Na quarta-feira seguinte, levei Ana ao centro mas não me senti estimulado a participar da reunião. Tinha comigo as últimas cópias do sonho, porém, deixei-as repousando no bolso do paletó.
Vendo-me só no amplo auditório, Raspace se aproximou:
— Oi, Cláudio, que faz abandonado aos espíritos errantes que freqüentam o salão?
— Como vai, caro amigo? Hoje estou flauteando, gazeteando. Tenho estudado muito, contudo, não me animei a entrar.
— Está com saudade de Ana, que partiu pro grupo do Rodolfo.
— Nem com saudade nem com ciúme nem com inveja. Estou meditando a respeito do curso sobre mediunidade. Eu não me sinto com real vontade de receber ou incorporar nenhum espírito. Isso não é pecado, pois não?
— Claro que não! O que é que você gostaria de fazer pra ajudar o centro, além, é lógico, de favorecer a aquisição dos materiais de construção?
— Esse é o problema que me tem feito pensar muito sobre o lema do Espiritismo: fora da caridade não existe salvação. Foi “Seu” Raimundo quem me despertou pra minha realidade. Soube que Rodolfo é muito rico...
— Vamos conversar lá na minha sala.
Levantamo-nos e saímos silenciosos. Chegando ao nosso destino, Raspace, cuidadoso, fechou a porta, como se fôssemos tratar de algum segredo de estado. Foi como ele iniciou os comentários:
— Só eu e Raul sabíamos disso e eu pedi ao seu irmão pra não contar pra mais ninguém.
— Pois contou à esposa, que contou à minha, que me contou...
— Vamos ver se a corrente tem apenas esses elos. Por favor, não diga pra mais ninguém, porque Rodolfo quer manter-se incógnito. Ele me levou a visitar as suas fábricas e me deixou muito impressionado. Vive, porém, num apartamento pequeno, num bairro chique, sozinho, onde passa por excêntrico e misantropo. Disse que desconfia que o povo julga que seja homossexual, porque sai toda noite. Mas não se importa. Nós sabemos que ele está sempre aqui.
— Isso significa que é um benfeitor da humanidade?
— Você tem estado em contato com ele. Viu qualquer coisa de ruim, certas manifestações desabonadoras, algum indício de perversão ou de malícia?
Refleti antes de responder e acabei concordando com a lisura do procedimento do expositor:
— Só encontro nele coisas boas.
— Então, vamos preservar o seu desejo de ser um colaborador anônimo das obras de benemerência do centro.
Calei-me e permaneci atento para as informações que Raspace me passou de como funcionavam todos os setores da instituição, tendo sido muito minucioso, demonstrando como se integravam os diversos departamentos, instando num ponto que lhe parecia, por certo, como o mais adequado para mim: a organização material da secretaria.
Levamos quatro semanas nesses colóquios, antes de me decidir a aceitar o cargo de secretário na chapa única que iria ser eleita para o próximo ano fiscal.
Nesse meio tempo, Raul levou a cabo algumas investigações, auxiliado pela pesquisa efetuada pelos padres.
Eis como, mais ou menos, se deu a nossa palestra:
— Cláudio, você precisa ver como funciona a rede de informações eclesiásticas.
Eu não tinha muita curiosidade mas vi aguçado o meu interesse pela forma sibilina através da qual meu irmão me convocou para as revelações que desejava fornecer-me. Prosseguiu:
— Em pouco tempo, descobriram o endereço atual de Dona Setembrina...
— Setembrina?
— Eu não daria tal nome à minha filha.; nem você. Mas alguém deu e lá está no registro de nascimento: filha de Dona Quitéria e de pai desconhecido. Você sabe o nome daquela que dizem filha de Luís? Orlanda. Outro nome do arco das velhas.
— Você quer dizer “da velha”.
— “Arco das Velhas Escrituras”, ou seja, o arco que marcou a aliança entre o povo judeu e o Senhor, ou seja, o arco-íris. Hoje ninguém mais sabe disso e pensa que existe alguma senhora de idade metida nessas confusões.
— Vivendo e aprendendo.
— Vamos ao que interessa. Foi só mandar uma circular interna para os párocos e logo foi identificada a criatura. Quando os padres não conhecem o paradeiro, as beatas são postas em ação. Tudo decorre dentro de vinte e quatro a quarenta e oito horas, o mais tardar.
