O grupo sentiu-se meio perdido nas trevas, como se vagassem em meio a forte tempestade sem chuva, ou seja, dentro de atmosfera carregada eletricamente, tantas eram as impressões fugidias que lhes tomavam de assalto as mentes.
Um dos tonsurados tomou a palavra:
— Prezados companheiros, meu confrade Arnaldo e eu (Alfredo) estamos habituados a freqüentar esta zona. Não se assustem com os aspectos pouco acolhedores, porque é habitada por seres malévolos que, caso encontrem repercussões sentimentais de baixo calibre para as suas provocações, vão aparecer e atacar. A melhor atitude é orar constantemente uma prece, mesmo repetitiva.
Deodoro recordou-se da ladainha:
— Por isso é que vocês declamavam curtíssima ladainha, enquanto me carregavam?
Arnaldo explicou:
— Estamos acostumados a andar juntos, porque as duplas são estimuladas para o trabalho de assistência aos que são do alto interesse da congregação dos superiores.
Deodoro reproduziu a instrução de Jesus aos apóstolos:
— É como está em São Marcos, capítulo VI, versículos 7 a 11: “Chamou Jesus os doze e passou a enviá-los de dois a dois, dando-lhes autoridade sobre os espíritos imundos. Ordenou-lhes que nada levassem para o caminho, exceto apenas um bordão.; nem pão, nem alforje, nem dinheiro.; que fossem calçados de sandálias e não usassem duas túnicas. E recomendou-lhes: Quando entrarem em alguma casa, permaneçam aí até se retirarem do lugar. Se em algum lugar não os receberem nem os ouvirem, ao sair dali, sacudam o pó de seus pés, em testemunho contra eles.”
Arnaldo, exibindo o seu bordão de guarda, prosseguiu:
— Descobrimos que o louvor ao Pai era a melhor maneira de afastar o pensamento dos que sofrem e para quem não podemos oferecer nada, porque são eles que se recusam ao benefício do amor e da consideração. Não foi exatamente isso que levou o povo a expulsá-lo, Monsenhor?
— A sua observação é justa, mas que poderei eu oferecer a vocês que não alcançariam, com total tranqüilidade, naquele local de orações e de vigilância religiosa contínua?
Alfredo respondeu:
— Na verdade, estamos arriscando a segurança das muralhas, para onde dificilmente voltaremos, porque rejeitamos o agasalho e a boa vontade dos demais. Mas concordamos em que seríamos muito mais úteis ajudando Vossa Reverência e seus companheiros, porque temos traquejo nestes campos de vibrações fortemente hostis.
Deodoro, movido por súbito interesse, perguntou:
— Vocês não farão falta?
— Não faremos, respondeu Alfredo, porque existe um verdadeiro exército em defesa dos patriarcas. Se não for atrevimento meu, posso contar que a maioria se constitui de antigos guerreiros de anteriores campanhas na carne, sempre em defesa do Cristianismo, que voltaram à Terra, na condição de sacerdotes, para o resgate dos débitos, mas que caíram em graves tentações mundanas, a principal delas a de se considerarem aptos à salvação.
Deodoro ia de admiração em admiração:
— Quer dizer que vocês conhecem o fenômeno da reencarnação e ainda assim se mantêm fiéis aos preceitos dogmáticos da criação da alma no momento da concepção? Não estão cometendo, no mínimo, um crime de descrença na divina eqüidade, uma vez que Deus não irá admitir ao seu lado aqueles que dizem o contrário do que pensam?
Coube a Arnaldo retorquir:
— Existe um método prático de contornar o problema. Na verdade, todos dirigimo-nos ao confessionário e contamos que estamos na dúvida em relação aos ensinos canônicos. Ali recebemos a orientação de que os nossos estudos é que nos levaram a criar vidas fictícias através da imaginação. Dessa forma, obrigam-nos a crer em que desenvolvemos a fantasia das vidas passadas. E recebemos pesadas missões para pagarmos os desvios dos pensamentos e dos sentimentos, o que nos obriga ao arrependimento e à confirmação das lições dos antigos Pais da Igreja.
Deodoro não se contentava com a ingenuidade dos que recebiam semelhantes instruções:
— Mas vocês dois se rebelaram!
Alfredo esclareceu:
— Quando Vossa Reverência explicou que o povo aí confinado aguardava os anjos ou a expulsão, compreendemos que tínhamos o livre-arbítrio cerceado pelo desejo de nos vermos sendo escolhidos sem mérito algum. Os outros não se sentiram bem com as suas declarações, Reverendo, ao perceberem que se punha em crise a diretriz evangélica, segundo interpretação mais consentânea com a igreja primitiva, aquela que se imprimiu aos tempos dos apóstolos e que conhecemos muito bem, embora atulhada pelas concepções conciliares transformadas em dogmas pelas bulas papais.
— Mas vocês, insistiu Deodoro, não tomaram a decisão de me seguirem no impulso do momento. Já deviam vir pensando sobre esses conceitos desde há muito, porque as idéias demoram para se sedimentarem até forçarem as pessoas a tomar uma atitude de outra ordem, dentro dos paradigmas dos costumes milenares. Não tenho razão em suspeitar de antiga apostasia?
