Enquanto Juvenal permanecia internado, Margarida e Glorinha ficaram sem ter muito o que fazer no apartamento. Consideraram-se criadas de luxo, mantendo somente a limpeza, respeitando os objetos sob sua guarda de maneira a mais fiel possível.
Iam ao centro com freqüência, de forma que Elvira obtinha as informações de como se ajeitavam as coisas no sentido de se prepararem para o retorno do moço à casa. Tendo tomado conhecimento de que cabia à mocinha o cardápio das refeições, Elvira se interessou pelas habilidades da jovem cozinheira. Foi quando ficou sabendo que era perita em temperos, preparando salgados e doces à perfeição.
Uma certa noite, reuniram-se as três, enquanto Ricardo palestrava no auditório, porque a professora havia planejado o desenvolvimento da jovem nas artes culinárias, uma vez que desejava fazer que Juvenal se alimentasse corretamente, segundo os princípios dos valores alimentícios que cada prato podia reservar, em função da saúde do rapaz.
Depois de uma longa conversa, concordaram as três em que deveria Glorinha ler alguns livros especializados, para sentir se sua vocação era justamente aquela.
Uma semana depois, tendo ficado Margarida a cuidar de Valéria, Glorinha foi argüida por Elvira, saindo-se esplendidamente, confirmando que se tratava de uma aptidão irresistível.
— Vai ser um desperdício de talento se você se restringir a prestar serviço numa casa de família. Eu acho que você precisa, imediatamente, matricular-se numa escola de segundo grau especializada que lhe possa dar a garantia de seguir um curso superior na área da nutrição.
Glorinha não aprovou logo a idéia, objetando que precisava manter o emprego.
— Você não precisa deixar de trabalhar. Ao contrário, as tarefas diárias poderão constituir-se em uma espécie de oficina ou laboratório para você testar os conhecimentos que for adquirindo.
O que Elvira estava escondendo era a idéia que lhe ocorrera de que Glorinha poderia ir para a mesma emissora de televisão em que ela trabalhava, já que o programa estava carecendo de mais juventude na área das receitas. Sendo assim, aguardou um tempo, enquanto a mocinha se acomodava nos estudos, para sondar a titular do programa quanto a admitir uma ajudante que não só enfeitasse a cozinha experimental mas que também desempenhasse um papel com certo desembaraço no trato dos apetrechos e alimentos.
Todas essas manobras da logística promocional de Glorinha, sem que esta tivesse qualquer conhecimento dos fatos, custaram a Elvira cerca de três meses. Um belo dia, o diretor do programa chamou-a para que expusesse suas idéias, já que a velha senhora responsável pela audiência estava com algumas deficiências de renovação, repetindo os programas com uma monotonia que estava afastando o público.
Em lugar de repetir os chavões de que se utilizara durante sua campanha, Elvira sintetizou de maneira pragmática o seu plano:
— Eu tenho a pessoa ideal para exercer o papel de coadjuvante, a ponto de me responsabilizar pela afirmação de que ela terá condições de assimilar todo o aparato técnico, podendo assumir o comando do quadro, assim que for necessário. Se me permitirem a sugestão, não nos custará muito realizar um teste, montando um programa-piloto ou o que o valha, segundo as perspectivas em vista.
Acuada, a titular quis defender seu quinhão:
— Eu aceito as mudanças, desde que fique bastante claro que quem orienta os pratos sou eu. A moça deve ser mera auxiliar, caso contrário, se se intrometer na minha área, irá me causar um mal-estar muito grande.
O diretor geral achou que o seu pessoal não iria opor-se a algo que não oferecia nenhum risco de perda de patrocinadores, de forma que autorizou a apresentação da jovem para os contatos de praxe.
Mais do que satisfeita, Elvira marcou um encontro com Glorinha e ambas combinaram como seria a primeira entrevista da moça.
Glorinha saiu-se muitíssimo bem em todos os testes, descobrindo-se bem mais fotogênica do que pensava. Orientada por especialistas, desinibiu-se completamente, dando expansão ao seu natural bom humor, auxiliando a montar a personagem, destacando todos os aspectos positivos da personalidade.
Integrou-se ao quadro sem que sua presença se destacasse, deixando à vontade a apresentadora. Com sua intuição inata para o trabalho culinário, logo se constituiu em valiosa auxiliar para que o programa recuperasse a antiga leveza, terminando por sugerir seqüências de pratos muito mais populares, estimulando a audiência de um público mais vasto, modificando a própria filosofia da programação.
Não demorou, os diretores da emissora perceberam que ela havia aumentado a audiência, o que lhes ensejou a possibilidade de ampliar a participação da moça, treinando-a exaustivamente para falas mais consistentes e importantes.
Foi por essa época que Juvenal, já com as doses de barbitúricos diminuídas, estando a ver televisão no salão da clínica, deu com Glorinha em plena efervescência. Estranhou o fato porque tinha para si que ela continuava como empregada sua, tendo em vista que fora levada pela tia por três vezes para visitas no hospital e nenhuma das duas falou nada a respeito das atividades na televisão.
Imediatamente, ligou para casa, desejoso de entender-se com Margarida. De fato, foi ela quem atendeu, combinando os dois que iriam encontrar-se naquela mesma tarde.
— Será possível trazer a minha ex-cozinheira?
— Hoje ela não tem compromisso. Com certeza irá, porque tem insistido comigo para voltarmos a vê-lo.
Às duas e meia da tarde, chegaram.
Juvenal foi avisado de sua presença e logo se dirigiu ao salão de visitas. Assim que entrou, em lugar de estender a mão para o cumprimento formal de patrão para empregado, ele puxou a si as duas de uma vez e, com seus longos braços, apertou-as contra o peito, deixando claro que estava muito emocionado.
