Ao contrário do dia anterior, cada qual estando com seu carro, combinamos que não passaríamos por nenhum restaurante, mesmo porque todos havíamos comido algo antes. No que concernia a mim, precisei mesmo “fazer uma boquinha”, porque o almoço havia sido por demais frugal, tendo comido, então, duas ou três frutas.
No trajeto, Ana e eu permanecemos calados, cada qual como que ruminando as palavras ouvidas na aula.
Assim que chegamos, guardei o carro na garagem, enquanto Ana me esperava, para entrarmos abraçados, como a dar força um ao outro, embora não me sentisse atormentado por nenhum pensamento desagradável.
— Vá até o escritório, disse-me ela, enquanto vejo como estão os meninos e dispenso a “baby-sitter”.
Encontrei os dois livros sobre a minha mesa. Eram NOSSO LAR, de “André Luiz”, e O CONSOLADOR, de “Emmanuel”, ambos pela psicografia de Chico Xavier. Peguei-os e fui até a sala, onde tentei me acomodar, ouvindo roncar a barriga. Levantei-me, sempre portando os livros, e fui até a cozinha.
Nesse meio tempo, ouvi Ana dispensando a mocinha que tomara conta das crianças. Logo foi encontrar-me e começamos uma longa conversação, que procurarei reproduzir com fidelidade e minúcias.
— Vejo que você está com fome, querido.
— Não é pra menos. Não é que esteja vesgo, mas o que comi durante todo o dia foi comida de regime.
— Ainda bem que beliscamos antes. Também foi bom a gente não ter ido ao restaurante. A noite de ontem foi muito cansativa. Quer que lhe prepare o quê?
— Estou pensando num sanduíche de queijo quente.
Ana não esperou segunda sugestão e, enquanto punha em obra a rápida refeição, foi comentando:
— Não sei quanto a você mas eu achei a reunião muito proveitosa.
— Eu também, apesar de me ter achado um pouco deslocado, falando pelos cotovelos.
— Eu percebi que você não estava à vontade, pelo menos no começo.
— Não sei por que fui logo dizendo o que penso sobre os velhos. Quando dei por mim, vi que o Raul esticava os olhos admirados. Como você interpreta a minha atitude?
— Acho que você queria mostrar que não estava com medo de conversar com seus pais, apesar de fazer um julgamento pejorativo quanto ao velho.
— Preciso contar um segredo de confessionário.
— Se você vai continuar católico, não diga nada.
— Vou dizer, mesmo que tenha de voltar a confessar tudo ao Aristides.
— Quer dizer que foi um pecado...
— Espere pra tirar conclusões, querida. Eu contei tudo o que pensava sobre meu pai. Disse mesmo que achava que o velho tinha ido pro purgatório, embora não tivesse confessado nem comungado nos últimos cinco anos de vida. Estava em pecado mortal. Aí, Aristides me perguntou se ele ia à missa aos domingos. Eu disse que não. O meu caro confessor, buscando me tranqüilizar, disse, com todas as letras, que o meu pai, se não tivesse alcançado arrepender-se no último momento, deveria ter obtido a graça de um perdão especial de Deus, ou estaria sofrendo no inferno. Eu perguntei se, nesse caso, as minhas orações aliviariam o sofrimento dele. O padre foi taxativo: “Cláudio, quem estiver nas garras do demônio, não tem salvação.” Você está entendendo onde estou querendo chegar?
Ana manteve-se inalterável, como a me entregar de volta a palavra para terminar a narrativa.
Fui até o fim:
— Pois foi Raul quem me fez pensar muito a respeito. Quando ele disse que o tal do Kardec, o codificador do Espiritismo, asseverou que o purgatório é aqui na Terra, achei que seria tremenda injustiça que um homem probo e sério, cumpridor de todas as normas sociais, fosse arremessado imprudentemente pra eternidade dos sofrimentos infernais. Não é verdade que ele disse que ninguém ia ser condenado pra sempre? Então, eu quis avaliar como estava meu pai. Foi aí que as idéias antigas apareceram transformadas em suspeitas de que ele estaria vagando pelo etéreo, sem pousada, enquanto minha mãe, que sofreu tanto nas mãos dele, deveria estar no céu, aos pés do Senhor. Agora, o Raul disse que ela também deve estar por aí... Isso está acendendo o meu desejo ainda mais de conversar com eles. Mas o centro não presta esse tipo de serviço... Será que temos de fazer uma visita ao Chico Xavier?
