Quando Juvenal acordou, pareceu-lhe ouvir vozes animadas lá embaixo. Curioso, mal se deu tempo para uma rápida ablução, descendo a ver o que acontecia.
Na verdade, professora e alunos decoravam fórmulas, inventando paródias com músicas conhecidas.
Com a chegada do rapaz, silenciaram, desconfiando que o houvessem acordado.
— Continuem, por favor, disse ele.
A professora explicou:
— Nós apenas estávamos testando o que fizemos para decorar os aldeídos acético, acrílico, benzóico, cinâmico e fórmico, mas as nossas rimas são lamentáveis. Você não quer nos ajudar?
— Na próxima vez. Está na hora de terminar a aula.
Margarida chegou-se à porta, discretamente apelando para falar ao patrão.
Na sala contígua, ela foi breve:
— Seu tio ligou, pedindo para avisar que está a caminho. Precisa muito conversar com o senhor. As meninas agradecem a autorização para saírem mais cedo. Por isso, elas já foram embora. Elvira já chegou. Ela veio com o “Seu” Ricardo do centro. Estão lá na piscina.
Juvenal estranhou a eficácia da governanta, desconfiando que lhe menosprezara a capacidade. Deu um adeus aos colegas e à professora e se dirigiu ao quintal, para saber a que vinha o diretor da casa espírita.
Após os cumprimentos, Ricardo se antecipou à pergunta que se estampava no rosto do anfitrião:
— Eu pedi para Elvira me trazer porque tive a sensação de que poderia ser útil, agora que se passaram alguns dias, desde que você começou a refletir sobre os temas espíritas.
Elvira não estava gostando nada da atitude do companheiro e tentou esmiuçar o que havia acontecido a ele:
— Eu acho que o nosso palestrante, médium há muitos anos, deve ter recebido algum recado intuitivo do além. Ele não disse nada, mas é bem possível que algum irmão protetor seu ou de sua família veio pedir a ele que conversasse com você.
Juvenal não deu atenção aos cuidados de ambos e desferiu à queima-roupa uma pergunta específica:
— Eu tenho tido uns relances de lucidez, se assim posso chamar o fato de haver falado em termos espirituais, para consolar a dor do Tadeu, o sobrinho da senhora morta pelos cães. As palavras me vieram de repente, sem eu pensar sobre elas. O espiritismo explica isso?
Naquele justo momento, Margarida chegou com uma bandeja, xícaras e café. Juvenal fez as honras da casa, passando o café servido pela criada às mãos dos dois. Foi um precioso tempo para que Ricardo elaborasse uma resposta plausível:
— O espiritismo busca explicar a vida e a morte.; melhor dizendo: a existência. Em seu caso, aplica-se a regra geral que os espíritos ensinaram a Kardec, qual seja, primeiro, para tudo o que acontece, devem-se encontrar as explicações científicas, físicas, materiais. Somente quando não há resposta humana é que se deve partir para a lógica doutrinária. Você leu, evidentemente, um mínimo de teoria espírita. Mas o seu cérebro carnal (existe o cérebro perispiritual, mas isto você só irá aprender mais tarde) o seu cérebro carnal desenvolveu as idéias que se acomodaram no inconsciente. Para isso, você deve ter tido um forte interesse pelo assunto, caso contrário sua memória rejeitaria as noções que tivessem ficado como que flutuando na mente, sem se fixar em nada. É o que se chama de prender o novo ao velho ou, de forma mais objetiva, estabelecer um relacionamento, uma associação de idéias, de conceitos, de princípios. Quando você falou espontaneamente a respeito da vida após a morte, devia estar impressionado com a desesperança que toda dor moral provoca nos indivíduos quando sofrem uma perda tão grande, ainda mais que ele estava ainda enlutado pelo irmão e pela cunhada. Se você se lembrar de seus próprios sentimentos em relação à desencarnação de sua irmã, irá compreender melhor o que estou tentando expor.
Juvenal seguiu todo o roteiro das idéias, eclodindo a observação final na seguinte questão:
— Gostaria de ouvir uma palavra a respeito do fato de eu não estar sentindo, naquele momento, nenhuma comiseração nem pelo vivo nem pela morta. O que o espiritismo tem a dizer a respeito dessa minha frieza emocional?