— E na certidão de nascimento da coitadinha da Orlanda...
— Também se encontra a expressão “pai desconhecido”.
— Vai ser difícil de provar que é filha de nosso irmão.
— A petição renovada já registra o falecimento do pleiteado genitor, o que derruba a tese da contradição levantada por Rodolfo. Se houve intenção de engodo, o requerente é muito esperto. Maria recebeu a intimação hoje de manhã. Eu já tinha tudo pronto, faltando apenas os registros oficiais. Mas não vou encaminhar a resposta a não ser no final do prazo. Quanto mais tempo ganhar, melhor, porque sei que os advogados do clero vão empenhar-se no mesmo sentido. Aliás, pelo menos até agora, nunca duas defesas se casaram tão bem.
— Valeu a desistência integral de direitos de Maria.
— O meu medo, Claudinho, é de que os padres aceitem pagar extrajudicialmente, com a proposta de retirada da queixa. Vai sobrar só para nós o ônus da repulsa da pretensão.
— Quem sabe a tal de Dona Setembrina se contente com a quantia que arrecadar da diocese.
— Nem pensar. É preciso reconhecer que ela está fortemente amparada por algum rábula de porta de necrotério.
— Eu sabia da existência dos de porta de cadeia.
— Pois existem também aqueloutros. Pode crer. O golpe é antigo e, às vezes, dá certo. Se é como penso, somente depois de receber o “por-fora” é que se darão por satisfeitos, retirando a petição.
— Que você acha que devemos fazer?
— Não vejo outro caminho senão o de levar até o fim a pendência, mesmo que se passem alguns anos.
Raul fizera o prognóstico exato. Apenas há uns meses atrás se deu o desfecho do processo. Mas certos acontecimentos de permeio merecem referência, para dar mais emoção à parte judicial da minha história. O amigo leitor verá como a morosidade dos tribunais pode facultar que se faça exemplar justiça.
Como num bom romance, os acontecimentos foram ligando-se para o desfecho que me traz amarrado à necessidade desta narrativa.
Um belo dia, Raspace me deixou sozinho na sala do secretário e eu me pus à disposição dos amigos da espiritualidade para a psicografia. Como tenho dito, sempre me previno para a eventualidade das anotações. Sendo assim, evoquei em regra o espírito de meu irmão, aproveitando-me do fato de estar dentro do centro, ao lado de duas sessões de desenvolvimento mediúnico.
Para ser absolutamente sincero, queria ver meu punho agir sozinho, impulsionado por misteriosas energias. Achava que a psicografia espontânea, independente da vontade, teria o cunho do autêntico. No entanto, veio-me à mente que deveria reproduzir os pensamentos, sem prestar muita atenção à coerência do texto resultante.
Perguntei, por escrito:
— Quem vem ao meu chamamento?
Continuei escrevendo:
— Zabeu.
— Luís não pode atender?
— Luís está sob rigorosos cuidados de seus benfeitores, ainda sob o clima espiritual provocado pelo desastre que o vitimou.
— Prezado guia, como confiar em suas informações?
— Não precisa confiar. Basta avaliar depois se fazem sentido.
— Gostaria de saber se Luís é culpado do crime de que é acusado.
— O tempo é o mestre da história. Sob a bondade de Deus, todos os efeitos terão as causas elucidadas oportunamente.
— O senhor é o Padre Zabeu cujo retrato se fez há algum tempo?
— Eu mesmo. Poderia ter enviado um representante mas faço questão de introduzi-lo neste maravilhoso campo da mediunidade.
— Existe alguma garantia, bom amigo, de que não se trata de animismo, uma vez que os temas se ajustam às maravilhas ao que eu mesmo desejaria escrever para o meu próprio conforto e da família?
— Nenhuma prova será suficientemente material para as exigências dos que não se arriscam a acatar as notícias pelo que elas valem, segundo o prisma evangélico dos sentimentos demonstrados.
— Fosse outro a registrar estes elementos e outro seria o resultado do trabalho?
— Certamente. No entanto, com o tempo, Você será capaz de caracterizar a minha personalidade através do estilo com que abordo os assuntos, como ainda distinguirá facilmente os ingredientes fluídicos de que lanço mão para abordá-lo.
— Noto que a minha ortografia não está perfeita. Tenho permissão para corrigir o que não estiver de acordo com as regras?