Ana me pegou pela palavra:
— Você pode fazer isso sem sair de casa. Vejo que você encontrou os livros que pus na sua mesa. Pois bem, esse livro do “André Luiz” retrata a vida numa colônia de espíritos, dentro do Umbral. Ele apresenta casos de espíritos sofredores (ele mesmo foi um), como também descreve as lutas e trabalhos de quem está em franco progresso. Leia esse primeiro. O de “Emmanuel” trata de temas técnicos e dá soluções científicas pros problemas morais de cada dia. Acho que você vai gostar mais do outro. Em todo caso, eu acho que não perdi meu tempo lendo os dois. Perdi tempo, sim, demorando tanto pra começar.
— Em algum deles existe algum esclarecimento em relação aos familiares que não foram exemplos de santos?
— Parece que NOSSO LAR foi escrito pra você, porque o “André Luiz” conta que a mãe está num mundo mais adiantado, enquanto o pai, um comerciante não muito honesto, pastava, naquela ocasião, em alguma região de muito sofrimento. A verdade é que, pra que você fique tranqüilo, estava a mãe dele empenhada em ajudar o marido.
— E quanto às dores de consciência do filho, acusando o pai disso e daquilo?
— Agora você está me pedindo demais. Leia o livro e procure o que lhe interessa saber.
— Ana, você percebeu como são curiosas as coisas da religião?
— Que coisas?
— Eu contei tudo pro Aristides, ele fez os comentários que fez, me deu umas ave-marias pra rezar e o perdão, em nome de Deus. Eu achava que estava quite com a religião e que minha alma estava limpa e purgada, tanto que comunguei, crente de ter esquecido o problema. Foi só partir pra outra e tudo se acende, como se não tivesse valido aquele sacramento. Você não tem medo de ter perdido o perdão do confessor?
A pergunta pegou Ana de surpresa. Fez de conta que estava entretida em evitar que os sanduíches se queimassem e me virou as costas. Quando se voltou para mim, tinha os olhos marejados.
— Que foi isso, querida? Que foi que eu disse que deixou você tão perturbada?
Eu fiquei atarantado. Abracei-a com ternura e ela se agarrou fortemente a mim, soluçante e trêmula.
— Cláudio, em nome de Deus, perdoe-me, porque pequei.
Elevado à categoria de sacerdote, não sabia o que fazer. Continuei afagando-lhe os cabelos, não imaginando nada muito tenebroso para o nosso relacionamento conjugal. Afinal, veio-me o impulso de assegurar-lhe os meus sentimentos:
— Seja o que for, Aninha, você encontrará em mim o esposo que lhe prometeu ser fiel na dor e na felicidade.
Passou-me a intenção de gracejar, perguntando se alguma das crianças não era minha e isso despertou-me para a possibilidade das grandes traições. Estremeci, involuntariamente. E o meu cérebro começou a barafustar noite adentro de minhas memórias de pecador.
Afinal, nós nos desprendemos. Sentamo-nos em silêncio. Comemos muito mal, ela salgando de lágrimas o pão que ia partindo mecanicamente.
Depois de longo silêncio e muitos suspiros, Ana propôs que fôssemos para o quarto:
— As crianças poderão acordar e eu não quero que elas me vejam com os olhos vermelhos e inchados.
Preparei-me para deitar, completamente dominado por agudos temores. A tragédia estava flutuando sobre as nossas cabeças.
