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Humor-->Entrevista com Karl Marx -- 19/03/2001 - 17:58 (Félix Maier) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Aos meus três ou quatro leitores de Usina reproduzo uma bem-humorada entrevista com Karl Marx feita pela socióloga e professora Maria Lúcia Victor Barbosa. Além de uma carta de Marx à socióloga - uma deferência especial, principalmente por ela não pertencer ao movimento "As libélulas da USP", universidade onde esvoaçam Emir Sader, Leandro Konder, Marilena Chauí e tantos outros integrantes da "Ordem dos Odonatos".


"Entrevista com Karl Marx

MARIA LUCIA VICTOR BARBOSA

Finalmente ele aceitou meu convite para uma entrevista. Eu mal podia acreditar. Estaria frente a frente com o homem que teve o mérito de desvendar aspectos novos da sociedade, apesar da inexatidão científica de suas profecias ou da dose de utopia e de messianismo contidos em sua obra. Mas seja lá como for, o monumental pensamento de Karl Marx havia povoado minha juventude com sonhos revolucionários de um romantismo inigualável, e não há dúvida que, ao explicar as mudanças através do conflito entre classes, ele muito contribuiu para a compreensão sociológica dos processos sociais.

Assim sendo, meu coração batia de ansiedade enquanto me dirigia para o lugar do encontro. Ele determinara que o local seria num dos mais belos shoppings centers de São Paulo, o Higienópolis, verdadeiro templo do consumo desvairado. Como desobedecer-lhe? Para completar tamanha excentricidade, exigira ser entrevistado enquanto tomássemos lanche no McDonald’s, o que estranhei bastante. Aliás, fiquei imaginando o que diria se nos visse o filósofo e baderneiro francês José Bové, produtor de queijos de cabra que estudou em Harvard, e que nas horas vagas faz protestos contra os Estados Unidos, homem cuja birra aos lanches do McDonald’s acabou por conduzi-lo ao estrelato, especialmente no recente encontro anti-Davos, palco petista de Porto Alegre onde, ao que parece, foram proibidos hambúrgueres e servido todo dia um prato de salada russa. Não apurei se o cardápio continha ou não produtos transgênicos.

Pois é, se Marx queria ir ao símbolo diabólico da globalização, quem era eu para contrariar sua vontade. Então, na hora aprazada, postei-me na entrada da maldita lanchonete em meio a uma democrática e pequena multidão de anônimos comilões de sanduíches, formada por jovens da periferia e de pessoas da classe média que se distinguem ainda, como se sabe, pelo terrível vício de ingerir coca-cola, outro endemoninhado produto que mantém a pobreza mundial açucarada e alienada aos apelos gastronômicos do imperialismo.

Depois de quarenta minutos de atraso que me angustiaram por uma eternidade, ele surgiu como o russo Anienkof o descrevera no passado. Sua cabeça parecia a de um leão de basta cabeleira grisalha, as mãos cobertas de pelos, as maneiras desajeitadas, todavia orgulhosas, arrogantes e autoritárias, que sem dúvida ficaram como legado para muitos dos seus seguidores. Todo esse aspecto conferia com o que eu esperava ver, menos o traje. Em vez da roupa desalinhada e preta, Marx vestia uma camiseta branca “dry fit” e ostentava calça jeans de griffe. Nos pés, botas, à moda Bush e Fox.

No que chegou me ordenou com sua voz metálica e vibrante, feita para emitir juízos radicais sobre os homens e as coisas, para pronunciar palavras imperativas: “A senhora me pega um big mac com fritas e uma coca de 500 ml que na seca não vou falar nada”. Obediente fui até a fila adquirir o lanche, enquanto o majestoso Karl Marx se aboletava numa mesinha da praça de alimentação, acomodando suas sacolas de compras na cadeira vaga. Tudo nos conformes, eu com meu queijo quarteirão e meu guaraná bem brasileiro, desferi a primeira pergunta com voz trêmula:

ML: Aonde e em que ano o senhor nasceu?

Marx: Em Tréves, em 1818.

ML: Gostaria de falar sobre seus pais?

Marx: Preferia não falar. Meu pai era um advogado judeu convertido ao luteranismo, que queria que eu seguisse a carreira jurídica para a qual não tinha vocação. Ele implicava com meu gosto pela poesia. Dizia que não queria me ver transformado num poetinha qualquer. Minha mãe vivia me dizendo que em vez de ficar escrevendo o Capital eu devia conseguir algum para mim. Ambos me aborreciam com seus sermões sobre minha vida boêmia em Bonn, quando eu, ainda jovem, gastava um dinheirão e tomava pileques homéricos. Achava-os muito burgueses. Hoje entendo que as mães têm sempre razão.

