixou esfriar o ferro e malhou:
— Tadeu, vê se não vai ficar com medo de continuar morando lá em casa. Eu estive pensando que precisamos de outros cães de guarda. Mas não podem ser tão ferozes. Você vai procurar um canil que venda cães treinados, vai fazer o adestramento deles com toda a segurança e continuar comigo.
Vendo que a noiva abraçava o infeliz, acrescentou:
— Assim que você aliviar o luto, vai poder casar e ocupar os quartos dos fundos. Se achar que o serviço é muito, pode arrumar alguém que fique no lugar de seu irmão. Meu tio já lhe falou sobre as empregadas de dentro?
— Disse que havia deixado a casa aos cuidados de uma governanta, uma arrumadeira e uma cozinheira.
— Se vocês estiverem de acordo, eu dou um salário para sua noiva e ela vai poder trabalhar também. Serviço, numa casa tão grande, não falta. Meu tio está lá dentro?
— Ele ficou até às dez da noite, mais ou menos, e prometeu voltar bem cedo, que o enterro vai ser às dez. O cortejo vai sair às nove. O senhor vai à aula hoje?
— É claro que não! Mas não prometo ir ao cemitério. Agora são seis e pouco. Eu fico até meu tio chegar. Tenho muita coisa que conversar com ele e falta dar orientação às empregadas. Agora eu vou entrar para ver Dona Francisca. Preciso agradecer tudo o que ela fez por minha família.
Juvenal notou que várias pessoas aprovavam com a cabeça a sua intenção e se alegrou por haver acertado mais uma vez com as palavras da circunstância.
Tadeu acompanhou-o até ao lado do féretro, ficando com ele enquanto o rapaz observava a lividez cadavérica do corpo da velha negra envolto em flores, com a cabeça coberta por um lenço branco de tule. O cheiro de incenso misturado com o odor das velas, no entanto, atordoou-o e ele precisou amparar-se no empregado, desculpando a fraqueza com o fato de estar sem comer.
Logo lhe cederam uma cadeira e ele se deixou ficar ali largado, sem muito controle sobre si mesmo. Não demorou, trouxeram-lhe um copo d’água, que bebeu pela metade, umedecendo o lenço que passou no pescoço e em todo o rosto.
Sem ânimo para conversar com as pessoas presentes, encostou a cabeça na parede, fechou os olhos e descansou do longo passeio noturno. De tempos em tempos, abria os olhos, acomodava-se melhor, a dar sinal de que não estava dormindo e voltava aos pensamentos que voluteavam em torno das afirmações que fizera a respeito da vida de além-túmulo. Na verdade, delirava um pouco, forçando a imaginação para reconhecer o que estaria passando no círculo existencial ao derredor daquela cena de mero respeito material. Achou que também havia a história de uma vida a considerar e justificou muitas das pessoas presentes, pessoas que ele se lembrava de haver visto no dia do enterro de Lutécia.
Às sete e meia, levantou-se, aproximou-se do caixão e fingiu estar orando em silêncio. Apenas queria complementar o “teatrinho” que começara tão bem. Ameaçou persignar-se mas evitou o gesto tão logo lhe passou pela cabeça que não havia nenhum crucifixo a encimar a cabeceira da essa.
Nem bem saiu da sala, seu celular começou a vibrar.
Discretamente, Juvenal atendeu, dirigindo-se para um local ermo no corredor que ainda não estava tomado totalmente pelos parentes e amigos dos três defuntos velados ali.
— Onde você está, menino?
— Tio, estou no hospital, no velório.
— Muito bem. Fique aí que precisamos conversar.
— Sobre o quê?
— Sobre a arma do Tadeu e outras coisas que a polícia achou no quarto dele.
— Eu sabia que a gente ia ter problemas com o diploma falso...
— Há outras coisas. Não saia daí.
Naquele meio tempo, Juvenal alcançou a rua e foi tomar seu desjejum numa padaria em frente.
Estando sentado junto ao balcão, vigiava a rua, a ver quem entrava e quem saía da ala do velório. Ficou fazendo hora, aguardando a chegada do tio. No entanto, lá pelas oito, quem chegou foi sua mãe com o marido. Eles entraram sem dar com o moço que os observava.
Imediatamente, fez uma ligação para o tio, marcando o encontro na porta da frente do hospital, local em que não correriam o risco de serem interrompidos. O tio achou de muita prudência o pedido e concordou, avisando que estava chegando.
Sendo assim, foi possível dar-se a entrevista de forma reservada. Foi quando José demonstrou ao sobrinho que Tadeu estava sendo implicado por Macedo, contando-lhe a respeito das cápsulas deflagradas. Juvenal não atinou como é que Tadeu conseguira o material, mas não se preocupou com o que pudesse acontecer ao indigitado. Somente se pôs alerta para a eventualidade de uma prisão que lhe tiraria o único guarda que lhe sobrara.
— Vamos entrar?
— Eu prometi que ficaria até o senhor chegar. Como não preguei os olhos a noite inteira, vou dormir. Qualquer coisa, o senhor liga ou eu ligo.
Voltando de táxi no contrafluxo do trânsito, em quinze minutos estava em casa.