— É claro que sim! Entenda-se você consigo mesmo, se não quiser ir colocando obstáculos ao ditado a cada instante de indecisão. Recomendo-lhe, pois, que estude mais gramática e se aperfeiçoe na linguagem, para que encontrem os espíritos mais evoluídos maior facilidade em passar-lhe suas vibrações mais sutis, exatamente aquelas que irão exigir termos específicos, para que o “tradutor” não se transforme em “traidor”.
— Muitas perguntas estão aflorando-me à mente. Posso ir fazendo, conforme se constituam?
— Se você se deixar levar, poderei interpretar as suas intuições, fornecendo-lhe as perguntas que você mesmo faria. Por exemplo, não é verdade que você está querendo saber se deve prosseguir trabalhando longe da mesa mediúnica?
— Isso mesmo.
— É preferível, desde que você se encontra numa casa de atendimento espírita, que se junte aos médiuns, o que lhe permitirá demonstrar aos companheiros que está sob a influência dos espíritos. Se houver no grupo algum vidente, poderá ele comprovar a presença da entidade. Caso opte por se isolar, quase certamente os parceiros colocarão dúvidas quanto à lisura de sua mediunidade. Sendo assim, é de todo prudente que estas páginas não se tornem públicas, para não receber você críticas desproporcionais à inexperiência desta primeira vez, ainda que (e por isso mesmo) o seu desempenho esteja prometendo desenvolvimento muito auspicioso.
— Quanto ao meu sonho...
— Quanto ao seu sonho, você está desejoso de saber se algo deve aos amigos da espiritualidade. Contente-se, porém, com as interpretações que os vários parentes e amigos lhe deram. Não lhe parecem cobrir todos os aspectos de seu interesse?
— Apenas um esclarecimento. Quem bateu em meu ombro, pedindo para não me voltar?
— Quem você gostaria que tivesse sido?
— Se eu tivesse a certeza do meu anjo guardião, ficaria satisfeito.
— Se não foi ele, foi alguém a mando dele. Está bem assim?
— Não estou sendo impertinente, apresentando temas de meu próprio interesse?
— A questão está mal colocada. Melhor se exprimiria se evidenciasse que está o meu querido amigo com a mente congestionada de dúvidas. Se insistir nessa linha, esgotará a matéria em três tempos. Então, devo encaminhá-lo para os problemas concernentes às deliberações que o afetarão no aprendizado e na cristalização psíquica das virtudes. Qual é a sua primeira impressão a respeito desta mensagem?
Caí na armadilha de Zabeu e tentei formular a análise que me pedia. Quando regressei para oferecer meus préstimos mediúnicos, percebi que estava inteiramente lúcido, incapaz de receber as vibrações do etéreo. Acordara, vamos dizer assim, para minha própria esfera, senti o peso de meu corpo e, momentaneamente, perdi a noção de tudo quanto escrevera. Mas me senti maravilhosamente bem, leve como uma pluma, alegre e reconhecido. Nem precisei recordar-me das recomendações de Kardec quanto à prece de agradecimento e já estava recitando um pai-nosso emocionado, fazendo cada palavra do texto sagrado pender para o entendimento da recente visita espiritual.
O resultado prático desse primeiro contato com a realidade espiritual foi que Raspace me permitiu assistir às reuniões de conforto às pessoas carentes de estímulos doutrinários, situado numa ponta da mesa, lápis e papel à disposição, que o diagnóstico foi de psicógrafo semiconsciente.
Eu havia substituído as palestras das terças pelo evangelho no lar. Iria agora às sextas, para as tarefas mediúnicas, reservando as quartas para o atendimento da secretaria.
Quem se alegrou, sobremodo, com o aflorar da minha mediunidade foi Ana Paula, que me incentivou e não poupou elogios para a desenvoltura que manifestara. Para ser honesto, a reprodução que acima se leu mereceu reparos para além das exigências gramaticais. Fique o registro para que não se pense que os textos dos espíritos sempre haverão de chegar às nossas mãos conforme foram transmitidos. Sempre a mente do médium haverá de distorcer idéias e terminologias, de modo que deve estar atento para escrever de mais de um modo todas as frases. Depois estudará o conjunto e extrairá um texto mais enxuto, sempre dentro dos rigores das sessões espíritas resguardadas pelas preces e melhores sentimentos.
