Nesse instante, surgiu do nada para dentro da roda um ser maltrapilho, quase agonizante, sem forças sequer para gemer, endereçando olhares súplices a pedir urgência para a ajuda do grupo.
Deodoro desejou aproximar-se do enfermo mas não conseguiu desprender-se dos vizinhos. Imediatamente consultou os outros e ficou sabendo que estavam imantados pelo contato das mãos.
“Será que se trata de outra criação?”, articulou mentalmente, interrogando o grupo. No entanto, não recebeu nenhuma resposta.
Enquanto isso, o sofredor se estorcia, prestes a desfalecer.
Deodoro imprimiu muita força para se desvencilhar das presilhas dos dois ao lado. Estava prestes a desandar em aflição, quando lhe ocorreu que deveria manter-se calmo, em paz interior, pronto para o auxílio ao outro, para merecer as explicações que não lhe ocorriam, em estado emocional perturbado. Não traduziu nenhuma mensagem do grupo, mas adquiriu a convicção de que os demais estavam afligindo-se por sua atitude. Envergonhou-se, porque perdera momentaneamente o domínio sobre si mesmo e chorou, enviando ao ser que se desvanecia ao centro do grupo todo o poder que achou dentro de si na confecção de uma prece original:
Estou contente, Senhor, por estar sendo amparado por vós, embora nada realize que mereça essa bênção. Antigamente, ao orar a vós, buscava burilar o estilo, dando ao texto o rutilar das estrelas que se concentravam em meu céu intelectual. Neste instante, lembro o fato para demonstrar que sei criticar o vezo do magnetismo pessoal sobre a multidão desinformada das letras e da doutrina. Ignorante era eu mesmo, que me julgava superior, mas não enxergava um palmo adiante do nariz. Espero, Senhor, não descair para a vulgaridade, mas traduzir os meus sentimentos na minha prece, ainda que maus, imperfeitos e maliciosos. O que pretendo com isso, meu Deus, é dar um passo adiante no sentido do entendimento do que sou através das palavras que digo, tornando-me consciente das minhas fraquezas. Por exemplo, vejo que tenho mencionado até aqui apenas a minha pessoa, preocupado que estou altamente comigo mesmo, mas não estou tão obtuso que não perceba dois fatos principais: o primeiro, claríssimo, é o do egoísmo exacerbado tendente ao menosprezo das realizações alheias, porque nada avisto, neste meu horizonte delimitado pela minha própria inferioridade, ninguém que me sirva de modelo, além, é claro, daqueles seres estelares cujas biografias guardo de memória.; o segundo diz respeito às minhas preces anteriores em favor das almas dos encarnados, muitas delas pagas com moedas, como... Ia citar o apóstolo que vendeu o Cristo, mas não quero, de novo, cair no engano de supor que não se tenha regenerado e que agora esteja trabalhando nas legiões do bem. Jesus não iria abandonar um discípulo que ele mesmo escolheu dentre os chamados. Se, nestas frases, como percebo, ainda se mantêm os vícios da abominável atitude de realizar um serviço intelectual de vulto, então vou resumir os dizeres, solicitando-vos que me solteis das algemas físicas e me prendais pelos vínculos do amor, da benquerença, da felicidade mútua, aos meus parceiros de jornada. Penso que aquele que vai desaparecendo seja o reflexo do muito sofrimento de nós sete, materializado ou personificado para nosso aprendizado, porque precisamos evoluir evangelicamente, o que jamais alcançaremos sem a vossa misericórdia. Agradeço-vos, especialmente, o discernimento desta atitude mais modesta, posto ainda pouco humilde. Se não for pedir-vos muito, Senhor, enviai-nos os protetores de que necessitamos para nos orientarem, através da metodologia que julgarem a mais conveniente, como a de nos darem recursos de intuição ou nos facultarem o manuseio dos fluidos cósmicos que principiamos a dominar. Desculpas vos peço, finalmente, por este arrazoado pretensioso e vos prometo que, em futuro o mais breve possível, buscarei tornar mais simples esta meditação rogativa. Assim seja!
