“Deus não se importa muito com a irrepreensibilidade humana” .
[Robert Walser, Kleine Wanderung, Reclam, Stuttgart, 1999, p. 27]
Nota: A palavra que aqui foi traduzida como “irrepreensibilidade”, Unsträflichkeit, já fora usada por Lutero em sua tradução da Bíblia. Ela aparece, por exemplo, no livro de Jó (4:6). Em alemão, o versículo lê-se como: “Não é o temor de Deus o teu conforto e a tua esperança a irrepreensibilidade dos teus caminhos?”. Em Latim, por exemplo, a passagem foi traduzida assim: “Nonne timor tuus est fiducia tua,
spes tua est perfectio viarum tuarum?”. Veja-se, portanto, que onde no alemão se lê “Unsträflichkeit deiner Wege”, irrepreensibilidade dos teus caminhos, lê-se no latim “perfectio viarum tuarum”, ou seja, a perfeição, a retidão de tuas vias, dos teus caminhos.
Tanto “Unsträflichkeit” quanto “perfectio” estão traduzindo o hebraico tom, o qual possui sentidos diversos na bíblia: perfeição, retidão, integridade, simplicidade e outros.
Talvez Lutero tivesse em mente a Septuaginta ao traduzir esta passagem. Na septuaginta, o equivalente do tom hebraico é o grego akakia. Esta palavra grega forma-se de a(prefixo de negação) + kakia, kakos(mau). Este não-mau acaba sendo traduzido usualmente por inocência, pureza e integridade. Em Lutero, Unsträflichkeit refere-se também a algo não-mau (não-repreensível) e, portanto, inocente, íntegro.
Assim, ainda que eu tenha optado por traduzi-la como “irrepreensibilidade”, a palavra hebraica que inspirou as subseqüentes traduções refere-se mais precisamente à condição daquilo que é íntegro, reto, simples, direito, perfeito (totalmente feito, completo, acabado, cheio), sem desvios, dobras, complicações e, por conseqüência, irrepreensível.
O mais relevante, no entanto, é o uso preciso que Walser faz da palavra, certamente tendo o texto de Jó em mente ao escrever esta provocativa passagem.