Juvenal foi levado por Macedo para a delegacia, onde foi autuado por homicídio.
José, não tendo forças nem conhecimentos específicos para defendê-lo, contratou um advogado do antigo escritório do irmão.
Por achar-se mentalmente perturbado, o delegado poupou o rapaz, sendo-lhe permitido ficar numa cela improvisada, já que corria entre os do cárcere que o moço era um monstro que era preciso eliminar.
Macedo foi encarregado de interrogá-lo informalmente, já que interessava ao escalão superior da polícia descobrir quem eram os que lhe haviam dado proteção.
— Qual a origem, meu filho, de todo aquele dinheiro que encontramos no apartamento?
— Você vai precisar perguntar ao Doutor Renato. Foi ele quem guardou os dólares e o ouro. Eu só gastei.
— Por que você levou para um lugar inseguro?
— Nas contas de Deus, a César o que é de César, a Brútus também.; e até para a Mocinha.
Macedo desconfiava de que o jovem estava fingindo. Queria confirmar a solidez do raciocínio dele:
— Esses cães já morreram.
— E estão no céu da cachorrada. Você sabia que os animais também vão para o céu?
Juvenal olhava para Macedo, mas seu olhar não se fixava nele. Era como uma direção obrigatória, por ouvir as frases partirem daquele ponto. Achava que a sala estava cheia e que as demais pessoas respeitosamente permaneciam caladas.
— Você gostaria de discutir alguns pontos da doutrina espírita?
— Você não sabe que Deus perdoou todos os que mataram Jesus? Então, ele também me perdoou, porque eu matei gente muito menos importante.
— Quem você matou?
— O investigador disse que eu matei meu pai e minha irmã. Mas eu não matei, não. Eu os enviei para perto do Senhor. Eu só queria me desfazer deles. Eu era muito forte e poderoso e eles eram muito fracos e viciados.
— Qual era o vício de sua irmã?
— Ela passava o dia todo limpando a casa.
— Não é verdade. Ela tinha empregadas. Ela só fazia o que você mandava.
Macedo esperou inutilmente por uma observação pertinente ao tema. Ao invés disso, Juvenal, depois de muito tempo, acrescentou:
— Eu nunca vi minha mãe limpando a casa.
— Onde você escondeu as armas?
— O segredo é a alma dos negócios.
— Quer dizer que você escondeu as armas?
— Meu pai tinha tudo bem escondido. Qualquer dia o que está no fundo da terra vai aparecer.
— Quem foi que tirou você de nossas mãos?
— Os cobradores. Gente que quer me escravizar. Eu vou dizer de uma vez por todas: o mundo está carunchado. Só as águas dos oceanos levantando-se para lavar toda a terra de tanta sujeira. Eu queria tanto ser normal...
— Aquele dinheiro todo era para os cobradores?
— A verdade está sempre muito perto da gente, mas a gente não vê. Foi você que pegou a grana. Então você é o cobrador. Eu vou fazer o exame vestibular na semana que vem. Preciso estudar, mas não tenho nenhum livro. Será que alguém avisava a Professora Ângela para reunir os alunos? Amanhã bem cedo eu vou ao cursinho. Mas eu não vou levar nenhuma arma, porque podem querer me devolver.
Macedo cansou-se mas não desistiu. Planejou melhorar as condições mentais do suspeito, convocando Moacir para vir examiná-lo e administrar-lhe os medicamentos da derradeira receita. Entretanto, teve de ouvir uma resposta negativa. Que ele levasse o paciente ao hospital. Lá o tratamento seria ministrado, conforme a prescrição.
O detetive concentrou-se na receita. Quem poderia ter ficado com a pasta? José ou Glorinha. Ligou para o advogado. Não fora ele. Então, deveria estar com Glorinha. Como localizá-la àquela hora da noite? Através de Margarida e esta através do pessoal do centro espírita.
Enviou uma viatura para achar a moça e a pasta médica, enquanto recebia o advogado de Juvenal, que requeria uma entrevista com o cliente.
