— Vocês devem estar desejosos de saber como é que vamos encaixar os novos amigos. Mas é muito fácil. Vou perguntar aos dois o que esperam do curso e vocês todos poderão comentar, explicar, falar das próprias experiências, de seus anseios e desejos na vida espiritual, porque este estabelecimento tem finalidades declaradas nos estatutos. Quem quer ser o primeiro?
Apertei a mão de Ana sob a mesa, como a solicitar-lhe que fosse a primeira. Ela entendeu, fez menção de levantar-se, mas foi obstada pela instrutora:
— Não faça cerimônias. Estamos em família. Eu também vou sentar-me e assim ninguém vai ter destaque. Por favor...
— Eu e meu marido pensamos que o Espiritismo poderia nos ajudar a compreender melhor o plano espiritual. Conversamos e decidimos que, se fosse possível, poderíamos matar as saudades que temos de nossos pais. Eu sei que vamos precisar entender como é que se dá esse contato e, por isso, viemos freqüentar estas aulas, ao invés de solicitar permissão pra assistir às sessões de incorporação.
Fiquei mais do que admirado.; fiquei espantado mesmo com a desenvoltura de minha mulher no emprego dos vocábulos, mas não tive muito tempo para reflexões, instigado que fui para me pronunciar.
— O senhor também pensa assim? — perguntou-me Rosa Maria.
— Em primeiro lugar, eu quero ser chamado pelo meu nome...
— Desculpe, Cláudio!
— Não tem importância, mas eu acho que, pra nos darmos bem, como pediu o irmão Raspace, é bom que vamos aprendendo os nomes uns dos outros. Se der certo, vamos trabalhar muito tempo juntos. Respondendo à sua pergunta, devo dizer que penso exatamente do mesmo modo, mas não acredito muito em que vou ter a oportunidade de conversar com meus pais e eu digo o porquê: é que meu pai deve estar sofrendo muito, porque não foi um homem assim muito bom.; quer dizer, bom até que ele era.; ele não era...
Enrolei a língua. Queria dizer que meu pai era mandão e egoísta, mas os olhares de todos, principalmente de meu irmão, mais velho que eu oito anos, tendo convivido com nosso pai mais tempo, estava a me fazer pensar mais seriamente no que estava dizendo, porquanto nunca havíamos conversado a respeito. Eu falava com Ana mas evitava levar o assunto ao conhecimento de meus irmãos. Saí pela tangente:
— Melhor que eu pode falar o Raul...
Evidentemente, ele não desejava ver-se envolvido num drama que eu havia criado. Então, disse o seguinte, para amenizar o efeito de minhas palavras:
— Nosso pai, que Deus o tenha em sua glória, era muito enérgico e, por isso, exigia dos filhos e da mulher obediência cega, parecendo que nunca iria errar. Mas errava quando não nos dava oportunidade de exprimir os pensamentos, ao menos para corrigir-nos. Era isso que você queria dizer?
— Isso mesmo.
Rosa Maria, que seguia atenta o desenvolvimento do diálogo, perguntou de chofre:
— E sua mãe? Por que você acha que não virá falar conosco?
— Minha mãe era uma santa mulher. Tudo ouvia calada e tudo fazia pra defender os filhos. Como ambos não passaram dos cinqüenta e cinco (ela morreu com quarenta e oito) tiveram um casamento não muito prolongado. Sendo assim, eu acho que ela deve estar num plano muito elevado, se é que não está ao lado de Jesus.
Não me está sendo difícil de restaurar o que disse naquela hora, porque depois tive muito tempo para pensar a respeito e verificar como estava enganado, principalmente pelo reflexo claríssimo das idéias católicas. Só não citei o paraíso ou o inferno por pura sorte ou inspiração do meu protetor.
Rosa Maria desejou a confirmação de Raul:
— Será que a sua mãe está ocupando uma região quintessenciada? Você deve ter condições pra julgar e explicar pro Cláudio.
De fato, Raul, apesar de fazê-lo com desagrado, justificou o seu pensamento, agora sem pôr freios na língua para não me ofender:
— Eu acho que Cláudio exagera quando julga a nossa mãe tão perfeita. A começar pela crença católica a que se aferrava, penso que deverá ter sofrido duras penas para adaptar-se ao etéreo, chegando lá com a esperança de ter alcançado a Terra Prometida. Era uma mulher inteligente e vivida, sabendo controlar os rompantes de meu pai e as rebeldias dos filhos. Mas não lia nada e não sabia muita coisa. Se é como eu tenho aprendido nas obras de Kardec, ela deve estar sendo agasalhada pelos protetores, deve estar sendo protegida pelos parentes mais evoluídos, mas não deve ser aquele espírito de luz que o Cláudio mencionou. É isso que eu acho.
A instrutora abriu o tema para que todos que quisessem comentassem. Não foi preciso dar corda e já o nosso Jurandir estava tecendo considerações em torno das opiniões:
— Creio que podemos ouvir ambos os pais de Cláudio, sem dúvida, bastando que venham trazidos pelos guias do centro. Contudo, não é o tipo de trabalho mediúnico a que esta casa está habituada. Estou certo, Professora?
