Ao se deparar com aquela cena de afeto, Moacir ficou muito otimista quanto à evolução do quadro clínico do paciente. Sabia que Juvenal jamais iria livrar-se dos medicamentos, mas assegurava-se de que o convívio social ganhava o adendo dos sentimentos.
Reservou um horário à tarde em que pudesse ter uma conversa com o moço, não sem antes requisitar alguns exames de sangue para avaliação do nível de proteínas em equilíbrio homeostático. Tendo o resultado da contagem sido altamente positivo, Moacir iria tentar sua cartada maior relativa ao tratamento.
— Meu caro jovem, eu gostaria que você descrevesse seus sentimentos para com a mocinha desta manhã.
Juvenal, que conhecia a importância da questão, respondeu de forma a atender o anseio do médico:
— Estou extasiado com a possibilidade de emocionar-me com a presença dela. Não sei se devo dizer que estou amando, porque não chego a compreender direito o que é o amor entre homem e mulher. Neste exato instante, gostaria de estar ao lado dela, já que estou começando a sentir sua falta. Quando a vi hoje de manhã e quando soube que se sacrificara para estar comigo, enchi-me de orgulho, de vaidade, como se eu representasse algo muito valioso para alguém.
— Você considera isso uma novidade? Não era como você sentia a presença de sua irmã?
— Lutécia era muito boazinha e não se revoltou quando a proibi de sair de casa. Todavia, somente depois de algum tempo é que a ausência dela representou para mim o verdadeiro sentido de uma perda. Foi algo muito desagradável que me forçou a reformar minha vida. Com Glorinha, as coisas se passam de modo bem diferente. Eu me lembro dela com vontade de tê-la junto a mim. Quanto à minha irmã, eu tenho a impressão de que está muito bem lá onde se encontra, tendo perdoado todas as minhas exigências e tudo o mais que fiz contra ela. Espírito evoluído, no meu conceito, ela sempre soube contornar os problemas. O senhor tem-me visto a ler obras espíritas. Pois, a acreditar em que descrevam a realidade da vida de além-túmulo, devo ficar sossegado, pois Lutécia carreou para lá as virtudes que desenvolveu.
— Vamos supor que ela fosse má, rebelde, desobediente.; que não tolerasse as suas restrições. Você ainda acharia que ela estaria bem agora?
— Infelizmente, doutor, se ela fosse do jeito que o senhor está dizendo, dificilmente estaria naquele carro, naquela hora em que atiraram nela. O mais certo seria estar com a mãe, com cujo gênio combinaria.
— Foi bom você ter citado sua mãe. Quais seriam suas reações se ela viesse visitá-lo?
— Só com o fato de o senhor estar a levantar essa possibilidade, já fico excitado. Não faça isso, por favor.
— Nós podemos colocar vocês dois frente a frente no locutório. Ali vocês ficariam separados pelo vidro. Não haveria contato físico, só visual.
— Preciso me acostumar à idéia. Talvez, se ela viesse sozinha, sem as crianças nem o marido... Vou pensar.
De repente, assaltou-lhe uma dúvida:
— O senhor não disse a ela onde estou, disse?...
— Não disse mas não sou a única pessoa que sabe de seu paradeiro.
— O senhor quer dizer que meu tio ou outra pessoa pode ter batido com a língua nos dentes?
— Estou percebendo que a sua agitação pode significar algo mais do que simples preocupação. Veja se você é capaz de se acalmar sem tomar remédio.
O aviso chegou na hora certa. Juvenal compenetrou-se de que estava deixando-se envolver por ondas de ódio, caracterizando claramente uma reação que há algum tempo não apresentava. Entendeu que precisava superar a crise por esforço próprio e, sem que tivesse estruturado tal tipo de resposta, pela primeira vez, fez uma prece solicitando ajuda ao protetor, “seja ele quem for”, incluindo um pedido de mais sabedoria para compreender os dramas da mãe.
Em alguns minutos, estava relembrando a lépida figura de Glorinha, ouvindo-se admirado a dizer:
— O senhor pode trazer minha mãe. Vamos ver no que dá.
— Quer marcar um dia e uma hora?
— O que ela mesma determinar, se é que o senhor não vai encontrar resistência da parte dela. De qualquer forma, é bom eu confirmar com meu tio alguns assuntos atinentes à partilha dos bens de meu pai. Acho que está na hora de ir preparando minha volta à vida ativa.
Antes que anoitecesse, sobrinho e tio travaram o seguinte diálogo:
— Tio, eu pedi que viesse para que me diga em que pé está a oferta que fiz à minha mãe, quanto à partilha.