Quando terminou, estava solto como todos, tendo Alfredo se reintegrado ao grupo. Este só aguardava a volta do amigo de sua concentração, para resolver o problema de seu desaparecimento:
— Pois bem, devo dizer-lhes que, em momento algum, saí de junto do grupo. O que fiz todos vocês poderão tentar, pois não se trata de milagre nem da intervenção dos protetores. Descobri como é que se diminui o volume do perispírito, em função das dimensões que estabelecemos como as ideais nesta esfera. Basta concentrar-se nos eflúvios da dispersão energética que cada um irá manter projetada a aparência ou a forma numa tela fluídica tridimensional, enquanto os elementos que nos constituem o corpo espiritual se reduz. É mais ou menos o que aconteceria se os espaços entre os elétrons se reunissem, permanecendo compactados os nêutrons e demais elementos atômicos, dentro da natureza densa da matéria terrena. Como a mente permanece com o domínio de sua natureza, produz a atmosfera interna em transparência. Se eu tivesse maior desenvoltura, ou seja, se fosse um espírito de luz, conseguiria, além de sugerir a vocês apenas um fantasma, formar uma figura esplendorosa, vibrante e difusa, no sentido de lhes comunicar energias de restauração ou ensinamentos de supremo quilate. Peço-lhes que me perdoem a ridícula descrição do fenômeno. Se tivesse a capacidade de Deodoro, com certeza iria desempenhar o papel didático com bem mais proficiência.
Deodoro quis ver na menção às suas qualidades uma provocação sutil ao pedido efetuado em sua prece, bem ainda à promessa. Mas não se deixou estimular pelo pressentimento. Antes, deu trela a que Alfredo prosseguisse aprendendo com a sua experiência pedagógica:
— Meu amigo, bem sei que deveria ajudá-lo telepaticamente, para aperfeiçoar-lhe os dizeres. Fá-lo-ei doravante, se me permitir e se aceitar a minha maneira vetusta de emprego dos recursos do idioma português, por imitação sofrível dos clássicos. Por outro lado, penso ser imprescindível adquirir o conhecimento dos significados mais modernos das antigas palavras, como também o vocabulário mais recente, com o ingresso no vernáculo do superstrato tecnológico fornecido pela língua inglesa. Mas são preocupações periféricas, porque o importante mesmo é cerrarmos fileiras para o aprendizado dos fenômenos físicos e morais decorrentes da natureza no seio da qual imergimos, como fez você de modo tão significativo. Veja que o meu discurso pode até possuir estalos de Vieira, mas nada representa diante das suas informações. Não vamos, pois, perder mais tempo em considerações formais, porque ficaremos tateando no vazio, como quando busquei apanhar o seu pulso, para saber se estava em estado normal. Errei em imaginar que pudesse não se preocupar conosco, que ficamos na expectativa das conclusões de sua exposição, quando nos deu o exemplo material do que nos explanava. Fim. Quem tiver perguntas pertinentes, faça-as, porque eu estou a absorver-me nesta insatisfatória...
Joaquim entendeu que Deodoro pedia socorro:
— Bom amigo, percebo agora a que se referia quando desejava pôr ordem nas conversas. É que, a rigor, todo conhecimento deve sistematizar-se, o que não ocorrerá se nossa mensagem aos mortais estiver fundamentada num apanhado cronológico dos sucessos ou acontecimentos que estão envolvendo o grupo. Penso, todavia, que deveremos efetuar um primeiro registro escrito, porque não poderemos fugir ao dever do relato, uma vez que fomos alertados pelos benévolos guardiães dentro da biblioteca e incentivados pela presença significativa do Codificador, que não se abalaria a nos encontrar se não tivesse a certeza de que iríamos trabalhar mediunicamente em função das experiências etéreas.
