De novo Deodoro deu tempo para a reflexão dos companheiros. À vista, contudo, de permanecerem com aquele ar inquisidor, concluiu:
— Estamos tentando entender os mistérios da natureza que nos agasalha, mas nenhum de nós diverge da intenção de cumprirmos os deveres de quem materializou na carne o ideal religioso, ou seja, saindo em busca dos irmãos em descompasso com as leis de Deus e os sagrados mandamentos da Santa Madre Igreja, para catequese. Entretanto, aquela fé gerada no inconsciente está abalada, porque os nossos princípios canônicos sofreram tremendo baque, quando não nos deparamos em nenhum dos campos prometidos aos que morrem: não estamos naquele Purgatório que imaginávamos, nem no Céu, nem no Inferno. Mas podemos fazer degringolar as esperanças, se pleitearmos aos que encontrarmos pelo caminho algo diferente da experiência existencial que vivenciam no momento. Por exemplo, se chegarmos aos aldeões e pedirmos para que deixem a sua lavoura apenas aparente, porque chegamos a conclusões em outro sentido, vão escorraçar-nos, dado que não possuem elementos capazes de conduzir-lhes os pensamentos pelos nossos próprios caminhos. Seguramente, a história dos apóstolos nos propiciará o ensino que preconizo, tantos foram os que terminaram os dias supliciados, como São Pedro, que foi crucificado de cabeça para baixo, para apenas citar um deles.
Deodoro parou para respirar um pouco, que a boca estava seca e o coração disparara. Essas sensações meramente físicas não lhe causaram estranheza, que se acostumava a reagir de maneira a suplantar os percalços de sua mentalidade aferrada aos hábitos terrenos. Depois de algum tempo, enquanto os demais introjetavam as novíssimas concepções, na tentativa de agarrarem o que de mais positivo apresentavam para a sua disposição de peregrinarem evangelicamente por amor ao Cristo, em nome de Deus, Deodoro se propôs a elucidar outro ponto inicialmente levantado:
— Quero chamar a sua atenção para um tópico que assinalei como de difícil entendimento, qual seja, a necessidade que temos de respirar. Lembram-se de que eu dizia que não tínhamos sangue a circular, nem veias ou artérias para conduzir o líquido pelo corpo? Mas, apesar de tudo, nós respiramos, conforme damos aos órgãos perispirituais essa função, uma vez que o nariz suga o ar, que nos enche os fictícios pulmões, que absorvem o oxigênio, que vai ser transportado pelo organismo etc. No entanto, eu bem me lembro (não sei se o mesmo se passou com vocês) de que houve um momento após o decesso em que me considerei sem este corpo organizado segundo as diretrizes para os seres humanos. Eu vi crescerem-me os membros. Antes mesmo disso, recordo-me de estender uma fictícia mão e de não sentir absolutamente nada, como se o meu braço passasse por dentro do móvel. Penso agora que foi apenas uma tentativa inócua da mente, que era o que subsistia. Quem não me diz que a misericórdia de Deus não se fez para mim justamente através da realização de minha vontade de dominar o ambiente, remontando o único aspecto que me daria segurança e tranqüilidade?! Seria demais imaginar que outros seres, qual a figueira que secou de um dia para o outro pela maldição do Cristo, não voltariam para cá desfigurados, ressequidos, à proporção que não tenham oferecido aos passantes os frutos que sua fronde atrativa prometia? Digo muito mais, isto é, que, por outro lado, os que cumpriram todos os preceitos cristãos e ainda os da Igreja, devem, verdadeiramente, chegar nimbados de luz, em aspecto angelical, santificados pelo procedimento, sendo recebidos em festa, exatamente como era a nossa expectativa. É preciso determinar o que nos trouxe para este setor do Universo através de percuciente exame do que nos falta perdoar para sermos perdoados, das ofensas que praticamos contra os nossos semelhantes...
Hermógenes quis dar sua contribuição:
— Ou contra nós mesmos...
A observação fez Deodoro calar-se. Não esperava que, de repente, alguém pudesse alertar para aspecto tão sutil.
Vivi quase cem anos. No final da vida, nos últimos tempos, estava tão depauperado que não me interessava por nenhum acontecimento mundano. A freira lia os jornais, evidentemente excluindo do noticiário as tragédias, tanto que nada fiquei sabendo do envio de tropas americanas para a Ásia. Contudo, esse sofrimento físico não se constituiu em acréscimo de virtude.