— Você me havia dito para propor que a casa ficaria com ela, com tudo dentro. Pois bem, ela aceitou.; mas quando eu lhe contei a respeito do atentado que você sofreu, ela se resignou a dividir a propriedade e decidiu-se a retirar a demanda, desde que você concorde em vender a casa, assim que passar às suas mãos, o que irá demorar, tendo em vista a divisão relativa à parte que caberia a Lutécia.
— Quer dizer que, propriamente dito, estamos na mesma.
— Não estamos, não. À vista do meu assentimento oficial, ela cumpriu a palavra e já anulou a petição, retratando-se e acatando o testamento de seu pai.
Juvenal calou-se, aguardando que o tio fizesse algum comentário. Este, porém, não quis manifestar-se quanto às decisões tomadas, silenciando também.
Depois de alguns minutos, Juvenal perguntou:
— O senhor acha que eu devo recebê-la para uma conversa franca?
— Desde quando vocês não conversam?
— Depois que ela partiu, nunca mais falei com ela, uma, porque meu pai não deixou.; outra, porque eu fugi dela em todos os enterros, pois só assim é que nós poderíamos encontrar-nos. A última vez que eu a vi foi no velório da Francisca, assim mesmo de longe, sem que ela me tivesse notado.
— Neste caso, qual é o seu interesse?
— Foi o médico que sugeriu. Ele acha que a avaliação do meu tratamento deve passar por essa prova.
— O que você pensa a respeito?
— Eu estou quase bom, se não inteiramente curado.
— O que o faz pensar assim?
Juvenal não estava muito disposto a confessar sua simpatia por Glorinha. Então, saiu pela tangente:
— Eu estou arrependido por ter tomado tantas decisões que afastaram as pessoas que confiavam em mim. A começar por Tadeu...
— Tadeu me contou que você lhe deu uma boa soma.
— Mas não cumpri minha promessa de fazer que ele passasse por um treinamento profissional nem que habitasse a casinha dos fundos.
— Quanto a isto, pode ficar sossegado. Eu o mantive no emprego e providenciei para que pudesse ter um porte de arma legal. Não contei antes porque você não se achava em condições de se envolver com tais preocupações. Ele se casou e está tomando conta de tudo, inclusive com dois cães adestrados para a guarda da propriedade. Quanto a isto, a sua consciência pode ficar tranqüila.
Juvenal achou que o tio agira muito bem mas não lhe disse nada, meditando a respeito da menção à consciência.
Finalmente, observou:
— Voltar a morar naquela casa eu não vou. O apartamento me deixa muito mais sossegado, principalmente porque o sistema de segurança não é tão primitivo.
— Eu concordo com você e, por isso mesmo, mandei instalar na casa um sistema completo de alarmes sonoros e visuais, inclusive com comunicação direta com uma companhia de vigilância e proteção.
— Quer dizer que, seu eu quiser entrar, não vou conseguir.
— É claro que você precisará aprender a não disparar os dispositivos. Mas isso só se você quiser entrar à noite. De dia, Tadeu mantém os cães cativos e os alarmes desligados.
— Foi boa a nossa conversa, porque eu pretendia ir direto para lá, assim que saísse daqui. Eu queria saber se ninguém havia invadido a propriedade.
— Você não confia no seu tio?
— Desculpe. Eu devia saber que o senhor ia tomar conta de tudo.
— Não só eu. Margarida também vai uma vez por semana vistoriar a casa e mantê-la limpa. Desde que você se internou, ela vem desdobrando-se, deixando tudo preparado para sua volta.
— Ela não me disse nada.
— Eu é que pedi que ficasse calada.
— Até parece que o senhor não sai do apartamento.
— A gente se encontra no centro espírita pelo menos duas vezes por semana. É lá que eu tenho feito o pagamento dos ordenados.
— E quais são as novidades mediúnicas?
— Eu nunca mais participei desse tipo de sessão. Mas posso dizer-lhe que tenho ouvido as fitas e lido as mensagens. São páginas não muito inspiradas. Perto das obras que tenho lido, antigas e modernas, as entidades que ali comparecem estão mais ligadas às pessoas da comunidade. Por isso, o tema dos textos gira sempre em torno dos assuntos da moralidade prática de quem precisa purificar os costumes, superando defeitos e praticando o bem.
— Nenhuma notícia de meu pai ou de minha irmã?