Rosa confirmou com a cabeça e Jurandir continuou:
— Aqui nós não adotamos a técnica da evocação conforme se fazia no tempo do codificador, ou seja, de Kardec. Naquela época, era costume solicitar que determinados espíritos se apresentassem, em função do interesse de estudar e se instruir dos que começavam a desvendar os segredos do etéreo. Os protetores de Kardec davam cobertura e possibilitavam a vinda de quem era chamado. Contudo, permitam-me dizer, muitas vezes os espíritos evocados não compareciam, precisando São Luís, o guia da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, presidida por Kardec, explicar as razões do impedimento. Por isso é que eu disse que é possível evocar os pais e quaisquer outros parentes de Cláudio, de Ana ou de outra pessoa interessada em desenvolver sua fé no Espiritismo. Seria uma vitória dos guias deste nosso “Coração Amoroso de Jesus”, mas sempre temos de nos lembrar das palavras de Jesus em relação à dúvida de Tomé, que eu acho que todos conhecem...
Fez “suspense” mas precisou ouvir a vozinha tímida de Joana:
— “Bem-aventurados os que não virem e crerem!”
— É isso aí — concluiu, meio contrariado, o amigo bem-falante.
Rosa quis saber dos demais se haviam entendido o que Jurandir tinha dito. Valdemar, um dos não citados, senhor de mais de quarenta, barba por fazer e tez queimada do sol, levantou a mão em sinal de que pedia a palavra.
Rosa esclareceu:
— Vamos parar com as formalidades. Quem estiver com alguma idéia na ponta da língua, vai falando e os outros vão prestando atenção. Eu sei que as pessoas novas inibem os outros, mas, como queremos estar em família, vamos falar com naturalidade.
Na hora, achei que era ela quem não estava à vontade. Só bem depois é que cheguei a perceber que a instrutora era capaz de dominar os sentimentos, de forma a bem encaminhar as discussões.
Valdemar usou da palavra:
— Eu não sei se entendi direito. O amigo Jurandir disse que é possível mas que aqui não se faz esse tipo de pedido...
Querendo demonstrar que estava aprendendo, intervim:
— O termo deve ser “evocação”, porque “pedidos” a gente vive fazendo a todo momento. Aliás, eu tenho um pedido pra fazer. Eu queria que me desculpassem a intervenção. Estive pensando e percebi que estou um pouco elétrico, emocionado. Por isso, não me dêem ouvidos, por favor. Acho que dei alguns foras.
Fez-se um silêncio compenetrado, como se a minha confissão caísse com fragor nos mistérios do procedimento recatado dos outros. Demorou para Valdemar retomar o que vinha falando:
— O que eu queria dizer é que Jurandir parece que gostaria de ver os pais do Cláudio se manifestarem mas não vê como atender o desejo dele, porque a gente não faz esse tipo de trabalho. É isso?
Impedindo que Jurandir monopolizasse a reunião, Rosa apelou diretamente para Odete.
— Pelo que eu li — disse esta — hoje em dia, os centros espíritas se dedicam muito mais a conversar com os espíritos trazidos pelos protetores em geral, pra que sejam esclarecidos quanto ao seu estágio no etéreo, como é que devem pautar os procedimentos pra melhorarem e como agir em caso de estarem sem saber onde se apegar pra subirem um degrauzinho na escala evolutiva.
Rosa instigou:
— Ou seja...
— Ou seja, interessa muito mais auxiliar os desencarnados do que se preocupar com a fé no comecinho de quem está apenas com certas curiosidades.
Rosa voltou à carga:
— Sendo assim...
— Sendo assim — Odete respirou fundo, deixando-se ficar corada — é bem melhor que a gente aceite como comprovação da existência dos espíritos o fato de qualquer um se manifestar, vendo, na boa vontade dos médiuns e demais trabalhadores do centro, o resultado dos conselhos e intuições que recebem dos benfeitores espirituais.
Rosa queria mais:
— Ou ainda...
Como Odete parecia atrapalhar-se, Ana tentou ajudar:
— Ou ainda (me permitam dar um palpite) estudando a teoria, que, segundo eu soube, está fundamentada na prática do codificador, ou seja, de Allan Kardec.
Rosa ameaçou bater palmas e o seu sorriso revelava que estava extremamente satisfeita com o desenvolvimento dos debates. Então, enfeixou as idéias:
— Realmente, tudo o que se disse é verdadeiro. Mas vocês hão de convir que devemos seguir as normas estabelecidas pros serviços que este centro presta à comunidade como também ao plano espiritual. Como vocês não se lembraram do Chico Xavier, o nosso maior médium, devo dizer que ele atende, embora velhinho, a muitos que se aproximam pra solicitar comunicações particulares de familiares recentemente desencarnados. Estou fazendo a ressalva, senão alguém poderá pensar que os métodos aplicados por Kardec ficaram reservados a ele tão-somente. Na biblioteca, vocês vão encontrar diversos títulos nos quais são transcritas as mensagens de filhos, de irmãos, de maridos e esposas, de pais etc., todos os espíritos perfeitamente identificados, sem que o Chico sequer saiba o nome das pessoas presentes entre a multidão que se introduz na sala em que trabalha. Além disso, quando o espírito nomeia outras pessoas, mortas ou vivas, sempre os nomes ou os apelidos carinhosos são reproduzidos com total fidelidade.
Bem que me lembrei de que desejava esclarecimentos a respeito da tontura durante a palestra, conforme o conselho de Raimundo, mas, à vista do adiantado da hora, calei-me. Rosa realizou breve prece de encerramento e terminou a reunião, explicando:
— Pra próxima quarta-feira, venham com algumas perguntas engatilhadas. Hoje o resultado foi excelente. Se continuar assim, todos passarão logo pra outra classe.