Intrometeu-se-lhe na linha de pensamentos uma idéia insólita:
Se eu tivesse vivido apenas uns cinqüenta ou sessenta anos, não estaria confinado no mosteiro com os outros, exigindo dos recém-chegados que prestassem juramento de fidelidade aos regulamentos da corporação?
Ao contrário das vezes anteriores, a dúvida não lhe provocou estremecimento algum.
Devo prestar atenção às intuições, porque, conforme eu mesmo sugeri aos parceiros de caminhada, o inconsciente deve estar envidando esforços no sentido de dar a conhecer precisamente aqueles defeitos de constituição espiritual que designei como falta de perdão e ofensa ao próximo. Acredito, embora não me dê ao trabalho de verificar, que os outros estejam passando por reflexões parecidas, a partir do momento em que concordaram em que a fé nesta região se plasma e dá origem aos objetos, para o efeito do teatro em que cumprimos o nosso papel. Tanto pior, se der curso a sentimentos menos nobres, porque a peça a ser representada conterá os elementos das tragédias. Se os sentimentos não se respeitarem, iremos desempenhar uma triste figura na farsa que demonstrará a inutilidade de nossa passagem corpórea pela Terra. Se eu tiver coragem para enfrentar as acusações da consciência, uma a uma, irei desfilar aquela seleção de acontecimentos biográficos que se demarcaram mais nitidamente em minha memória.
— Não faça isso, Professor, pelo amor de Deus! Deixe para depois, quando estivermos em local mais protegido, porque, se o Senhor tiver inimigos, irá chamá-los e nós não estamos aparelhados para enfrentá-los, principalmente porque debilitados pelas emoções.
— Roberto, que experiência tem você neste campo?
— Deodoro, reservo-me o direito de falar quando chegar a minha vez. Agora cabe ao próximo da lista exprimir o que lhe vai nalma.
— Com a palavra Hermógenes, que, pelas constantes participações, deve ter muitas teses importantes para comprovar.
Hermógenes trazia aparência bem jovem, talvez para dar a Deodoro a impressão dos tempos escolares. Iria desenvolver suas teses, conforme o importante estímulo do orientador, porém, resolveu deixar pendente uma questão:
— Quem aqui tem o coração mais puro?
Os companheiros olharam-se de modo significativo, dando demonstração de que estava fora de propósito qualquer comparação de valor moral. Contudo, Hermógenes não se perturbou. Esperou calmamente que se resfriassem os ânimos, temendo não receber o apoio de ninguém, se intentasse encaminhar os pensamentos naquele sentido. Esclareceu:
— Sei que as pessoas, quando possuem verdadeira fé no poder de Deus, não gostam de medir forças com o semelhante. Nós, pelo que entendi a partir das propostas de trabalho evangélico, iremos percorrer os ínvios caminhos da escuridão, para passar aos que encontrarmos os frutos de nossos conhecimentos, porque nos julgamos preparados missionariamente desde os tempos terrenos. Mas não se tratará de um julgamento de valor, sempre que incitarmos os outros a se considerarem inferiores em conhecimentos teológicos ou filosóficos? Era justo, no orbe terrestre, que pregássemos aos paroquianos e que discutíssemos com os sacerdotes de outras religiões, fundamentados nos cursos que fizemos em seminários especialmente constituídos para a finalidade catequética. No entanto, com isenção de ânimo, poderemos estabelecer a crítica dos que, em certa época, consideravam a inferioridade dos silvícolas e, principalmente, dos fiéis de outras seitas e cultos, tanto que abençoavam as armas com que os exércitos iam matar os inimigos, completamente esquecidos dos ensinos de Jesus. Queira, Professor Deodoro, relembrar-nos a palavra do Senhor.
— Qual dos evangelistas você deseja ver citado?
— O que mais sinteticamente tiver conseguido exprimir as leis do amor.