— Contudo, acrescentou Roberto, temos débitos a resgatar e jamais seremos agasalhados em nenhuma casa de repouso ou educandário, sem demonstrarmos que estamos, coerentemente, aplicando o saber evangélico em prol dos necessitados de esclarecimentos, pelo menos.
Hermógenes, que se sentia inferiorizado por ter provocado o último drama das mãos presas, interveio:
— Que não me perca pela falta de aviso da consciência. Sei muito bem que vou dizer algo provocativo, mas pretendo anunciar a intenção de orientar o seu pensamento num determinado sentido, qual seja, o de observarem se todos estamos aptos a criar o mesmo efeito visual de Alfredo. Digo isto para alertar para o fato de que tal recurso pode ser útil quando estivermos diante de algum sofredor necessitado de reforço vibrátil, se esses forem os termos exatos, no caso de lhe impormos respeito através de algo que julgará maravilhoso ou mágico, o que para nós será apenas um meio de ilustração das palavras, como o foi para Alfredo. Agradeço a Deodoro a ajuda que me deu, posto não tenha suficiente discernimento para captar-lhe toda a emissão. Mas vou aprender, prometo.
Ato contínuo, Alfredo dirigiu-se a ele e obrigou-o a suspender, temporariamente, a emissão de pensamentos, restringindo-lhe a área de atuação perispirítica ao globo energético que constituiu com a ajuda dos demais, que por ele foram sendo orientados telepaticamente. Quando Hermógenes se concentrou na vontade de realizar feito idêntico de aparência sem contextura vibratória passível de contato pelos meios sensórios da organização corpórea dos demais, conseguiu reduzir a área ocupada pelos elementos energéticos de sua constituição física, controlando, sem hesitação, a imagem que projetava na tela providenciada pelos amigos. Ao mesmo tempo, suas reações eram sutilmente informadas aos outros pelos impulsos parassimpáticos das transformações internas, de forma que todos puderam assimilar o método aplicado para a fantasmagoria.
Tendo Hermógenes voltado do ligeiro transe, todos os outros, um a um, foram capazes de proceder da mesma forma, cada qual agindo mais prontamente que o anterior. Haviam adquirido a segunda habilidade espiritual.
Foi Arnaldo quem desejou pôr ordem no roteiro:
— Se vamos dizer que esta é a segunda habilidade, precisamos enfatizar a primeira, ou seja, a deslocação rápida pelo espaço etéreo por meio do pensamento, embora não na dominemos de maneira muito satisfatória. Muito obrigado, querido Professor Deodoro.
— Se cada um for me agradecer toda vez que sugiro a construção sintática ou o léxico mais adequados, faça-o discretamente, por favor.
Naquele instante, surgiu no coração de todos o desejo incoercível de procurarem os três acidentados para a prestação do auxílio anteriormente fenecido.
— Vamos, então, trabalhar um pouco? — Era Everaldo disposto a colocar-se à testa da expedição que se organizava. — Penso que não estejam muito longe, porque a sua aura não emitia nenhum...
Não terminou a frase, porque, imediatamente, se viram junto aos escombros fumegantes do avião, no bojo do qual estavam os três acidentados às voltas com frustras tentativas de reavivamento de seus corpos materiais.
