Nem interrogou o vácuo e a resposta se deu imediata. À sua frente, Margarida passeava em companhia de jovem senhor desconhecido.
Quis ver no elemento masculino alguém da família, mas os carinhos não deixavam margem à dúvida: eram amantes!
Lourival descambava perigosamente para o furor mais desbragado. Mas limitou-se a perguntar à consciência se poderia fustigar o casal, acoimando-o de traição. Não estava morto? Pois, então, justo seria que os seres prosseguissem vivendo, que a felicidade deve encontrar-se onde possível.
Ali ficava ele, contornando o tema do amor da esposa por outro homem, no temor de ver descoberto o seu caso (os seus casos).
Volveu o pensamento à época dos padres e das confissões. Lembrava-se bem do medo da revelação da “outra”, pois sabia que o sacerdote iria bater com a língua nos dentes.
Buscara os pastores protestantes como forma de fugir das acusações da esposa ou não queria demonstrar fragilidade moral perante a consciência?
Ternamente, começou a vasculhar a memória, imaginando como estariam as criaturas com quem convivera tão poucos momentos, em meio a prazeres carnais e temores de envolvimentos destrutivos do “conjugo vobis”, no desequilíbrio familiar inconveniente para os negócios.
Belos momentos, na realidade, quando se sentia perfeitamente feliz, longe do bulício das ruas e das recriminações domésticas. Só havia sorrisos e flores, pois jamais deixara de enviá-las, precedendo as visitas. Era gentil com todas e, em casa, enfeitava o altar doméstico com enormes ramalhetes de margaridas, homenagem imprescindível à mãe de seus filhos...
Derivou o pensamento para a mulher. Reviu o casal passeando. Começou a caracterizar o tipo de afeição que nutriam um pelo outro. Haveria aquele mesmo desejo carnal, aquelas mesmas melifluidades de quem presta apenas serviço ou lhe estaria parecendo que o amor sedimentava o relacionamento?
À medida que ia meditando a respeito de cada possibilidade, o casal tomava exatamente aquela feição, de modo que a maior suspeita acabava por fixar as características mais afetuosas.
Não queria pensar no fato, mas como deixar de suspeitar de que tais manifestações de carinho não datassem de antes do óbito? Afinal, ficara tantos meses internado... E se viessem de antes?
Arrancou algumas gramas que cresciam a seus pés e passou a examinar atento as nervuras das minúsculas folhas. Os pequeníssimos veios se entrelaçavam formando harmonioso conjunto, como se tudo tendesse para a manutenção da vida. E ele havia arrancado as folhinhas...
Irresistivelmente, foi conduzindo os pensamentos para outras áreas de preocupação. Precisava meditar a respeito do futuro. O passado é que o determinaria? Certamente, mas não daria azo a que as más tendências da personalidade o dominassem. Era ou não era letrado das letras do espiritismo?
Observou que havia ali no chão um cordão luminoso que adentrava o túmulo.
— Eis a ligação, pensou, entre o perispírito e o corpo carnal. Será que não estou de todo separado da carcaça? Teria sido enterrado vivo?
Tremores frios começavam a agitá-lo.
Pegou o cordão e se pôs a puxá-lo para si. Estranho fenômeno! Quanto mais força fazia, mais adentrava a sepultura, terminando por deparar-se com o cadáver em adiantado estado de putrefação. O cordão se enrolava várias vezes e não dava mostras de ceder. O mau cheiro atordoava-o. Desejou voltar ao exterior e, de súbito, viu-se de novo sentado no mesmo lugar de antes.
Teria passado por alguma alucinação?
Se bem se lembrava, estivera ali meditando não por mais de vinte e quatro horas e, no entanto, o cadáver demonstrava pelo menos um mês de deterioração.
Agradeceu ao Senhor o fato de ter lido as obras kardequianas, pois foi bem capaz de perceber que o tempo ali transcorria de forma insuspeita. Mas será que sua mente era tão atrasada que não conseguia pensar velozmente? Pelo que supunha, as lembranças vinham muito depressa e depressa desapareciam. Será que as impressões eram tão enganadoras?
Aos poucos, foi recompondo as batidas cardíacas e se lembrou de novo da esposa.
— Margarida!, Margarida! — chamou quase inconsciente — Quanto mal você me fez!