— Em São Mateus, Capítulo XXII, versículos 36 a 40, registrou-se o seguinte diálogo: “Mestre, qual é o maior mandamento da lei? — Jesus lhes respondeu: Vocês amarão ao Senhor seu Deus de todo o seu coração, de toda a sua alma e de todo o seu espírito.; eis aí o maior e o primeiro mandamento. E eis o segundo, que é semelhante ao outro: Vocês amarão a seu próximo como a si mesmos. — Toda a lei e os profetas se acham encerrados nesses dois mandamentos.”
Hermógenes, no entanto, queria mais:
— Os fundamentos doutrinários de toda a cristandade repousam sobre o amor ao Pai e ao próximo, como cada qual ama a si mesmo. Mas, para o meu desenvolvimento, caberia definir o que Jesus entendia pela figura do próximo. Se formos avaliar através das bênçãos de muitos sacerdotes para a felicidade das pessoas nas guerras, iremos contrariar outra passagem importantíssima. Qual seja, Professor?...
Deodoro não titubeou:
— Acredito que, em São Lucas, capítulo X, versículos 30 a 37, encontremos a resposta: “Um homem que descia de Jerusalém a Jericó caiu nas mãos de uns ladrões que o desnudaram, o cobriram de feridas e se foram, deixando-o semimorto. — Aconteceu, em seguida, que um padre descia pelo mesmo caminho, o qual, ao vê-lo, não ligou. — Um levita que vinha pelo mesmo lugar, tendo-o observado, também não ligou. — Mas um samaritano que viajava, tendo vindo ao local onde se achava aquele homem e tendo-o visto, foi tocado de compaixão. — Assim, ele se aproximou dele, derramou óleo e vinho nas feridas e lhes colocou bandagens.; e, tendo-o posto sobre seu cavalo, ele o levou a uma hospedaria, e cuidou dele. — No dia seguinte, tirou dois denários, que deu ao hospedeiro, e lhe disse: Tenha bastante cuidado com este homem e, quanto você gastar a mais, eu lhe pagarei na minha volta. — Qual desses três lhe parece ter sido o próximo de quem caiu nas mãos dos ladrões? — O doutor lhe respondeu: Quem usou de misericórdia para com ele. — Vá, pois, lhe disse Jesus, e faça o mesmo.”
Hermógenes prosseguiu:
— Por enquanto, as citações me satisfazem plenamente. Vejam, amigos, que estamos, mais ou menos, na condição do bom samaritano, que acudiu, na beira da estrada, ao que sofria. No caso da parábola, havia a necessidade declarada de ajuda e o outro clamava por socorro, mesmo que se mantivesse calado ou desfalecido. Fez o passante o melhor que pôde para restabelecer a condição vital do sofredor, com certeza uma espécie de adversário político-religioso, porque os samaritanos não eram bem-vistos pelas demais tribos judaicas. Não importa o histórico cultural, porque pretendo valer-me do ensino superior do Cristo. O importante é que Jesus tenha considerado esse aspecto para demonstrar que há pessoas (no caso um sacerdote e um levita) que se consideram mais capacitadas do que as outras e que, nem por isso, empregam convenientemente os seus conhecimentos, o seu poderio e a sua riqueza material ou espiritual, no atendimento do próximo. Teremos nós os elementos que faltam àqueles que pretendemos conduzir ao aprisco do Senhor? Seremos mais puros que as pessoas que considerarmos em débito para com as divinas leis?
Deodoro estava impacientando-se com a longa peroração, porque lhe parecia superficial e desnecessária. E o pretendeu dizer com franqueza:
— Querido Hermógenes...
— Pode me chamar de Hermó, Professor.
— Embora a nossa nascente intimidade esteja propiciando ocasião para o emprego do hipocorístico, reservo-me ao princípio geral de que as pessoas devam ser tratadas com toda a dignidade, o que presume que o apelido seja o mais respeitoso possível.
— Então, Vossa Reverência...
— Não exageremos, por favor. Esse seu tom de brincadeira não me parece inteiramente adequado para o momento.
— Permissão para objetar.
— Permissão concedida.
— Se, quando estamos felizes, não podemos demonstrar a alegria de nossos corações através de considerandos integrados ao tema, não será em desespero ou agonia que iremos gozar o momento, a menos que seja por maldade.
— Concordo com isso, querido discípulo, entretanto...
