Lourival estava nas últimas. Em coma durante quinze meses, não recuperara a consciência. Mas, nestes instantes finais, tudo parecia revolutear-lhe no cérebro, como nos preparativos para o desfile das lembranças da vida.
Que fizera o espírito durante tão prolongada estadia no hospital? Nada realmente importante. Fora convidado a participar de reuniões mediúnicas, como assistente, para aprendizagens várias, mas recusou-se peremptório, no velho temor de não se saber seguro quanto às represálias que estimava fossem fazer-lhe.
Não deu ouvidos aos preceptores espirituais e manteve-se incrustado no corpo, na vigilância inconcebível de cada pequenino estágio das deteriorações mentais, vendo o cérebro ir destruindo-se irremediavelmente para a recomposição da vida.
Certa feita, ouviu os médicos diagnosticarem morte cerebral, embora não tivesse entendido nada das leituras que se fizeram nos aparelhos que lhe mediam as reações, segundo os estímulos elétricos ou químicos dos medicamentos.
Sabia que não voltaria, mas rejeitava a idéia de afastar-se, temeroso de ser enterrado vivo.
Certo dia, adentrou no quarto, irrompendo em pranto, a esposa querida, jogando-se sobre o corpo inerte, que jazia cadavérico sobre o leito.
Lourival aspirou fortes haustos de oxigênio, na esperança de arfar e gemer, para demonstrar estar absolutamente cônscio da situação.
Ali perto, alguns seres apontavam risotas para o seu lado, mas não lhes deu maior atenção, julgando-se mais esperto.
Quando lhe vieram dar o banho mortuário, não acreditava ainda que houvesse morrido e que os estímulos vitais tivessem passado completamente. Achava que havia a possibilidade de ressuscitamento, contrariando todos os pareceres médicos.
Diante das flores, amorteceu o entusiasmo pela vida, mas se deixou embalsamar, conformado. Sabia que nada mais poderia fazer.
Acendeu-lhe, então, a curiosidade pelos eventos seguintes.
O choro dos familiares ressoava distante. As risotas dos circunstantes magoavam-no, mas sem considerar direito por quê. A frieza dos que manipularam a carcaça para depositarem no ataúde fez-lhe ver que poderia não ter tido qualquer importância para uma porção de gente. Intentou ler o pensamento dos presentes, mas o máximo que conseguiu foi o repúdio de todos, por razões desconhecidas. Até a esposa e os filhos não aceitavam que estivesse ali, tentando comunicação.
Mais tarde, acompanhou o féretro para o campo santo, presenciou as manifestações místico-religiosas dos paramentados, ouviu preces sem vontade e nenhuma palavra que dissesse, verdadeiramente, quem era aquele que ia ser entregue aos vermes.
Não se comoveu diante da retirada de todos, sentando-se em túmulo próximo para as primeiras considerações a respeito dos últimos tempos. Começava a surtir efeito no imo a relembrança de todos os atos da vida, que se impregnaram em seu cérebro espiritual.
Se fora mau ou bom, não era o caso meditar sobre isso. Estimulava-o bem mais a curiosidade por que lhe estava sendo dada a oportunidade da reflexão.
Católico, protestante, espiritista da umbanda e kardecista ferrenho, tinha leituras variadas e pensamentos perversos a respeito dos espíritos sofredores, que doutrinara mal, distanciando-se das leis de Jesus.
Repetiu, “sotto voce”, o pai-nosso dito mecanicamente pelo padre e ressoado no ambiente pelos companheiros do apostolado espírita, mas não conseguiu despertar-se para o ambiente de luz dos protetores.