Cobri-me mas Ana permaneceu sentada à beira da cama, dando-me as costas. Foi assim que lhe ouvi a confissão:
— O meu maior pecado foi não ter confiado em você. Quando você me fez perguntas a respeito de meu passado, antes do casamento, eu disse que era pura, imaculada. Fisicamente, era mesmo.; e você sabe disso. Mas eu escondi que, desde pequena, mantive com os e as coleguinhas muitas brincadeiras sexuais. Sempre me arrependia e confessava mas voltava a fazer tudo de novo. Você deve ter estranhado que eu nunca quis saber de suas atividades nesse campo, quando criança e adolescente. É que eu temia que deveria contar o que foi que eu fiz. Se você me disser que eram brincadeiras infantis, de descoberta das sensações, tudo bem: eu aceito e compreendo. O que estava errado é deixar você na ignorância de tudo quanto se deu comigo. Quando me confessei pra me preparar pro casamento, o padre como que me obrigou a calar tudo o que deixei de contar a você, dizendo que Deus tinha perdoado tudo e que a minha vida anterior era apenas minha e que eu devia devotar-me inteiramente ao meu marido somente depois do sacramento do matrimônio. Eu acreditei piamente e assim procedi, por orientação do padre. Se você quiser, eu conto todas as passagens, mas devo dizer que vou ficar muito envergonhada e desde já não vou querer saber das suas aventuras ou de seus pecados, porque sei que tudo isso é perfeitamente natural na juventude. Afinal, foi Jesus quem disse que a carne é fraca, apesar de o espírito ser forte. Mas essas coisas não são a parte pior, aquela que está me fazendo passar estes momentos tão penosos, tão duros.
Suspendeu o ritmo do que vinha falando. Eu tentei afagar-lhe os cabelos mas ela se afastou, desejando evitar qualquer influência que pudesse romper a linha das confissões, como a indicar que se julgava indigna. Depois de assoar o nariz diversas vezes, ainda de costas para mim, prosseguiu:
— Você se lembra que ficamos bem uns dois anos, antes de voltarmos a nos confessar. Foi quando perdemos várias missas e achamos que estávamos em pecado. Já era o Padre Aristides o confessor. Quando contei a ele que fazia tanto tempo que não ia à igreja, ele ficou especulando a respeito do que aconteceu entre nós. Contei tudo, inclusive as pequenas rusgas, chegando ao ponto de demonstrar como eram os nossos relacionamentos mais íntimos. Ele não quis saber nada disso. Mas eu comecei a relatar as pequeninas ânsias que não se satisfaziam, como foi o dia em que levantei o problema de não ter terminado o curso. Fui eu que propus ficar em casa mas depois me arrependi e não criei mais coragem pra enfrentar a faculdade. Você nem ficou sabendo de nada, porque era muito mais fácil e cômodo ir até o confessionário e ficar conversando com alguém com o dom de tudo compreender, além do poder de perdoar. Esse relacionamento em voz baixa foi tornando-me cada vez mais dependente de dispor dos conselhos de alguém de fora. Acho que, se, em lugar do padre, fosse uma freira, seria o mesmo, porque ali o que valia era o que eu dizia. Dessa forma, fui criando um ambiente mental em que o padre era um mero acessório, alguém de quem dispunha pras minhas fantasias. Vivia, naquele círculo restrito, uma existência à parte, longe de você, do Lucas e do Mateus.; e de toda a gente.
Nesta altura, não me contive e abracei-a, cobrindo-lhe as faces de beijos.
— Ana Paula, Ana Paula, Aninha, isso não é nada. Todo mundo tem direito a uma vida particular só sua. Eu entendo tudo isso.
Enquanto nos abraçávamos, a minha mente era um torvelinho de idéias a se chocarem. Condoía-me com a sensibilidade da esposa e me punha na pele dela, sabendo que, de algum modo, eu também havia construído um mundo todo meu, dentro da aura do sacramento da confissão. É verdade que os feitos de caráter sexual não assumiam papel tão preponderante mas também existiram e, caso me visse na necessidade de relatar tudo, provavelmente eram muitíssimo mais complexos e mais amplos do que os dela. Ocorreu-me o recente caso da moça do “outdoor”, que resolvi ser o ponto para a introdução de minhas confidências.
Com certa apreensão, interroguei-a a respeito das recentes descobertas religiosas:
— O que tem de ver o Espiritismo com tudo isso? Será que despertou em nós um novo sentido de vida, de orientação pros fatos morais?