ML: O senhor teve um grande amigo, Engels.

Marx: De fato, Engels muito me ajudou. Fez vários artigos que eu assinava quando escrevia no New York Daily Tribune, escreveu obras comigo, me auxiliou financeiramente inúmeras vezes. Um amigão sem o qual teria morrido de fome com minha família, e que andei depois escorraçando, mas no final nos entendemos apesar dele ter ficado muito magoado.

ML: E sua esposa?

Marx: Chamava-se Jenny von Westphalen e era de família nobre. Uma santa. Suportou nossa vida miserável, porque eu não trabalhava, sem se queixar. Dois dos nossos filhos e uma filha morreram porque eu não tinha recursos para tratá-los, e a Jenny agüentou firme.

ML: Mas esse devotamento de Jenny não o impediu de ter uma filha com a governanta Helena.

Marx: Prefiro não falar sobre o assunto.

ML: Então me fale sobre suas idéias. Resuma seu pensamento sobre religião.

Marx: a religião é o ópio do povo e eu sou ateu.

ML: O senhor dizia que a colonização dos países do Terceiro Mundo era a condição fundamental para a criação do capitalismo de onde sairia um proletariado revolucionário, continua achando isso?

Marx: Como sabe a professora, a teoria na prática é outra. Assim, deu tudo errado. Previ o capitalismo plenamente desenvolvido para a Alemanha e a Inglaterra, o socialismo saiu na Rússia e aí, danou-se. Quanto ao capitalismo dos “boas vidas” é um arremedo, seu projeto de socialismo possui teor medieval, não têm propostas concretas e suas revoluções só servem para que tiranetes se locupletem no poder. Estou desencantado. Para culminar, o capitalismo vive superando suas crises e tornou-se algo diferente daquele do meu tempo. Chamam a isso de neoliberalismo. Vejo marxistas triviais, repetindo palavras de ordem. Eles não conhecem minhas obras e assim sua ideologia é indigente. Aliás, sempre disse para Engels que eu não sou marxista. Para piorar, os chamados marxistas são intelectuais burgueses, que aqui em São Paulo comem no Fazano. Já o proletariado não quer saber de mim, mas de melhorar de vida, como aliás aconteceu.

ML: O senhor é contra a globalização?

Marx: Como poderia ser se escrevi no final do “Manifesto do Partido Comunista: “Proletários de todo o mundo, uni-vos”?

ML: Bem, agradecendo a honra desta entrevista, gostaria que deixasse suas palavras finais para a esquerda global.

Marx: Jamais a ignorância serviu a alguém. E me diga a senhora, aqui servem cerveja Kaiser?

(entrevista publicada em www.olavodecarvalho.org/)

_____________


AI, QUE TÉDIO!

MARIA LUCIA VICTOR

Depois do furo jornalístico da semana passada, quando Karl Marx me concedeu a honra de uma entrevista exclusiva, tudo ficou banal. É verdade que não pude fazer a maioria das perguntas que desejava ao ilustre entrevistado porque ele tinha que se encontrar com Engels e estava atrasado. Mas quem sabe volta no carnaval e assim poderemos continuar a conversar, pois sua obra é vasta e há muito que esclarecer em termos de dialética, materialismo histórico, mais-valia, luta de classes, etc., nos dias globalizados que correm. Provavelmente Marx terá que reinventar suas teorias, e vou querer saber dele como pretende fazer isso.

De todo modo, o profeta do comunismo parece ter ficado impressionado com o Brasil, pois recebi dele uma carta em que me pede esclarecimentos sobre certas contradições que observou em nossa realidade, as quais despertaram sua curiosidade e desafiaram seu entendimento. Mais uma difícil missão para mim.

Um dos esclarecimentos solicitados relacionava-se com as escaramuças que se desenrolam no Congresso Nacional por conta das eleições dos presidentes da Câmara e do Senado. E como atender corretamente a Marx, se a cada dia novas alianças se tecem ao som de desaforos e ameaças que enchem os recintos que os congressistas gostam tanto de chamar de Casa. Casa de quem? Do povo que os elegeu? Por certo que não, mesmo porque, esses entreveros por cargos não interessam ao povo que segue elegendo os mesmos defensores de regalias pessoais ao invés do bem comum, fim último da política segundo Aristóteles.