— Não que eu saiba. Se houvesse algo, eles me passariam logo. Eu acho que os médiuns têm um pouco de receio de assinar com nomes conhecidos, preferindo as expressões “um espírito amigo”, “um familiar esquecido”, “o protetor do médium” e assim por diante. Se alguém assinasse Renato, por exemplo, precisaria que a mensagem estivesse de acordo com o superior intelecto de meu irmão, lente universitário e advogado famoso.
A conversa prosseguiria um pouco mais, sem que Glorinha fosse citada. Resguardava-se o jovem, dando a si mesmo mais tempo para confirmar sua inclinação afetiva.
No dia seguinte, Moacir entrou em contato com Terê, pedindo-lhe que comparecesse para uma entrevista preparatória do “tête-à-tête” com o filho.
Pontual, ela compareceu no horário combinado, tendo recebido do médico o quadro geral da doença do filho, bem como os riscos de recaída caso ela reavivasse com cores muito fortes o panorama da época em que houve a separação do casal e o abandono dos filhos.
— Mas, doutor, perguntou ela, se é tão grave a situação, qual a importância de nós nos encontrarmos?
— A importância reside no desencadeamento de uma série de reações violentas que as pessoas esquizofrênicas são capazes de gerar e que a ciência está em condições de avaliar e de conter. Como nós caracterizamos a sua atitude como o centro de todo o distúrbio, o fator que provocou o desarranjo mental da criança, estamos contando com sua participação para o reequilíbrio da mente de seu filho, ou, na pior das hipóteses, para a fixação de diretrizes mais drásticas para a seqüência do tratamento através de drogas. No entanto, é preciso colocá-lo sob uma pressão controlada.; por isso é que estou pedindo-lhe para que não o exaspere, não o deixe nervoso com revides às possíveis acusações que ele poderá fazer-lhe. Saiba que ele possui todos os traços de uma violência incubada, a qual poderá aflorar durante a entrevista. Creio que será prudente que vocês conversem no ambiente protegido do nosso locutório, onde uma parede de vidro separa os visitantes dos pacientes.
— Ele está de acordo com isso?
— Eu acho que ele não tem voz ativa, neste caso.
— O senhor há de convir que, apesar de tudo o que se passou em nossa vida, eu ainda sou a mãe dele.
— Pois eu acho que agravar o relacionamento não irá trazer-lhe nenhum conforto. Neste caso, é preferível deixar as coisas no pé em que se encontram.
— Pois eu não penso assim. Ele tem sofrido muito mais do que eu supunha. Eu pensava que a morte de minha filha iria fazer que ele quisesse reatar os vínculos familiares, uma vez que ficou sozinho. Ao contrário, fugiu não só de mim mas de todo o mundo, conforme o senhor mesmo atestou. Mas eu acho que existe uma espécie de boa vontade da parte dele, tanto que me ofereceu o que eu achava ser de meu direito: uma parte da herança do pai.
— Essa é uma informação muito valiosa. Contudo, o contato pessoal é ainda o meio mais eficaz de chegarmos a uma conclusão precisa de como evoluiu a moléstia. Estamos em condições de verificar as conseqüências do estresse a que ele se submeterá. Mas é bom que a senhora saiba que ele é muito inteligente e tem consciência dos sintomas da doença de que esteve acometido e conhece a importância do controle das emoções de caráter negativo.
— Sendo assim, eu lhe peço para preparar-nos um encontro numa sala comum.
— Neste caso, existe uma dificuldade: vou precisar dopá-lo um pouco, porque as impressões serão muito mais enérgicas.
— Não basta que o senhor esteja presente?
— Talvez bastasse, mas eu precisaria estar mais seguro de que ele não vai tornar-se violento.
— É tão grave assim? O que ele será capaz de fazer?
— Poderá atacá-la num acesso de raiva, já que todo o rancor e o ódio que concentrou nos últimos anos não se diluíram de todo através dos sucessos trágicos que recaíram sobre ele ultimamente.
— Apesar de tudo, eu confio em que seja capaz de superar os ímpetos de furor, já que tem estado bastante calmo a ponto de estudar para os exames. Segundo o tio, ele tem lido obras de caráter moralista e está acreditando na sobrevivência da alma após a morte. Quem questiona a justiça dos homens, com fé na justiça de Deus, não pode deixar de exercer sobre si mesmo uma vigilância moral.
Moacir admirava as colocações da senhora, inesperadas para quem fizera dela um conceito negativo. No entanto, não quis investigar a origem daquele padrão de raciocínio religioso. Ficou na área de seu conhecimento:
— Eu cumpri o meu dever de alertá-la para os fatos adversos que poderão ocorrer. Reconheço que se trata de mãe e de filho e que é de seu direito reivindicar a benquerença dele, já que a senhora demonstra que ainda o tem em muita consideração.