O Doutor Dirceu chegava com sua equipe de estagiários composta de cinco membros. Por ordem do delegado, foi levado à sala em que se dava o interrogatório de Macedo.
Frente a frente com o detetive, Dirceu foi logo expondo sua intenção:
— Se o senhor não tiver uma prova concludente dos fatos de que acusou o rapaz, vai sofrer todo o rigor das medidas que tomaremos por abuso de autoridade. E não estou referindo-me à detenção desta tarde, mas àquela da manhã.
— O doutor advogado poderá ler as peças do inquérito. Lá estão todos os indícios relativos à autoria dos crimes.
— O senhor poderia dizer, informalmente, como chegou a formular a peça acusatória, uma vez que se fez passar por amigo da família? Consta que o senhor visitava tio e sobrinho regularmente, inclusive freqüentando os mesmos locais de cultos religiosos juntos.
— Eu jamais deixei de ser amigos deles. Nem deixarei. Trata-se de pessoas de boa educação.
— Mas que, tudo indica, não mereceram o seu respeito.
— Ao contrário. O fato de eu ter lançado voz de prisão ao jovem está a indicar que precipitei os acontecimentos que, vai dia, vem dia, viriam à tona. Enquanto permanecessem ocultos, dariam motivo muito forte para que a situação apenas se agravasse, tendo em vista que a consciência doutrinária espírita que ele vinha adquirindo estava forçando-o a crises mentais, tanto que ficou internado nos últimos seis ou sete meses.
— Ele confessou?
— Praticamente. Mas nós não lavramos em termo as declarações.
— Por que não?
— Porque esperávamos a presença do causídico que iria representá-lo junto ao ministério público. E também por termos levado em conta a nossa amizade.
— Essas razões são meio surrealistas. Perdoe-me, mas deve ter havido algo mais. O que o senhor tem a me dizer das valises com os dólares e dos lingotes de ouro que apreendeu? Será que não existe algum interesse subalterno? Querem vocês ficar com os valores em troca da liberdade do meu cliente?
— Vou fazer de conta que não ouvi. O doutor sabe que eu bem poderia acusá-lo de tentativa de suborno.
— Faça isso. Vamos ver de que lado a corda vai quebrar.
— Doutor Dirceu, não há motivo para esta querela. O dinheiro está arrolado integralmente. Existem testemunhas e tudo foi contado e recontado no local da apreensão, na presença de dois funcionários do condomínio. Uma vez que se prove a origem legal dos valores, todo o montante será devolvido ao dono.
— Vamos deixar que o tribunal decida a respeito.
— Doutor, eu não quero outra coisa.
— Agora nós precisamos conversar com o acusado. O senhor nos permite ficarmos com ele?
— Vou providenciar para que ninguém os incomode. Os senhores terão uma hora ou mais, caso precisem.
— Muito obrigado.
Fechada a porta, Dirceu dirigiu-se a Juvenal:
— Como está, rapaz? Está sendo bem tratado?
Só então Juvenal procurou reconhecer a pessoa que vira algumas vezes na vida. Não tendo uma lembrança clara, não se interessou pelo advogado, julgando-o mais um policial a serviço da lei:
— Vocês sabem o que fazem. O que me mandarem executar, eu cumprirei sem tugir nem mugir.
Atinou logo Dirceu que seu cliente estava incapacitado mentalmente. Nem quis prosseguir conversando com ele. Mandou chamar Macedo, que muito se admirou da rapidez com que foi requisitado.
— Escute, aqui, detetive, foi logo interpelando-o o advogado. Este rapaz está em estado de choque. Precisa ser internado imediatamente.
— O senhor me desculpe, mas não lhe reconheço autoridade nem competência para uma conclusão desse caráter. Só um médico poderá atestar...
— Os senhores não deveriam ter tomado alguma providência?
— Na verdade, tomamos.