Hermógenes insistiu:
— Deodoro, você ia dizer que eu estava estendendo-me demasiado dentro dos limites de um assunto de conhecimento de todos. Não é verdade? Entretanto, foi só estimulá-lo noutro sentido e você se esqueceu completamente do objetivo da interrupção. Perdoe-me a irreverência, mas sinta que estou plenamente convicto de que minhas palavras estão isentas de emoções. Tanto é assim, que vou prosseguir daqui mesmo, afirmando, peremptório, para abreviar a exposição, conforme é de seu desejo (veja que estou respeitando o meu eterno professor), que Jesus iria ainda além nos considerandos a respeito do trabalho moral que exigia dos apóstolos e, por via de conseqüência, que todos os seus representantes, nas diferentes igrejas cristãs, deveriam assimilar e aplicar em sua vida religiosa, enquanto missionários em atividade. Posso pedir-lhe, Mestre, para reproduzir o texto a que aludo?
O Monsenhor lutava para recompor-se, porque sentia que uma ligeira onda de estupor estava a crescer-lhe no íntimo, ojeriza antiga pelo atrevimento dos alunos, sempre que se sentia desafiado à vista de sua postura magistral inflexível. Mas foi despertado desses sentimentos de indignação pela requisição de Hermógenes.
— Desculpe-me, mas acho que não prestei completa atenção aos seus derradeiros dizeres.
Alfredo, em poucas palavras, repetiu a fala do orador. Deodoro encontrou a ponta da linha:
— Já sei a qual trecho você se refere, meu bom aluno. É quando Jesus ordena que os inimigos sejam amados, quer dizer, que se transformem em amigos. Devo dizer que se trata da maior transformação humana no campo das emoções pungentes que afligem os corações. Quando tratava desse ponto em minhas classes, sempre propugnava que os alunos contassem casos verídicos de desavenças, para promover as reconciliações. Gostaria de possuir o poder de verificação junto às almas dos que me asseguraram que refizeram as amizades perdidas, para reconhecer o mérito de minha atuação. Neste momento, devo confessar que por pouco não me desentendi com Hermógenes, por considerar ofensiva a sua colocação didática, utilizando-me para exemplo de atitude negativa. Agradeço-lhe, porém, a isenção emotiva com que considerou o episódio, porque creio que tenha percebido a minha reação íntima e feito o possível para deixar-me à vontade para o exame de meu caráter, como reflexo da formação cristalizada em minha alma por anos seguidos de prática e gramática.
Deodoro aguardou alguma manifestação de agrado, mas, à vista do ponto de interrogação que se estampava em todas as fisionomias, esclareceu:
— Quando disse prática e gramática, quis fazer um gracejo, para corroborar com o pensamento de Hermó.
Aí, sim, os outros sorriram condescendentes, na expectativa ainda de que Deodoro citasse o texto bíblico.
— Preciso melhorar meu desempenho nesta área. Dêem-me mais um pouco de tempo, pois me sinto rígido dentro do sistema que adotei para a apreciação da verdade. Sinto-me tenso e acho que não poderia ser diferente. Acredito que, no momento em que me descontrair, vou conquistar melhor condição psíquica para absorver mais eficazmente os princípios energéticos que nos trazem o vigor mental para a descoberta das estruturas que formam o intricado sistema existencial destas paragens. Vejam que, conscientemente, vou alargando a minha participação, para desmanchar definitivamente aquela rebeldia contra o que considerei perda de tempo. Aliás, se algum dos que faltam manifestar-se quiser tecer considerações a respeito deste espaço e deste tempo em que pairamos, não se acanhe. Atendendo ao meu dileto Hermó, eis a pregação de Jesus que me foi solicitada: “Vocês aprenderam que se disse: Vocês amarão a seu próximo e odiarão a seu inimigo. E, quanto a mim, eu lhes digo: Amem a seus inimigos.; pratiquem o bem aos que os odeiam e roguem pelos que os perseguem e os caluniam.; a fim de que sejam os filhos de seu Pai, que está nos céus, que faz erguer seu sol sobre bons e sobre os maus, e faz chover sobre os justos e os injustos.; — pois, se vocês amam apenas aos que os amam, que recompensa terão? Os publicanos não fazem isso também? — E se vocês saudarem apenas a seus irmãos, que fazem nisso a mais que os outros? Os pagãos não fazem isso também?” É assim que está em São Mateus, capítulo V, versículos 43 a 47.