Arnaldo complementou as explicações do amigo:
— O termo que Vossa Reverência está a empregar não nos atemoriza mais, porque não caberia aos superiores hierárquicos da congregação excomungar ninguém. O regime de terror estabelecido só se sustenta pelo medo que se instalou nos corações de quem vivenciou a obediência aos mitrados e não às leis de Deus, pelos ensinos de Jesus. A bem da verdade, lá estaríamos ainda, caso não nos fosse dado acompanhar uma pessoa que nos pareceu bem dotada de senso e de coragem. Muito lhe agradeceríamos se nos permitisse prosseguir pensando pela nossa própria cabeça, porque essa liberdade é que é o apanágio de sua personalidade, o que nos estimulou a segui-lo.
— De qualquer modo, vocês não me transmitem a sensação de serem tacanhos mentalmente, o que me induziu a pensar o fato de prestarem serviços de evidente subalternidade. Explique-me isso, Alfredo.
— Temos de reconhecer, Professor, respondeu o designado, que os irmãos do mosteiro não se configuram maldosos, nem sem sentimentos de benevolência e comiseração. Estão iludidos pelas quimeras que criaram e vivem em obsessão. Sabemos de retiros espirituais habitados por religiosos mais perversos, que não admitem sequer a hipótese de estarem mortos, agindo, segundo a prática medieval ou inquisitória, como verdadeiros carrascos de si mesmos. Desconhecem os textos evangélicos e pautam os procedimentos pelas normas restritas que os condenaram a vigiar a consciência alheia e não a própria. Se Vossa Reverência quiser, poderemos levar o grupo todo para conhecer uma dessas colônias, com as devidas cautelas, naturalmente.
Deodoro não esperava semelhantes cicerones. Comparou-se a Dante visitando os infernos, levado por Virgílio. A Comédia, apelidada de Divina, estava inteira em sua memória. Todavia, não se sentiu atraído pelo convite. Antes, daria preferência a visitar os vivos e sobre isso inquiriu a dupla de monitores:
— Visitar o orbe é possível?
Roberto, que, como os outros novatos, se mantivera atento aos informes dos tonsurados, quis que se estabelecesse um roteiro:
— Prezadíssimo Professor, talvez seja melhor pôr-nos a par de seus planos, para que nos preparemos para não sermos surpreendidos por deliberações que não corresponderiam às necessidades do grupo. Não seria melhor se definíssemos as estratégias a partir dos conhecimentos de cuja posse cada um de nós está?
— Justíssima observação, queridíssimo amigo. (Deodoro esticou os adjetivos na mesma entonação do interlocutor, provocando agradável reação no grupo.) Que cada um diga o que espera do grupo e do destino que daremos a esta estadia, em tão lúgubre região.
Ouviram-se lamentações que chegavam das trevas mais profundas. Mas, como não viram nada, não se sentiram ameaçados. Alfredo, contudo, solicitou concentração nas virtudes da fé, da esperança e da caridade, insistindo para que todos pensassem sério em se ajudarem mutuamente.
Passados alguns instantes de concentração rememorando os meios que em vida cada qual empregava para fazer valer as preces, religiosos que foram durante muitos anos, acalmaram-se os eflúvios que pesavam sobre suas pessoas e puderam mais livremente respirar, enchendo os pulmões para extrair do ar os elementos para lhes darem a noção do equilíbrio mental, no sentido de tomarem conta do ambiente.
Foi Deodoro quem quebrou o silêncio:
— Antes de me responderem a respeito dos intentos de realização neste local desconhecido... Empreguei mal os termos. Não quero dizer que não somos capazes de imaginar que estejamos meio perdidos no espaço entre o Céu e a Terra. Não é isso. É que aplicamos a nossa intuição como se muitos de nossos atos fossem puramente reflexos, como se constituíam para nossos corpos os processos sobre os quais não tínhamos domínio consciente, ou seja, a circulação sangüínea, a digestão e inúmeras reações mediante as provocações do medo, do susto, da alegria, do prazer e assim por diante. Por exemplo, não consigo compreender a necessidade de respirarmos, se por nossas veias não corre um sangue que deva ser irrigado de oxigênio. Se me disserem que o fazemos por força do hábito, vou responder que existem inúmeros outros resquícios de vida terrestre ou animal em nosso corpo espiritual, que, sei agora, se chama perispírito, conforme me explicou o meu amigo Eufrásio. Outro problema que permanece vivo em minha mente é o fato de Eufrásio ter sido chamado de Eustáquio por Crisóstomo. Também, raciocinando segundo o que venho aprendendo nesta esfera, posso deduzir que são dois nomes atribuídos ao mesmo espírito, em duas encarnações diferentes. Eu mesmo tive a impressão de me chamarem de Antenor, o que não me repercutiu de modo totalmente estranho. Outro problema que gostaria de ver resolvido é o fato de os irmãos do mosteiro precisarem de alimentos. Eu mesmo provei uma gotas de água e senti que o paladar subsiste. Falo, além do mais, das carnes e queijos que vi sobre a mesa dos responsáveis administrativos. Se fossem servidos frutos, eu compreenderia, porque sei que há árvores frutíferas. Eis que, no entanto, são sacrificados animais bem como são utilizados como criação, para proverem de leite os habitantes do monastério. E o que se poderia dizer a respeito dos bacilos que produzem o coalho? Quem suspeitar de que tudo isto é mera vibração a plasmar as coisas, não irá resolver todos os problemas, porque os irmãos comem e, portanto, devem digerir e eliminar os alimentos. Ora, se tudo proviesse de simples alucinação, como é que os sentimentos se compõem com tanto rigor e o mundo externo se deixa apalpar com tanta precisão? Explico melhor o que estou pensando. Se cada qual estrutura o seu campo de visão ou de atuação, como é que os demais entram no sonho uns dos outros? Haverá um inconsciente que, coletivamente, se orienta no mesmo sentido? Vejo que os meus temas estão provocando o interesse de responder, mas poderei confiar em suas respostas como dignas da realidade? Quem são vocês dois para me darem explicações cabais a respeito de tanta novidade para mim e, acredito, para os quatro que comigo chegaram? Dei uma volta tremenda e cheguei ao ponto inicial, isto é, perante a necessidade de todos se apresentarem e definirem os seus objetivos. Quem quer ser o primeiro?