Não soube me explicar com clareza mas Ana me entendeu:
— Os livros que li dizem que os espíritos estão sempre à volta de nós, seja pra nos ajudarem, seja pra nos prejudicarem. Se fossem apenas anjos ou demônios, como a Igreja nos ensina, não teria importância, porque os primeiros seriam puros e os últimos, malignos.; os primeiros estariam devotados às virtudes supremas do Senhor e os últimos, entregues a toda espécie de safadeza, de ruindade. Suas opiniões de modo algum teriam qualquer validade. Mas se são os nossos pais, os nossos avós, os nossos irmãos e demais gente a quem amamos e que nos ama, as coisas tomam outra feição, pois eles irão ficar decepcionados com nosso desempenho.; mais ainda se são os nossos guias e protetores, porque irão abandonar-nos à própria sorte, se faltarmos com os nossos deveres.
— Pois eu lhe asseguro que você não faltou com nenhum dever em relação à nossa família nem a ninguém.
— Aparentemente, mas, no fundo do coração, eu me sinto como uma perversa, uma traidora, alguém que se alheou durante vários anos dos deveres morais em relação ao marido e aos filhos. Deixe-me desabafar de uma vez por todas, porque não quero manter mais esta sensação de desequilíbrio, de mal-estar comigo mesma, como se o sentimento de culpa me entupisse os pulmões e me impedisse de respirar. Eu quero me desfazer pra sempre destas emoções ruins, descarregando tudo nas suas costas. Quero que você me perdoe, é verdade. Mas não como faz o padre no confessionário. Quero que você compreenda que as pessoas não são perfeitas e que todos estamos na Terra curtindo vidas de expiação e resgate de passados erros. Se estamos juntos, segundo a teoria espírita, conforme o que li nos livros, é porque precisamos nos amparar, dando educação aos filhos, porque, quase certamente, estamos em débitos uns pra com os outros. Devemos estar preparados pro despertar deles, que se dará aos sete anos de idade, momento em que assumem integralmente as suas personalidades espirituais.
Nessa altura, eu havia percebido que Ana havia criado um outro ambiente mental, de que me excluíra, do mesmo jeito que disse que o fizera em função do confessionário. Foi aí que decidi intervir e suspender o ritmo dos pensamentos dela:
— Ana Paula, pelo amor de Deus, você está me deixando meio alucinado, porque não estou sendo capaz de seguir os seus pensamentos. Você tem conhecimentos que eu nem imagino. Se quer que eu perdoe você e compreenda os seus mais íntimos desejos e anseios, vai ter de me dar mais tempo pra refletir. Não me deixe do lado de fora de sua vida, meu amor.
Aquela longa manifestação de sentimentos e de filosofias terminou bem tarde da noite, como soem terminar os casos entre pessoas que se amam.
De manhã, fui encontrá-la na cozinha, dando o trato final no café reforçado que me preparou.
Fiz questão de abraçá-la e de beijá-la, ternamente, amorosamente, como a demonstrar que estava com ela em todos os transes emocionais e intelectuais.
Abruptamente lhe disse:
— Sabe que eu me surpreendi olhando com desejos carnais pra uma mulher? E que fiz isso durante mais de dois meses?
Os olhos dela se encheram de lágrimas e eu me arrependi da brincadeira de mau gosto, correndo para desfazer o mal-entendido:
— Agora eu peguei você. Era uma fotografia num “outdoor”, propaganda de sorvete, que foi substituída por outra de cigarro. De qualquer modo, cheguei à conclusão de que havia pecado e de que precisava confessar pro padre. Entendeu onde eu quero chegar?
Foi a vez dela de me deixar boquiaberto:
— Entendo perfeitamente que vou precisar fazer regime e ginástica ou não serei convidada pra posar pra nenhuma propaganda, nem vestida de urso polar.
Selava-se, assim, a nossa cumplicidade no companheirismo conjugal de quem se revela como é ao parceiro. Eu não disse, no começo da narrativa, que a nossa história de amor continha poucos lances dramáticos?