Mas voltando ao assunto, quando Marx quis saber como é que pode o PT, portanto a esquerda, em determinado momento ter cogitado de dar seu apoio ao deputado Inocêncio Oliveira, portanto a direita, se o PFL apoiasse no senado a candidatura do senador Jefferson Peres do PDT, portanto, um meia-esquerda, tive que reunir todos os meus conhecimentos para explicar que isso se acontece porque não temos partidos na acepção clássica do termo, mas que impera uma lei chamada vale-tudo nessas agremiações, espécies de clubes de interesse sem ideologia, disciplina ou linha programática.

Outros enigmas, por certo de menor profundidade, também estavam listados na missiva a mim endereçada. Uma prova sem dúvida de confiança em meus conhecimentos de professora de Ciência Política, que tentei em vão corresponder. Como explicar ao mestre do comunismo o porquê dos nossos parlamentares rirem tanto? E o pior é que ele queria saber se riam para o povo ou do povo. Mal e mal consegui elucidar que riam uns dos outros por conta das rasteiras que se aplicam constantemente ao longo do estimulante exercício de busca de cargos e honrarias, atividade a que mais se dedicam no Congresso Nacional nossos representantes. Naturalmente ressalvei que existem honrosas exceções.

Quanto à colossal quantidade de CPIs que nunca chegam ao um desfecho, não creio que tenha conseguido me fazer entender. Isso porque não apresentei explicações de todo esclarecedoras nem perante mim mesma. E tudo piorou quando o grande intelectual alemão me perguntou a razão dos os parlamentares ficarem entretidos com uma CPI do futebol se o país parece ter ainda tantos problemas a resolver na área social. Isto, e porque ACM chorou, foram as questões mais difíceis que me foram propostas na carta do célebre pensador, que aliás continua extremamente confuso com relação ao nosso intricado panorama político.

Outra coisa que ele de todo não entende, diz respeito ao fato dos esquerdistas brasileiros mais eminentes serem tão ricos, morarem como burgueses, viajarem como burgueses, comerem como burgueses e, ainda assim, deplorarem o capital e os capitalistas. Isso não foi difícil de responder, pois recorri a uma explicação de Roberto Campos. “Como pessoas físicas eles são comunistas, mas como pessoas jurídicas, capitalistas’” Ah! exclamou Karl Marx. E graças a Deus pelo menos sobre esse tema ele não mais me perguntou.

Do Poder Legislativo ele passou ao Judiciário com sua incansável curiosidade. Por que, desferiu, o Brasil tem tantas leis se não costuma cumpri-las? Pacientemente me reportei aos primórdios de nossa colonização para demonstrar que nossa formação histórica não nos facultou um tipo de mentalidade onde sobressaísse o respeito às leis, a noção de direitos e deveres ou mesmo o trabalho metódico e disciplinado. Acrescentei que o segundo e o terceiro aspectos estão começando a ser superados em algumas regiões do País onde houve maior progresso, mas o primeiro continua como no tempo das colônias espanholas quando se dizia: “La ley se acata pero no se cumple”. Portanto, vale ainda a máxima: “Aos amigos tudo, aos inimigos a lei”. Ainda expliquei que aqui as leis costumam proteger não os inocentes mas os bandidos. Hum! emitiu Marx, parecendo se contentar com meus esclarecimentos redigidos num péssimo alemão na carta que lhe enviei com as tentativas de resposta.

No plano da psicologia coletiva também fui sabatinada, pois não é que o homem me indagou sobre o fato do brasileiro viver fazendo graça sobre a desgraça? Segredou-me ele que viu no nosso País gente batendo o carro e morrendo de rir. Gente estrebuchando de rir em velório. E as piadas? É, Marx nos viu rindo à propósito de tudo e de todos. Esclareci que o humor é nossa arma contra os infortúnios, que somos um povo de índole alegre, mas que somos ciclotímicos, pois oscilamos da euforia à tristeza mais profunda com incrível rapidez, conforme estejamos satisfeitos ou não com a política econômica do governo ou com os resultados das Copas do Mundo.

De lambuja ainda escrevi que somos o povo da fila, pois amamos filas, conseqüência de nossa burocracia desenfreada originada no Estado grande demais e, portanto, sujeito à corrupção e à incompetência.

Depois de enviar a carta com minhas respostas, fiquei meditando sobre estes tristes trópicos. Ai, meu Deus! Ai, que calor! Ai, que tédio!


Maria Lucia Victor Barbosa é socióloga, escritora e professora universitária.

E-mail: mlucia@sercomtel.com.br"

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