— Eu reconheço que agi mal, mas, se ele me acusar, vai permitir-me uma defesa que venho preparando desde há muito. O que lhe posso garantir, doutor, é que não haverá bate-boca, nem gritaria. Caso ele se transtorne, eu lhe peço para intervir, como eu sei que se intervém em casos de ataques físicos perigosos.
— Agora eu já tenho mais alguns argumentos para discutir com ele. Muito obrigado pela sua compreensão e desculpe-me posicioná-la...
— Eu é que lhe agradeço por tudo quanto o senhor tem feito pelo Juvenal. Deus lhe pague!
Quando o paciente ouviu a gravação sem cortes da conversa, não deixou de manifestar seu deslumbramento pela postura altamente inteligente, moralizada e até religiosa, daquela criatura contra quem vinha invectivando desde a infância.
Concordou em vê-la na sala de visitas em que estivera com Glorinha e pediu a Moacir que marcasse o encontro para breve.
Decidiram, então, que deveria ser no dia seguinte, porque, qualquer que fosse o resultado da reunião, haveria tempo para Juvenal preparar-se para as provas que se aproximavam.
Bem cedo, Moacir determinou a medição de vários índices orgânicos que pudessem demonstrar um desvio do padrão. Nada havendo que alertasse para uma crise, avisou Terê para que chegasse às nove.
Quando a mãe entrou no salão, viu o filho sentado à luz do sol que varava por uma janela, ao lado de Moacir. Este se levantou assim que a avistou e foi cumprimentá-la à porta, sussurrando-lhe que tudo estava bem.
Juvenal levantou-se para recebê-la, com breves expressões:
— Como vai a senhora?
— Estou bem e você?
— Também estou bem. E as crianças?
— Crescidas e bonitas.
— Sente-se, por favor.
Ambos se sentaram, permanecendo calados.
O médico ficou separado, mas atento para gravar toda a conversa.
Depois de alguns minutos de silêncio, Terê não suportou o olhar do filho concentrado em seu rosto, quebrando a promessa de só falar depois dele:
— Você deve estar reparando que as rugas estão marcando por demais os meus traços.
— Não. Eu estou observando que a senhora, ou melhor, que Lutécia era muito parecida com a senhora.
— Sinto muita saudade dela.
Era uma espécie de provocação calculada. Juvenal mordeu a isca:
— A senhora não deve sentir tanta saudade, já que a deixou quando partiu.
— O que você não sabe, é que nós nos falávamos diariamente.
— Nunca vi seu número nas contas dos telefones.
— Eu me correspondia com ela pela Internet.
— Então foi a senhora que me respondeu...
— Na verdade, foi meu marido.
Juvenal torcia as mãos mas mantinha o ânimo inalterável. As revelações apanharam-no de surpresa. Mas continuou no tema:
— Pois ela nunca me disse nada a respeito.
— Nem podia. Naquele tempo, você a impedia de sair de casa. Antes disso, eu a visitava regularmente na escola, onde podíamos trocar confidências. Se você não estiver acreditando, é fácil comprovar com a diretora ou com as coleguinhas.
— Quer dizer que ela traiu minha confiança.
— Você não era o pai dela. Aliás, o tutor era o seu tio José e ele estava a par do que ocorria e nos apoiava.
— Outra traição.
— De forma alguma. Se ele contasse a você, as coisas iriam ficar bem piores. Não se esqueça de que você estava doente.
Juvenal não pôde retrucar como teria feito um ano atrás. Contrariando, contudo, o que havia combinado com Moacir, tornou-se mais ríspido:
— Vamos pôr as cartas na mesa: a senhora é que me causou a minha doença. Foi a senhora quem abandonou o lar, o marido e os filhos. Foi a senhora quem procurou outros homens. Foi a senhora a culpada pela morte de meu pai, que só foi assassinado porque já não sabia mais o que fazia, saindo para beber, visitando vamos lá saber que antros de criminosos e prostitutas...
— Agora você disse a palavra mágica. Você quer me acusar por eu ter sido uma mulher de vida fácil?
— E não foi?
— Aquelas que você paga não são seres humanos?
— Não conheço nenhuma que tenha abandonado os filhos...
— Você quer que eu diga o nome das mães e dos filhos e conte os dramas de todas elas daquela casa de tolerância?
— Quem pertenceu ao meretrício...