Foi uma questão que surpreendeu os interlocutores. Tacitamente, Ricardo passou a palavra a Elvira, entendendo que ela conhecia bem melhor o rapaz que ele. Por sua vez, a professora rejeitou claramente a responsabilidade de uma resposta, afirmando:
— Esse é o exato problema que me levou a manter estas duas sessões semanais. A verdade é que eu notei esse seu comportamento, mas nem por isso saberei dar uma resposta adequada, nem no sentido do conhecimento humano, porque psicóloga não sou, nem da sabedoria espiritual.
Continuaria ela a desenvolver os tópicos em que situou o tema, mas foi interrompida com a chegada de José, Tadeu e Macedo, introduzidos por Margarida.
Ao se depararem com os dois elementos do centro espírita, os recém-chegados admiraram-se de que Juvenal estivesse recebendo orientação de caráter espiritual, mormente Macedo, porque jamais suspeitaria de que um jovem que mantinha a irmã reclusa estivesse interessado em algo além da matéria. Logo, porém, imaginou que a morte de Lutécia é que precipitara o desejo de conhecer as teses relativas ao depois da morte.
Mas foi José quem, após os cumprimentos, elucidou a respeito do a que vinham:
— Tadeu está isento de qualquer suspeita. Ele queria informá-lo de tudo, entretanto, achei melhor vir eu mesmo, caso seja necessária alguma explicação legal. Vínhamos saindo da delegacia, quando Macedo se propôs a acompanhar-nos, para reforçar, junto a você, a necessidade das providências para regularização da permanência do Tadeu na qualidade de guarda de segurança armado. Quanto às cápsulas, os policiais consultados a respeito da alegação de que foram encontradas no carro confirmaram que Tadeu esteve lá, inclusive porque se recordavam perfeitamente do César. Tinha você conhecimento de tal visita?
— Não sabia nada disso. E também não posso imaginar para que serviria levar o cão à delegacia.
Tadeu ameaçou falar, mas José antecipou-se a ele:
— Ele achava que César poderia, através do olfato, reconhecer quem atacara o irmão. Ao encontrar os cartuchos, a primeira idéia foi trazê-los para que os outros cães também os cheirassem.
Juvenal refletiu uns instantes, antes de observar:
— Isso só poderia causar problemas, como acabou acontecendo. É de uma ingenuidade a toda prova. Mas você conseguiu alguma coisa de positivo?
Ia Tadeu responder, mas, de novo, José interveio:
— Não teve tempo para nada. Mas a intenção de elucidar o crime é compreensível. Você também não gostaria de ver os assassinos na cadeia?
— Nem por isso, tio, vou sair por aí fazendo as vezes do Inspetor Macedo. Mas vamos deixar que ele diga a que veio.
— Em primeiro lugar, queria dizer que a minha visão inicial das coisas erradas nesta casa passavam por uma acusação à sua pessoa, pois acreditava que a situação anormal dos seus empregados era de sua responsabilidade. Tadeu disse que tanto a arma dele quanto a do falecido foram dadas por seu pai, como ainda os diplomas e os portes falsificados. Eu apurei tudo. Então, recomendei ao Doutor José que o orientasse no sentido de, em mantendo o moço a seu serviço, fazer que freqüente um curso reconhecido oficialmente, enquadrando-se nos termos da lei, inclusive quanto ao porte de arma. O que eu não disse a ele, mas digo a você, é que a responsabilidade pelo acidente com os animais é mais sua que dele, só não cabendo, a meu ver, uma reclamação judicial, porque o rapaz é que cuidava dos cães, sendo tratador e treinador, tanto que era por eles obedecido. Como ele me disse de sua intenção de arranjar outros animais, dando a ele a oportunidade de adestrar-se para mantê-los apenas como uma proteção adicional do patrimônio, acredito que minhas palavras sejam, como disse seu tio, um reforço para suas idéias. Eu só gostaria que você mesmo me confirmasse que irá proceder segundo o que a prudência nos ensina.
— Sem dúvida alguma. Devo adiantar-lhe que, estando os bens de meu pai, como diz meu tio, “sub judice”, não pretendo ir morar noutro lugar, para não dar oportunidade a ninguém de se assenhorear da propriedade. De resto, depois que minha irmã morreu, as coisas se complicaram ainda mais, porque o espólio tem de ser decidido pelo juiz.
Macedo admirou-se com a desenvoltura do rapaz:
— Nada como ter um tio advogado.
— O senhor se esquece de que meu pai deixou uma biblioteca bem formada quanto aos temas do direito, biblioteca que tenho freqüentado desde criança.