— Vocês ocupam um lugar importante no meu coração, disse-lhes, duas lágrimas a escorrerem-lhe pelas faces.
Embasbacadas, nem uma nem outra entendeu o que se passava. Então, o rapaz explicou-lhes:
— Eu vi Glorinha na televisão. Agora eu sei que vocês duas estão a pique de me deixarem. Por que não me contaram antes?
Foi Margarida quem respondeu:
— A gente não sabia se ia dar certo. Foi Elvira quem arrumou tudo. Mas, se Glorinha já faz alguns meses que pediu dispensa a seu tio, eu fiz questão de me manter no emprego, porque preciso do ordenado. É verdade que ela está ganhando um bom salário, mas é dela. E ela vai precisar do dinheiro, porque não vai ficar barato freqüentar tantos cursos com “maîtres” e “gourmets” famosos, além de ter de se preparar para a faculdade.
— Mas isso está longe ainda.
Desta feita, foi Glorinha quem esclareceu:
— Não está, positivamente. Passei para o segundo ano e já neste ano presto vestibular como “treineira”. Tenho estudado muito, com o apoio de todo o pessoal da emissora. As cartas que têm chegado são muito elogiosas e todos estão satisfeitos com o meu desempenho. Mas preciso ampliar os conhecimentos e só um curso superior de engenharia de alimentos é que vai me tornar uma profissional completa.
Enquanto a jovem falava, Juvenal olhava para ela com extrema admiração. Quão diferente se apresentava depois de apenas seis meses. Era outra criatura. Com a pele tratada e a roupa de primeira, era alguém que impunha a personalidade. Aliás, refletia o moço que ela sempre demonstrara um caráter forte, embora se mantivesse em seu devido lugar como criada.
Perpassou-lhe pela lembrança a figura de Valéria e o momento infeliz em que se imaginou abordando-a. Com Glorinha, jamais tivera qualquer fantasia. Agora estava perguntando-se a razão de ela ter vindo visitá-lo. Quem sabe não fora por alguma atração sentimental? Era a pergunta a que não resistira, intimamente.
De repente se saiu com esta:
— Como está seu namorado, mocinha?
Glorinha não hesitou em responder:
— Acho que nem ele sabe como está.
— Como assim?
— É que o rapaz não tem idéia de que gosto dele. É uma paixão a distância.
A tia interveio:
— Esta minha sobrinha, desde que está freqüentando aquele meio, tem colocado muitas idéias diferentes na cabeça. O que vale é que temos ido ao centro muitas vezes e os ensinamentos da doutrina estão pondo as coisas nos seus devidos lugares. Por falar nisso, Elvira nos contou que o senhor está lendo as obras de Kardec...
— Não me chame de “senhor”. Estou lendo também, mas o que mais tem ocupado meu tempo é o estudo das matérias do vestibular. O que me atrapalha é que, quando me dão os remédios, fico sem condições de aprender. Aí, descanso, dormindo a noite toda, ao contrário do que fazia antes, quando passava a noite em claro e dormia durante toda a manhã. Aliás, fui bem na primeira prova e estou aguardando a chamada para a segunda fase.
Foi Glorinha quem se interessou:
— E como é que você fez com seu mal-estar no dia da prova?
— O médico me autorizou a ficar quatro dias sem os remédios mais fortes, de forma que fui bem lúcido para a prova. Quando voltei, estava quase eufórico, mas a análise dos testes clínicos indicou que necessitava dos medicamentos. Isto faz um mês. Agora estou quase recebendo alta. Nem acredito quando penso que, por um triz, não tinha de ir tratar-me no exterior.
Margarida observou:
— Graças a Deus, a sua saúde está recuperada. A gente vê por sua disposição, por suas cores.
— É que os enfermeiros não me deixam um dia sequer sem os exercícios prescritos pelos médicos. No começo, foram apenas pequenas caminhadas ao sol. Agora, já começo a praticar esportes coletivos (basquete e vôlei), o que nunca aconteceu antes. Está dentro do programa de minha sociabilização.
Mais teria dito o jovem, não atinasse que estava na área das confissões íntimas. Cortou, então, a onda de revelações e perguntou a Glorinha:
— Quer dizer que você está de olho em alguém da televisão, algum ator, algum...
Glorinha, porém, o interrompeu:
— Nenhum ator nem ninguém da televisão. Bem que existem alguns arrastando as asas. Mas eu não me interessei por ninguém. A hora é de me firmar profissionalmente, conforme Elvira me tem prevenido sempre. Se eu me deixar envolver, com certeza a pessoa estará muito mais preocupada com o meu futuro promissor do que com um relacionamento que envolva a solidez de uma família. Tenho visto muitas colegas batendo as cabeças por aí, grávidas e abandonadas.
Margarida percebeu a possibilidade de Juvenal se lembrar de Valéria e logo esclareceu:
— Eu tenho acompanhado minha filha sempre que posso aos estádios, porque tem muita gente de olho naquelas moças, cujo trabalho é se exporem para o público. Não sei se ela vai ter juízo suficiente para segurar a barra, apesar de muitas colegas também estarem ali para custear os estudos. A maioria, contudo, está à cata de marido, de preferência rico...
Teria Juvenal percebido alguma insinuação relativa às intenções de Glorinha para com ele? Se percebeu, não demonstrou.
A conversa ainda se estenderia por mais duas horas, até que vieram buscar o rapaz para as atividades da tarde. O que ele não viu é que um dos enfermeiros ficou a executar anotações durante toda a visita, atento para as reações do paciente.
Juvenal ia reclamar da brevidade do encontro, mas precisou ceder à evidência de que não notara o tempo passar.