À vista de tão dolorida condição, os sete estancaram e, instintivamente, disseram um pai-nosso silencioso, rogando por mais força e poder de ajuda aos infelizes e desnorteados executivos. Foi Deodoro quem determinou as primeiras providências:
— Não sabemos como proceder. Vejo que os pobres se mantêm presos ao intuito que nos declararam de voltar à esfera carnal. Contudo, também se recusaram a acompanhar quem se aprestou à assistência. Como todos sabemos, embora não estejamos recordados pessoalmente, cada indivíduo possui um anjo protetor, em qualquer circunstância, a quem cabe orientar o pupilo nas sendas do Senhor. Não está em “O Livro dos Espíritos” a informação preciosa? Eis como Kardec interrogou os representantes de Jesus, com as respectivas respostas: “489. Existem Espíritos que se ligam a um indivíduo em particular para protegê-lo? — Sim, o irmão espiritual.; é o que vocês chamam o bom Espírito ou o bom gênio. 490. Que se deve entender por anjo guardião? — O Espírito protetor de uma categoria elevada. 491. Qual é a missão do Espírito protetor? — A de um pai em relação a seus filhos: conduzir seu protegido no bom caminho, ajudá-lo com seus conselhos, consolá-lo em suas aflições, sustentar sua coragem nas provações da vida.” Nós não nos enquadramos em nenhuma dessas categorias, no entanto, desejamos exercer um papel importante para o encaminhamento dos irmãos infelicitados. Gostaria de propor, antes de nos dirigirmos a eles, que o grupo rogasse pela presença, não dos anjos da guarda, que devem ser três, um para cada sofredor, mas para os irmãos espirituais. Será que acorrerão para nos darem sustentação, apoio ou as necessárias diretrizes para que efetuemos o nosso trabalho?
Antes que qualquer da equipe se manifestasse, fizeram-se visíveis cinco irmãos. Feitas as devidas apresentações, constatou-se que três eram parentes das vítimas na derradeira encarnação e outros dois membros designados pelos anjos da guarda para orientação dos trabalhos de elevação dos feridos.
O primeiro a falar foi o tio-avô de Jaime:
— Sabemos que vocês estão iniciando a maravilhosa missão de resgatar da dor quantos sejam capazes de encontrar em sua jornada. Preza-nos que sejam suficientemente prudentes para não repetirem as falhas da assistência anterior. Entretanto, não devem deixar-se abater pelos insucessos, porque, neste campo, todos os esforços serão baldados se encontrarmos irmãos empedernidos no mal ou nos hábitos viciosos que não desejam abandonar. Prevalece o livre-arbítrio de cada um, tanto que a nossa experiência não nos valeu nas dezenas de investidas que realizamos. Acreditamos que vocês possam obter êxito onde malogramos nós, porque talvez possuam recursos de persuasão diferentes.
Deodoro como que sorvia as palavras, buscando os termos em que pediria perdão pelo ousado gesto de assistência sem a competente lição psicológica que somente um bom curso para socorristas lhes proporcionaria. Mas o outro prosseguiu, emendando o discurso na intenção do sacerdote, aliás compartilhada por todos os companheiros:
— É evidente que todos os grupos de ajuda espiritual tiveram, um dia, de iniciar as suas tarefas apostólicas, semeando os grãos segundo a qualidade da espiga de sua própria plantação. Vejo que vocês não apreciam a linguagem figurada, porque lhes parece que o momento não é propício para a poesia ou a literatura, uma vez que estamos diante de seres em sofrimento. Não é verdade que vocês se desviaram de sua rota para volverem a atenção para os irmãos que acreditavam perdidos para a sua recentíssima decisão de bons samaritanos? Pois nem precisam responder. Bem sei que a aflição dos do desastre lhes parece bastante disparatada, tendo em vista que o acidente deve ter transcorrido há muito tempo, tanto que os modelos de suas roupas estão apontando para a década de oitenta.
Joaquim ia esclarecendo:
— Bom amigo, não temos elementos para discernir...
O recém-chegado interrompeu, para explicar:
— Não nos levem a mal. É que estamos acanhados perante o desenvolvimento de suas faculdades mentais e pela extensa cultura religiosa que demonstram a todo momento, quando cotejam os termos de minha exposição com os textos que retêm na memória. Apenas para colocá-los a par da situação dos nossos afiliados é que ousamos referir-nos ao tempo decorrido desde o acidente. Sua inteligência haverá de concluir corretamente a respeito dos melhores conselhos ou das mais adequadas providências para o convencimento dos acidentados, quanto a seguirem os protetores, perdendo a ânsia e a ganância das comodidades terrenas que não conseguiram usufruir integralmente. Penso, falando também em nome dos companheiros, que devemos ocultar-nos, dando-lhes a oportunidade de crescerem pela dedicação ao próprio ministério de amor. Deus esteja com vocês!