Macedo, em breves palavras, narrou que Moacir se havia recusado a ir ver o paciente, bem como que estava providenciando a vinda da receita.
— Em suma, concluiu Macedo, o senhor pode perceber que não abusamos de nossa autoridade, pelo menos no grau de suas suspeitas.
— Vamos aguardar uma comunicação de seus comandados. Não dá para saber se encontraram a namorada? Não me custa ir buscar uma cópia da receita no hospital. Basta...
— Tudo bem, doutor. Eu vou verificar pelo rádio se eles já têm uma resposta positiva.
— Antes de ir, quem, além do senhor, poderia esclarecer-me quanto às investigações que culminaram na acusação?
— O doutor delegado. Todas as minhas ações foram precedidas de explícitas ordens de serviço.
— E quem mais?
— Houve consulta a autoridades superiores.
— Eu quero saber ao nível do senhor.
— Somente alguns policiais militares que participaram de algumas diligências. Mas nenhum deles com conhecimento completo dos acontecimentos.
— Volte logo para tratarmos, ainda informalmente, se o senhor estiver disposto a colaborar em nome da amizade que está declarando, a respeito de alguns tópicos do mais alto interesse de meu cliente.
Enquanto se digladiavam advogado e inspetor, Juvenal permaneceu alheio a tudo, confabulando consigo mesmo a respeito da necessidade de prestar exame de habilitação acadêmica. O pobre queria deixar a prisão para ir diretamente para a faculdade. Mas não se via premido por uma necessidade qualquer. Ao contrário, enchia-se de paciência, compreendendo que o tempo longe do tumulto de fora corria a seu favor. Na rua estavam os fantasmas que iriam persegui-lo irremediavelmente. Naquele quarto, ao menos, toda aquela gente não dizia nada para ofendê-lo, nem ninguém tinha qualquer atitude agressiva.
Em alguns minutos, voltou Macedo com a informação de que o prontuário médico estava sendo trazido. Antes que chegasse, com a lista dos remédios da receita fornecida por Glorinha, o detetive pôde providenciar que um farmacêutico viesse ministrar as doses prescritas, de forma que Juvenal acabou sendo medicado antes mesmo do que se fosse encaminhado ao hospital.
Dirceu, temeroso de que poderia ter havido engano na transmissão dos nomes e doses, confirmou com Moacir se poderiam ser ministrados daquela forma. Inquirido pelo médico a respeito do estado geral do paciente, insistiu em afiançar-lhe que o rapaz estava alienado, não dizendo coisa com coisa. No entanto, Moacir manteve o tratamento, insistindo no fato de que havia necessidade de internação. Dirceu prometeu-lhe que iria empenhar-se para levar o rapaz naquela mesma noite ao hospital.
De fato, de posse das informações técnicas que lhe foram passadas, o advogado procurou convencer Macedo de que a condição de prisioneiro de Juvenal se manteria mesmo no hospital. Bastaria que fosse designado um ou mais soldados para a guarda.
À vista do arrazoado, penalizado com o estado emocional do amigo, Macedo cedeu:
— Vamos conversar com o doutor delegado. Se ele concordar, nós providenciaremos a remoção do detido.
Enquanto conversavam, chegaram os policiais trazendo Glorinha e Valéria, esta substituindo a mãe, que se recusava a entender como é que podia alguém matar pai e irmã, além de outras pessoas inocentes. Houve uma cena desagradável quando Glorinha disse que iria confortar o rapaz, tentando a tia impedi-la de sair de casa. Valéria, contudo, tomou o partido da prima, mais por curiosidade de ver o estado em que se encontrava o jovem do que por altruísmo e compaixão. Sentiu-se também interessada em caracterizar o relacionamento afetivo do casalzinho.
Assim que chegaram à delegacia, Macedo percebeu a entrada delas e, deixando Dirceu conversando com o delegado, foi servir de cicerone às moças, para conduzi-las à sala de interrogatórios.