Everaldo assumiu a palavra, com o apoio tácito dos demais:
— Eu sou um pobre e infeliz padreco de quinta categoria. Nunca fui brilhante e meu desempenho para ajudar a Santa Madre Igreja se deu no sentido de ajudar os companheiros de convento nas tarefas mais humildes, que sempre existe a precisão de alguém para forrar os animais e para adubar as plantas. Na cozinha, não passei de ajudante para as tarefas do descasque e da limpeza. Como a comunidade era grande, empregava-me com vantagem para os que se dedicavam ao ensino e à pregação. Mas eu tinha uma voz considerada afinada e, no coro, sobressaía-me, de forma que me contentava aquela vida reclusa e sem nenhum desmesurado destaque. Fiz questão de ser o primeiro, para que não venha a acontecer de, ao final das exposições, os problemas mais dificultosos ficarem em minhas mãos. Ao contrário, posso apenas presumir, tanto meditei a respeito da comida e da bebida, que, na Terra, onde a gente possui sementes e animais, as coisas se passam segundo uma ordem natural própria. Aqui, certamente, em sendo um mundo criado por Deus, a natureza dele também deve ser particular, de modo que as pessoas que chegam acostumadas à vida terrena, recebem, por obra e graça do Criador, os recursos para se habilitarem a um desenvolvimento mais ou menos semelhante ao da vida no corpo material, ao mesmo tempo que vamos, conforme o maior ou menor poder intelectual, enchendo-nos de perguntas compatíveis com o nosso grau de desenvolvimento. Ora, se julgamos que temos um corpo como aquele que abandonamos ao morrermos, se temos idéias de ressuscitamento após o Juízo Final, se acreditamos que voltaremos a viver na Terra, então, como critério de justiça do Senhor, também iremos manter a expectativa, até que os conhecimentos nos cheguem para que admitamos outra filosofia de existência, segundo os paradigmas próprios desta natureza diferente. Eu tenho outras idéias a respeito dos demais itens propostos por Deodoro, porém, quero crer que deve ser dada oportunidade a todos vocês, para que discutam o que acabei de dizer.
Deodoro, que se mantivera assombrado o tempo todo da exposição, quis demonstrar sua emoção:
— Amigos, vejo que Everaldo está mentindo. Se ele não passou de um criado na Terra, como é que agora é capaz de desenvolver um tema com tanta sagacidade e tanta oportunidade? Vejam que não estou pondo em dúvida nem as informações quanto à sua personalidade retrógrada, nem os conceitos concernentes à necessidade de se admitir uma linha de justiça de caráter divino, para sustentação psíquica dos seres que pairam neste ambiente. Espanta-me é o fato de ele não se recordar, como eu também não sou capaz de fazê-lo, de nenhum fato relativo aos aprendizados que se fizeram anteriormente ao encarne, numa outra passagem por esta zona ou em alguma outra vida. Vou caracterizar melhor o que chamei de mentira. Concordo com o irmão Everaldo, quanto aos movimentos involuntários de aceitação da condição existencial, e aproximo a sua concepção daquelas propriedades parassimpáticas dos organismos de agirem por conta própria, de forma que tudo o que ele está dizendo terá uma base verdadeira, cuja origem, no campo dos estudos e das reflexões, permanecem ocultas para nós. Da forma como ele colocou (contra o que não tenho elementos para discordar), todos nós, um dia ou outro, iremos despertar para a verdade, como se ela se contivesse já em nossos espíritos, conforme pregava Sócrates aos atenienses. Se Everaldo não teve descortino para aprender filosofia no seminário, pelo menos que respeite a sabedoria dos outros...