— Creio que foram poucos, mas, quando reprovei, segui o roteiro traçado pela congregação dos docentes, segundo o parecer da maioria ou da unanimidade, conforme o caso. Não me lembro jamais de haver retido nenhum aluno sozinho, apesar de a minha consciência me haver acusado de ter sido por demais condescendente. Todavia, se você quer chegar ao ponto de que criei alguma inimizade por força do rigorismo de minha avaliação, encontrará, na minha história de professor, muitos mais casos de alunos que reconheceram os méritos da reprovação do que os que se rebelaram contra elas. Por outro lado, tendo em vista o tempo que transcorreu desde a derradeira vez em que lecionei, penso que as desavenças, nesse sentido, devam estar esquecidas ou, ao menos, perdoadas. Eram essas as suas considerações?
— Não exatamente. Queria tornar relevante o fato de que as pessoas, em suas relações sociais, estão constantemente a fazer apreciações objetivas e subjetivas a respeito dos procedimentos e das personalidades umas das outras. Se o professor tem o poder de manter o aluno na mesma série escolar, este, por sua vez, é bem capaz de insuflar o descontentamento da turma, de forma a cercar o mestre de mal-estar, quando não se acomete contra ele de forma a forçar a administração escolar a alguma atitude, no julgamento das queixas e das razões. De certo, os amigos estão a se perguntar a que vem tal argumentação, uma vez que a citação da palavra do Senhor nos envia para questões muito mais sérias, como a dos judeus a odiarem os romanos invasores e dominadores. É que me parece que o exemplo do professor que reprova o aluno está mais próximo da nossa realidade, uma vez que o nosso objetivo não é o de repelir, por meio de persuasão doutrinário-filosófica e religiosa, aqueles que nos atacam.; mas o de facultar aos semelhantes que se aproximem de nós pelo amor de Jesus, já que o Mestre nos pregou, como primeiro mandamento, nas palavras dele: “Vocês amarão o Senhor seu Deus de todo o seu coração, e de toda a sua alma, e de todo o seu entendimento.” Que o coração precisa estar envolvido, ou seja, a emotividade, creio que não cause celeuma. Quanto à alma, significa que devemos ser absolutamente íntegros na pureza do afeto que dedicamos ao Pai, afeto esse, digo de passagem, que deve ser o mesmo em relação ao próximo. O mais intrigante é que o Mestre acrescenta o amor através do entendimento, ou seja, da razão, do conhecimento de todo o processo psíquico e até mesmo físico que orienta a formação desse vínculo entre a criatura e o Criador, do ponto de vista da criatura, porque Deus, sendo inteiro amor, não tem que prestar conta de nada a ninguém. Daí a questão que propus inicialmente quanto a quem dentre nós é o mais puro, porque esse estará em melhor condição de cumprir os desígnios do Pai, segundo a orientação do Cristo.
Hermógenes fez menção de suspender a peroração, entretanto, notando que algo havia pairado no ar sem solução, retomou o curso dos raciocínios:
— Vou emendar um tema noutro, para responder o que penso a respeito do que sejam o tempo e o espaço nesta dimensão. Permitam-me rápida digressão, sem a qual não saberia argumentar. Quem desejar interromper-me para acrescentar ou objetar, fique à vontade, tendo em vista que o assunto é polêmico e nem todos estão afeitos aos raciocínios fundamentados em hipóteses. A tese que pretendo comprovar tem de, necessariamente, afastar-se do entendimento dos humanos a respeito do que seja o tempo e o espaço para eles. Enquanto vivos, vemos os recursos biológicos do organismo se desgastarem, o que nos indica que algo está acontecendo conosco. Então, somos capazes de estabelecer uma convenção universal: as coisas envelhecem, enquanto o tempo passa. Se imaginarmos uma situação em que nenhum átimo da matéria esteja a se movimentar, poderemos configurar mentalmente que o tempo não irá passar. Nesse caso, porém, haverá um bloqueio completo e nenhum cérebro irá apresentar uma única idéia, porque todos os neurônios estarão paralisados. Então, nada (nem ninguém) existirá, até mesmo o espaço, o qual normalmente caracterizamos como a distância que separa cada elemento corpóreo dos outros. O ser existiria mas não teria nenhuma noção ou consciência de si mesmo.