A recomendação de Raspace de me dedicar aos ditados às sextas-feiras tinha o objetivo de liberar-me para a função de coordenador e organizador dos departamentos do centro, tendo em vista os meus conhecimentos na área da administração empresarial. Esse intento era o meu — não o do presidente do centro. Como, porém, me foi dada carta branca para agir profissionalmente, pus-me em ação, principiando por ceder ao “Coração Amoroso de Jesus” o microcomputador que se tornara obsoleto para a minha empresa.
É óbvio que não vou contar os aspectos técnicos envolvidos na transformação do sistema manuscrito em eletrônico. Mas não posso deixar de mencionar que dei maior funcionalidade aos diferentes setores, quais sejam, os da farmácia, da cozinha, da livraria, da biblioteca, da mocidade, da diretoria, dos associados, dos assistidos e até dos freqüentadores.
Foi durante a elaboração do rol dos assistidos e respectivas famílias que me veio a intuição de que Luís não teria dado o nome de Orlanda à filha. Notei diversas transferências de nomes de pais para filhos e algumas de pais para filhas, como nos casos de Roberto, Roberta, de Fernando, Fernanda e assim por diante.
Procurei Raul e demonstrei-lhe a minha suspeita de que o pai da menina deveria chamar-se Orlando.
Ele adotou de imediato a hipótese:
— Vamos ver a que nos levam as investigações. Nesta altura, os párocos já devem ter o dossiê completo das aventuras de Dona Setembrina, incluindo o nome do homem ou homens com quem se relaciona.
— Que vamos fazer se encontrarmos algum Orlando na vida dela?
— Vamos incluir-lhe o nome entre os suspeitos de paternidade, exigindo o exame de sangue, à vista do fato de estarmos, desde a defesa de primeira instância, insistindo em que o mesmo exame seja feito relativamente a Luís.
Dei-me por satisfeito com a evolução prevista para o desagravo e reservei-me à expectativa da descoberta do elemento com o referido prenome.
Não demorou para Raul voltar, impando de felicidade:
— O sujeito estava desaparecido, provavelmente por orientação do advogado da requerente. Mas o serviço de espionagem da diocese logo descobriu de quem se tratava. É um antigo amante de Setembrina, homem casado à época do nascimento da criança, hoje separado, com processo de divórcio em andamento. Isso explica diversas situações favoráveis ao pleito da suposta vítima.
Como eu havia levantado a lebre dentro do centro espírita, tinha como certa a participação dos espíritos, quem sabe mesmo do próprio Luís ou do Padre Zabeu, que, a meu ver, apesar de perambular pelo etéreo há longos anos, deveria ter especial estima pela instituição religiosa que o agasalhara em vida. Sendo assim, ponderei:
— Prezado advogado, não seria mais delicado e respeitoso referir-se à Igreja sem qualquer nuança ou resquício de ironia? Como você sabe, estou a redigir as minhas memórias e pretendo repetir tintim por tintim todas as falas das minhas personagens reais. É você quem prega o desprestígio dela, sutilmente, entretanto, ao reproduzir por escrito a sua manifestação oral, coonesto a sua posição, se não levantar a suspeita de que você não disse exatamente o que deverei escrever.
Raul abriu um amplo sorriso e saiu-se com relativo brilhantismo:
— Eu não retiro o que disse e você transcreve “ipsis litteris, ipsis verbis”, exatamente, a reprimenda que me faz. Não acha que isso soluciona o seu problema?
Acatei a idéia, tanto que me utilizei dela, como percebe o leitor amigo. Mas a conversa prosseguiu, porque me interessava pelo desenvolvimento da causa judicial:
— Quer dizer, doutor, que o caso está prestes a encerrar-se?
— Você só diz isso porque desconhece os trâmites da Justiça. Assim que indicarmos o possível pai da garota, passamos de réus a agentes da ação de denúncia, cabendo-nos o ônus da prova. Vamos aguardar pacientemente o pronunciamento da promotoria pública, que deverá inquirir a mãe sob juramento. É possível que o advogado da malandra esteja preparando subterfúgios jurídicos para configurar a má-fé dos citados, nós e a Igreja, como se estivéssemos alegando em contrário para procrastinar o ato decisório do tribunal.
— De qualquer modo, não há como a diocese ou a arquidiocese aceitar acordo algum, pelos acréscimos de fatos novos claramente desfavoráveis à pleiteante.