O investigador tinha mais um assunto:
— Estou autorizado a lhe oferecer, pelo menos por uns tempos, a proteção adicional de uma viatura que passará as noites diante da sua residência, até que você ajeite as coisas. É preciso que eu diga que não se trata de um favor muito grande, porque o ponto em que costumam ficar os policiais é aqui perto.
Lembrou-se o rapaz dos soldados que ele cumprimentava ao sair à noitinha e dos quais se desviava ao voltar de madrugada. Mas não disse nada, agradecendo com o sinal de positivo.
Tadeu solicitou permissão para retirar-se e foi José quem o dispensou, explicando aos demais:
— A mãe e a irmã estão arrumando os pertences de Francisca, deixando tudo em ordem para que o rapaz tenha uma noite de tranqüilidade, já que passou por dois dias de sofrimento muito grande, quase sem dormir. Vai o pobre ter de refazer todos os seus hábitos de vida, de novo.
Vendo que o empregado se distanciava, Juvenal perguntou ao tio:
— Eu não entendi direito a iniciativa dele de procurar os assassinos por conta própria.
Foi Macedo quem respondeu:
— Os familiares, muitas vezes, juram vingança e querem, a todo custo, fazer justiça com as próprias mãos. Esse moço, eu acho, envolvido em mais uma tragédia, nesta com uma participação direta, vai ficar por uns tempos sem saber direito o que pensar. Daqui para frente, vai sossegar quanto a encontrar os assassinos.
Aproveitando a deixa, José fez-lhe uma pergunta:
— Em que pé estão as investigações? Lembro-me que havia uma pessoa a ser interrogada. Eu mesmo pretendia ir conversar com ela, mas estou ocupado e não deu tempo.
— Interroguei pessoalmente. Não soube fornecer nenhuma informação que nos desse alguma pista. Viu a moto se aproximar do carro mas não sabe dizer nem de que tipo, marca ou mesmo de que cor era ela. Disse que o homem que atirou desceu já atirando, como se estivesse executando as pessoas. Falou de uma sirena forte que vinha pela mesma rua e que logo o indivíduo subiu na garupa e partiram. Eu constatei que uma árvore impedia a visão da direção em que seguiram.
— O que atirou, inquiriu José, não fez menção de abrir a porta do motorista?
— A moça que presenciou toda a cena não soube dizer. Deve ter ficado muito abalada. O que ela assegurou é que o atirador era alto e magro, trajava uma roupa de jovem, calça de brim e jaqueta de couro. Ambos com capacete, sem nenhuma característica particular. Este tipo de crime está multiplicando-se nos cruzamentos com semáforos, havendo muita gente que é morta por se recusar a entregar o relógio, a carteira ou o próprio carro.
Juvenal interveio:
— Quer dizer que vocês não fizeram nada de positivo?
Macedo estava impassível:
— Vai dia, vem dia, a gente prende os culpados por outro crime e eles confessam mais esse. É típico nos procedimentos policiais. Estamos acostumados. O povo acha que se devia exercer uma vigilância ostensiva mais séria. Eu concordo. Mas é preciso não confundir as coisas: essa parte está a cargo da outra polícia.; nós só investigamos depois que o crime foi praticado.
José acompanhou toda a manifestação de Macedo, sem demonstrar nenhuma reação fisionômica. Ao término dela, perguntou a Ricardo:
— O meu amigo a que veio?
— Vim verificar o progresso de seu sobrinho no espiritismo. Depois de acontecimentos tão tristes, sempre é bom averiguar como é que as idéias doutrinárias auxiliaram a enfrentar os problemas.
— E ele correspondeu?
— Mais do que podíamos imaginar. As questões que propõe são profundas, tanto que nós não temos condições de responder. Agora mesmo, ele nos perguntou algo sobre que não tivemos uma boa explicação.
Elvira foi solicitada por um gesto de Ricardo a complementar a informação:
— Eu estava dizendo a ele que a pergunta que nos fez era impossível de responder num repente. Seria preciso um psicólogo, ou melhor, um analista para, depois de várias sessões, afirmar algo de concreto a respeito das razões de ele ser tão isento de emotividade. Perguntou se o espiritismo traria alguma explicação. É claro que traz, mas são tantas as causas possíveis, que a gente só poderia levantar hipóteses, sem que nenhuma correspondesse ao seu caso específico.