— Eu sempre tive meios de saber por onde você andava e anda. Quer que eu lhe fale a respeito da quadrilha que você chefiava?
— Filho de prostituta só podia ser bandido mesmo...
— Você acha que Lutécia merecia essa sua observação?
— Ela não teve oportunidade porque eu não deixei.
— Diga uma só coisa que ela tenha feito de errado, além de conversar comigo e não falar nada a você?
— Se ela tivesse ficado solta no mundo...
— Acontece que você não pode me acusar de tê-la abandonado. Como também não pode dizer nada em relação à minha nova família e às minhas filhas. Eu sei que não agi direito com as crianças quando saí de casa. Quanto a você, eu não tinha o direito de fazê-lo. Mas eu queria levá-los comigo. Seu pai é que não me permitiu, ganhando a causa da guarda dos filhos em todas as instâncias.
— Nunca soube disso.
— Você era muito pequeno. Mas eu devo dizer que eu tinha minhas razões para deixar seu pai, inclusive o fato de que ele, quando bebia, e ele bebia muito, me xingava, tornando a minha vida insuportável. Ele só se aproximava de mim por necessidade, se é que você me entende. A pessoa que ele amou na vida foi a primeira esposa, Marilu. Ele nunca se refez daquele choque. Você vai me perdoar manchar a lembrança de seu pai, mas a verdade é essa, sem contar que ele ganhava muito dinheiro dos traficantes e criminosos que livrava da cadeia. Você acha que eu vim aqui para lhe dizer essas coisas? Ponha a cabeça no lugar. Tudo já passou, como tudo vai continuar passando. Se a gente se separar de novo um com mágoa do outro, só vamos estar adiando a solução dos nossos problemas. Você não acha, meu filho, que já está na hora de entender que me deve a vida e não a morte? E que coube a seu pai uma parte muito importante nos acontecimentos que acabaram com a sua internação?
Enquanto a mãe falava, Juvenal analisava o fato de ela conhecer-lhe a vida noturna. Sem responder à pergunta, interrogou-a de chofre:
— Foi a senhora quem mandou a polícia investigar o que se fazia na boca de fumo?
Terê franziu a testa, compenetrada em como deveria responder. Demorou alguns instantes com o olhar perdido no fundo da sala até que se dirigiu ao filho, com os olhos marejados:
— Eu achava que era para o seu bem.
— Mas, mãe, se a polícia me prende, como é que a senhora acha que eu ia sair da prisão?
— Naquela hora eu pensei em libertar Lutécia de seu jugo. Eu não estava pensando só em você. E as pessoas cujos vícios você favorecia? Nunca pensou nisso?
Moacir mantinha-se afastado, porém, o rumo do diálogo estava no ponto mais perigoso para provocar uma recaída. Se Juvenal conseguisse suportar as invectivas da mãe, certamente iria receber alta em breve.
O rapaz é que estava admirado de sua própria reação. Em outra época, se se visse sozinho com ela, metade do que ela lhe revelou bastaria para atacá-la feito o cão que matou Francisca. Mas teve frieza suficiente para entender que a mãe possuía conhecimentos que saberia usar para deixá-lo calado.
Naquele instante de suprema agonia intelectual, as lágrimas da mãe se misturaram às lembranças da irmã que o fizeram chorar uma certa noite. Relutou em prosseguir seu desabafo. Voltava-se contra sua fraqueza em deixar-se influenciar pelo sentimento daquela pessoa que ele, na verdade, desconhecia. Abateu-se, finalmente, desviando o olhar para o chão, concluindo que fora vencido em seu ódio. Também ele causara muita desgraça, muitas bem maiores do que aquela que o levara a tantos desatinos.
Terê ousou afagar-lhe os cabelos. Ele não ofereceu resistência ao carinho. Ao contrário, ergueu a cabeça e revelou uma face transfigurada, como se, de repente, tivesse sido agraciado pelo perdão de todos os inimigos que constituíra em sua curta existência. Antes de ser empolgado pelo abraço da mãe, ainda lhe passou pela mente, no turbilhão de sentimentos que mal era capaz de controlar, a idéia, ou melhor, a imagem fugidia de uma criatura que, em outros tempos, se dignara aceitá-lo no ventre, apesar da forte rejeição da parte dele. Não teve tempo, contudo, para analisar a impressão, sentindo o calor do corpo de Terê que o agasalhava ao seio, agarrando-o pela cabeça, enchendo-lhe as faces de beijos e pranto. Dir-se-ia que ambos choravam.
Moacir regozijava-se, ele mesmo comovido, rompida a barreira de sua rigidez profissional.