— Deus esteja com todos nós! — disseram em coro.
Ato contínuo, os sete se viram de novo sozinhos com a missão a que se haviam proposto. Foi Everaldo quem comandou o diálogo:
— Não sei se devemos proceder ao desafogo das pressões psíquicas que afetam aqueles três. Pelo que intuí das expressões dos protetores familiares...
Deodoro complementou, de passagem:
— Dos ancestrais, conforme a crença dos antigos habitantes do Lácio nos seus deuses Lares, para os quais mantinham um pequeno altar, onde efetuavam orações, à maneira dos japoneses...
Everaldo atreveu-se a observar:
— Caro mestre, não vamos divagar, por favor. Perdoe-me.
Mas Deodoro retrucou:
— Enquanto as minhas recordações não me transportam para a encarnação mais próxima da época cujos costumes evoco, creio sempre oportuno lembrar que a consciência dos espíritos-irmãos passada a Kardec não se constituiu em novidade histórica, nem mesmo para o preclaro estudioso do nascente Espiritismo, que, erudito, conhecia muito bem o culto dos protetores familiares, sem ter necessidade da confirmação dos anjos da guarda que lhe passavam as informações mediunicamente.
Everaldo insistiu:
— E aqueles que sofrem aqui mesmo, junto a nós, não merecem a consideração de um atendimento fraterno de quem jurou cumprir as sacratíssimas leis de Deus e da Igreja?
— E quanto à lei do livre-arbítrio? Eis a pergunta de número 501 e sua respectiva resposta de “O Livro dos Espíritos”: Por que a ação dos Espíritos sobre nossa existência é oculta, e por que, quando nos protegem, eles não o fazem de um modo ostensivo? “Caso vocês contassem com o apoio deles, vocês não agiriam por si mesmos, e seu Espírito não progrediria. Para que ele possa avançar, precisa de experiência e é necessário muitas vezes que a adquira às suas custas.; ele precisa exercitar suas forças, sem o que seria como uma criança que a gente não permitisse andar sozinha. A ação dos Espíritos que desejam o bem para vocês é sempre regrada de maneira a lhes deixar seu livre-arbítrio, pois, se vocês não tivessem responsabilidade, não avançariam na via que deve conduzi-los para Deus. O homem, não percebendo que o amparam, se louva em suas próprias forças.; seu guia, no entanto, vela por ele e, de tempos em tempos, lhe brada para pressentir o perigo.” Não lhe parece que o nosso papel seja o de velar por eles, porque pressentindo o perigo já se encontram?
Mas Everaldo, que não queria perder a oportunidade de exercer o papel de missionário da luz, apesar de não se achar na condição de protetor, reforçou a solicitação, agora com mais vigor:
— Pois não vou contentar-me enquanto não conversar com eles, de maneira mais inteligente. Não que Vossa Reverência não tenha procedido com discernimento e lisura moral. Acontece que tenho para mim que poderíamos ter feito bem mais. Por exemplo, no que tange à deterioração dos cadáveres, era preciso que forçássemos o desfazimento da representação dos corpos que os mantém dentro da carcassa do avião.
Deodoro, sem demonstrar-se ofendido pela raspança, perguntou, buscando não ser malicioso ou sutil na crítica que se continha em sua palavra:
— Meu bom amigo, vamos considerar os efeitos de um esclarecimento categórico, ou seja, que os três se deparem com a realidade do tempo passado e se vejam inabilitados para a revitalização daquelas criações mentais sobre que se debruçam, definitivamente cientes de que nada poderá efetuar o milagre do ressuscitamento, coisa, aliás, que Kardec não aceitava nem para os relatos bíblicos relativos a Lázaro, à filha de Jairo e ao filho da viúva de Naim.