José estava muito impressionado com o teor daquela confissão. Com muito cuidado, medindo as palavras, afiançou:
— Essa característica da personalidade de meu sobrinho é antiga. Acho que data da separação dos pais, quando ele perdeu o carinho da mãe. Ou melhor, pode ter acontecido até antes, quando do nascimento de Lutécia. Aqui Freud explicaria melhor do que eu. Se ele fosse morar conosco, a tia iria cuidar dele como se fosse a mãe que não teve.
Juvenal se abespinhou:
— Nem por decreto, senhor advogado. Também não sou tão tapado assim que não possa ver o mal que ela nos causou. Meu pai foi morto a tiros.; mas atiraram num cadáver ambulante, porque ele vivia como um zumbi, sem nenhum gosto pela vida. Fizeram até um favor a ele os que o mataram. Mas esta conversa está se afastando muito do ponto essencial: como é que o espiritismo enxerga as questões individuais e como trata delas.
Ricardo viu-se forçado a participar:
— O espiritismo constitui uma doutrina que se quer científica, mas no trato com os espíritos. Tudo o mais deixa ao encargo da humanidade. Eu precisaria de um dia inteiro para desenvolver este tema. Aliás, são diversas palestras, um verdadeiro curso que tenho preparado e que a cada dois anos repito. Essa é uma fórmula eficaz para a maioria das pessoas que nos procuram e que ouvem a respeito de seus problemas de maneira bem geral, tirando elas mesmas suas conclusões. Em casos especiais, diria especialíssimos, quando nos parece um problema de obsessão, levamos o obsedado a uma sessão em que solicitamos que os guias do centro e os espíritos amigos ajam em função de afastar o espírito obsessor do encarnado. Quando não é possível, o que o mais das vezes acontece, receitamos humildade e fé no Senhor, e que a pessoa elimine os hábitos viciosos, como o da bebida, que é o mais comum. Não sei se respondi à sua pergunta, meu jovem, mas estou à disposição para maiores esclarecimentos.
Juvenal achou que já bastava por um dia ter-se exposto tanto. Não contara com a presença de Macedo, mas terminou concluindo que até havia sido muito bom que ele tivesse tomado conhecimento das perguntas e das respostas de cunho moral. Assim, deu o assunto por encerrado:
— Respondeu plenamente. Vou pensar no assunto e, se tiver outras dúvidas, Elvira me elucida.
Citada, a professora não perdeu a deixa:
— Enquanto isso, é bom avançar na leitura das apostilas e do livro de Kardec. Talvez você acrescente outros temas ao seu cabedal de dúvidas, mas, com certeza, irá resolver outras tantas.
Ricardo tomou a iniciativa de se retirar, levando consigo José e Macedo, tendo os três saído conversando a respeito do destino dos espíritos após a morte, de acordo com o grau de adiantamento.
Elvira notou que o rapaz ficara preocupado e perguntou-lhe:
— Você está pensando no Tadeu?
— Não. Eu estava pensando que dormi muito pouco de ontem para hoje e que seria bom ir descansar. Aproveite para levar Ricardo para casa. Depois de amanhã, a gente trabalha normalmente.
— Acredito que você ganharia muito se fosse ao centro nos dias de palestras. Sempre a gente reserva um tempo após a aula para ministrar passes magnéticos ou fluídicos em quem se acha necessitado.
Juvenal ficou com vontade de perguntar sobre os benefícios de tais passes, mas evitou fazê-lo, uma vez que ansiava por ficar sozinho. Desconversou:
— Vou refletir sobre isso, pode crer.
Ato contínuo, acompanhou a professora, encontrando-se com os três homens ainda entretidos no mesmo tema, na porta da garagem.
Ao se fechar no quarto, bateu-lhe fundo um sentimento misto de revolta e de saudade da irmã, verdadeira comoção moral que o levou a um pranto silencioso, enquanto enxergava o vulto dela, envolto em névoa de recordação, a cuidar da casa, diligente e prestimosa.
Quando estava consolando-se, meio entregue à sonolência daquele dia cansativo, surgiu-lhe na mente a figura de Valéria, o que lhe causou um desequilíbrio mais forte, provocando-lhe novo abalo.
Demorou para conciliar o sono, um sono pesado e desagradável, cheio de tétricas visões, onde os panos ensangüentados da bacia se levantavam a bailar soltos no espaço, borrifando-lhe o rosto e as mãos. Acordou sob a impressão de que, finalmente, alguém o ajudava a limpar-se, oferecendo-lhe um bálsamo de esperança.