Quando assomaram à porta, viram logo que Juvenal estava absorto, com o olhar perdido num ponto da parede.
Glorinha quis avançar de encontro a ele, mas Macedo a impediu, dizendo-lhe baixinho:
— Ele acaba de receber os remédios. Mal devem ter iniciado seu efeito. Não vamos provocar-lhe uma reação muito forte com sua presença. Deixe que ele recupere a noção das coisas e vamos esperar que a reconheça. Você não veio para causar-lhe nenhum dano, mas para ajudá-lo, não é assim?
— Ele está precisando de mim.
— Está precisando de todos nós.
Pareceu a Glorinha que o detetive, de algum modo, estivesse provocando-a. Mas não respondeu. Sentou-se na cadeira que lhe foi apontada, permanecendo Valéria atrás dela, afagando-lhe os cabelos.
A movimentação dos estagiários e dos recém-chegados acabou chamando a atenção do rapaz, que se voltou a ver se entendia o que se passava. Tinha a mente ainda turbada e a visão não inteiramente definida. Quando percebeu Glorinha à sua frente, levantou a mão, apontando para a direção dela, gaguejando:
— Lutécia, minha irmã, perdoe-me, pelo amor de Deus!
Ajoelhou-se ali mesmo, sem ousar aproximar-se das moças.
Glorinha fez menção de levantar-se, mas Juvenal voltou a falar de forma quase incompreensível:
— Eu sei que você me perdoou.
Disse mais algumas palavras cujo sentido se perdeu, caindo de borco, não dando tempo a que os que o rodeavam o sustentassem.
Glorinha ganhou rapidamente o espaço que os separava, sentando-se no chão, conseguindo tomar a cabeça do amado, depositando-a no colo, enquanto o beijava nas faces, nos olhos, na testa, na boca, repetindo que ele ia ficar bom, que Deus é pai de misericórdia, que Jesus banha com sua luz a todos os pecadores arrependidos.
Juvenal voltou a expressar-se com sua voz roufenha, desta vez inteligivelmente:
— Glorinha, peça para Lutécia vir me consolar mais uma vez.
E apontava para Valéria que permanecera extática junto à cadeira.
Valéria, por seu turno, exclamou quase imperceptivelmente:
— Que faço agora, meu Deus?
Na porta desde o momento em que Juvenal se voltara para as primas, Ricardo assoprou-lhe:
— Faça o que ele está pedindo.
— Mas o que devo dizer?
— Repita comigo: Eu lhe pedi...
E Valéria foi repetindo meio hesitante:
— Eu lhe pedi que não confessasse seus crimes. Mas eles já eram conhecidos. Saiba, contudo, que todos nós o perdoamos do fundo do nosso coração, já sabendo que Jesus está rogando por você junto ao Pai que está no céu. Quem é que, perdendo uma ovelha, não deixa as outras para ir procurá-la? E quando a encontra, não é verdade que reúne os amigos para regozijarem-se com a felicidade de seu coração? Então, é preciso confiar na infinita bondade do Criador que não quer o sofrimento de suas criaturas, mas sua eterna bem-aventurança. Reze comigo, mesmo que não repita em voz alta as palavras.
Valéria entendeu que deveria dizer um pai-nosso, que foi acompanhado em silêncio pelo moço. Ao final, em coro com Glorinha, conseguiu ele dizer:
— Graças a Deus!
No mesmo instante, Ricardo puxou a moça para fora, fazendo que desaparecesse do campo de visão do prisioneiro, afiançando a ela que seria melhor que se mantivesse a ilusão.
Ali fora, Elvira enlaçou a jovem pela cintura, afirmando-lhe:
— Você foi brava e corajosa. Sua boa vontade vai ajudar na recuperação do nosso infeliz companheiro, que vai precisar de todo apoio moral das pessoas esclarecidas. Muito obrigado por ter vindo.
Dentro da sala, aconchegado no colo de Glorinha, mais tranqüilo, Juvenal adormeceu.