— Conheço os Evangelhos, disse lacônico Everaldo.
Foi a vez de Roberto intervir:
— Mas talvez não conheça a tese de Kardec em “A Gênese, os Milagres e as Predições Segundo o Espiritismo”, capítulo XV, item 39: “À vista do poder fluídico que possuía Jesus, não existe nada de espantoso que esse fluido vivificante, administrado por uma forte vontade, tenha reanimado os sentidos entorpecidos.; que tenha mesmo conseguido chamar de volta para o corpo o Espírito prestes a deixá-lo, uma vez que o liame perispiritual não estava definitivamente rompido. Para os homens daquele tempo, que acreditavam morto o indivíduo desde que não respirasse mais, existia ressurreição e eles eram capazes de afirmá-lo em muito boa-fé, mas o que existia, na verdade, era cura e não ressurreição, na acepção da palavra.”
— Pois, então, continuou Deodoro, você deve imaginar como haverá de ser o desespero dos três...
— Eu acho, impacientava-se Everaldo, que irão sair em busca de quem lhes possibilitou o último ingresso no mundo dos mortais, quando nós lhes infiltrarmos a idéia de que só os protetores familiares terão condição de conduzi-los aos que executam tal mister. Gostaria que mais gente contribuísse para a discussão, firmando, com lógica e boa vontade, um princípio coerente com o da salvação das almas, que é para o que decidimos devotar-nos, com perdão da péssima construção da frase.
Deveria Deodoro retrucar ou concordar, mas avaliava a extensão dos conceitos do jovem (porque aparentava no máximo vinte e cinco anos) e aplicava ao seu próprio livre-arbítrio, como se o outro representasse o papel de “bom espírito” ou de “bom gênio”, conforme lera em Kardec.
Santo Deus, estou descobrindo uma faceta muito ruim de minha pregação sacerdotal. Não deveria julgar se as atividades de socorro vão ser úteis ou não. Mas precisaria ofertar-me de coração ao trabalho de ajuda, sabendo que, ainda que falhássemos de novo, o incentivo moral demonstraria que estamos sendo sinceros e que gostaríamos deveras de prestar um serviço proveitoso para o crescimento espiritual dos infelizes. Afinal de contas, se eles, agastando-se conosco, nos deixarem estafermos para trás, pelo menos terão dado um passo para a caracterização dos graves problemas que enfrentam, tendo em vista, principalmente, que compreenderão a sua fraqueza perante o destino que lhes açambarcou as expectativas de felicidade material.
Ao voltar da meditação, deparou-se com o seguinte quadro: os seis estavam concentrados junto aos corpos elaborados pelos pensamentos cristalizados dos sofredores, enquanto estes se afastavam, lacrimosos, na companhia dos cinco familiares.
Mais espantado ficou, quando Hermógenes lhe agradeceu:
— Muito obrigado, Professor, pela tremenda força que nos deu com a sua prece em apoio ao serviço socorrista. Veja que maravilha...
— Mas eu sequer me dirigi ao Senhor nem a nenhum dos santos. Como é que poderia ter intercedido em favor de quem...
— Como não, se começou a oração por um comovedor “Santo Deus”?!
Foi só então que notou que o ambiente havia ficado iluminado, como se estivesse a paisagem mergulhada na luz do crepúsculo matutino, ainda enevoada por suave cerração. Estavam dentro da mata e os destroços do avião jaziam espalhados ao derredor. Não havia resquício dos corpos, mas o padre pôde reconhecer as pegadas de uma equipe de resgate militar. Examinando mais detidamente as ferragens, verificou que restavam apenas ferros retorcidos em estado avançado de oxidação.
— Vocês sabem onde estamos?
Foi Roberto quem respondeu:
— Transportamo-nos para a face do plano material, caso contrário não surtiriam efeito as demonstrações junto aos irmãos acidentados.