Tinha eu somente 6 anos de idade mas o barulho ressoa muito bem em meus ouvidos, até hoje.
Parece que ainda sinto o cheiro da pólvora queimada e toda aquela fumaça ainda embaça meus olhos.
Foi só uma brincadeira infantil que quase resultou em tragédia. Tenho um irmão, dois anos e sete meses mais velho do que eu. Terrível, desde bebê, a cada hora aprontava alguma. Uma vez bebeu um copo de um inseticida de cor alaranjada de nome Detefon, pensando ser guaraná e quase passou desta para a melhor. Mas dessa vez se superou na traquinagem. Meu pai foi uma pessoa muito boa e tranqüila e jamais ralhou com os filhos que ao todo somavam seis. Gostava muito da atividade agrícola, pois fizera isso durante toda a vida. Por ter trabalhado na roça desde a infância até sua fase adulta, possuía e cultivava como ninguém seus dotes de agricultor.
O quintal da casa onde morávamos, era imenso e eu e meu irmão tínhamos bastante espaço para executar nossas travessuras.
Meu velho pai havia feito um socador para acertar o solo onde havia feito uma cerca de divisa. Naquela época não se usava construir muros pois era muito alto o custo. Após fazer uso da improvisada ferramenta, largou-a, esquecida a um canto e esta lá ficou durante muito tempo. O socador era feito com uma lata quadrada com capacidade de 20 litros. Pegava-se um cano de ferro de mais ou menos 4 polegadas de diâmetro por uns 2 metros de comprimento. Enchia-se a lata com mistura de concreto até a metade. Deixava-se por uns dias a secar. Em seguida colocava-se o cano bem no centro da lata e acabava-se de preenche-la de concreto deixando secar por mais alguns dias. Após a secagem já estava pronta para o uso. Somente meu pai conseguia levanta-la do chão de tão pesada que era, por isso não oferecia qualquer perigo para mim e meu irmão.
Mas um dia, e que dia aquele, ele teve a infeliz idéia de trazer o objeto para perto de um pé de tangerina, bem no centro do quintal, pois precisava consertar a tela da cerca lá no fundo e o objeto o estava atrapalhando. Executou rapidamente o trabalho, mas esqueceu o indesejável objeto ali por alguns dias. E ai entra toda a astúcia do meu irmão.
Olha para mim, e com ar matreiro me convida a construir um canhão. A princípio era somente brincadeira, mas sua idéia nos levaria mais longe.
Conseguimos alguns metros de uma fina mas resistente corda de fibra. Deitamos o socador entre meio os galhos baixos da árvore e o amarramos com aquele cordel. E durante poucos minutos, passamos a brincar como se aquilo fosse um canhão de verdade. Não contente, pois a brincadeira ficaria monótona após algum tempo, meu irmão foi até um quartinho que havia na lateral da casa e lá começou a procurar alguma coisa. Para total falta de sorte achou em um velho baú, alguns fogos da festa junina anterior que lá estavam guardados e ninguém sabia por que.
Sorrateiramente fomos atrás da casa e desmanchamos as bombas. Eram mais ou menos umas 8 ou 10. Recolhemos toda a pólvora em um recipiente de vidro vazio, daqueles que continham sal de fruta e o guardamos. Armados de martelo e prego fizemos um buraco na base do cano, perto da lata. O buraco possuía o diâmetro da cabeça de um palito de fósforo. Sem que minha mãe percebesse, furtamos a caixa de palitos da cozinha, quebramos um palito e encaixamos a “cabeça” deste, no buraco do cano. Pronto o estopim estava armado. Levamos toda a pólvora para perto do improvisado canhão e sem que ninguém desconfiasse, derramamos todo o conteúdo do vidro no interior do cano. Aí meu irmão:
- Agora é só passar a caixa de fósforo na cabeça do palito, que vai sair o maior fogaréu pela boca do cano...
- Vá até lá, bravo soldado! Execute o comando! - bradou meu oficial superior.
Antes tivéssemos feito isso. Já ia eu me dirigindo para executar o comando sob as ordens do general, quando este teve outra de suas idéias:
- Ah! Mas só fumaça não tem graça! Precisamos de alguma coisa mais “legal”.
E fomos os dois lá para o fundo do quintal, recolher alguns minúsculos pedregulhos. E com um pedaço de jornal amassado, construímos uma “bucha” para separar a carga explosiva das minúsculas pedras também colocadas no grosso cano. Tudo pronto, canhão construído, carregado e pronto para disparar. Mas desta vez meu superior militar teve outra boa idéia graças a Deus, pois antes de ser meu superior, era meu irmão.
Conseguiu uma vara de bambu, que minha mãe usava para a sustentação de uns dos varais de roupa. Amarrou a pequena caixa de fósforo e uma das extremidades e segurando na outra levamos a caixa em direção do cano onde estava a cabeça do palito encaixada no cano. Delicadamente erguemos o vara e esfregamos a caixa na cabeça do palito e ai... BUM!!!!
Só sentí a imensa chuva de terra caindo sobre a minha cabeça...
Meu irmão estava a um passo de mim e eu não conseguia vê-lo, tamanha a quantidade de fumaça existente no quintal. Ele falava comigo e eu não conseguia ouvi-lo. Ouvia apenas o zumbido causado pela explosão. Cheguei a imaginar que o mundo tinha acabado, ou até que tivéssemos morrido os dois. Fiquei ali em pé, todo arrepiado, durante não sei quanto tempo até que toda aquela fumaça se dissipasse. O tempo passou e graças a Deus já conseguia ver meu irmão que me olhava meio assustado. Falar alguma coisa, nem pensar. A voz não saia. Nos entreolhávamos e a expressão do outro provocava mudez. Foi quando nos viramos para a varanda que fazia fundos com a casa. Quase todos os moradores da rua estavam lá, juntamente com minha mãe e meu pai, que nem se atreviam em descer para o quintal pois estavam tão assustados quanto nós. Os vizinhos correram para minha casa pois imaginaram que o botijão de gás do fogão houvesse explodido.
Olhamos para o pé de tangerina.... Não estava mais plantando no chão. O cano rachado ao meio e a lata a uns 10 metros de distância aberta como uma folha de papel. Então para nossa surpresa, conseguimos enxergar em meio a toda aquela fumaça se dispersando, a cerca de divisa que meu pai havia demorado quase um mês para construir... Enfim! Era uma cerca de quase três metros de altura, os mourões de sustentação eram mais ou menos 10 ao todo. Eram dormentes de linha férrea enterrados uns dois metros solo abaixo. Indestrutível! Meu pai ainda dizia dias atrás que aquela cerca iria durar uns 50 anos ou mais, tamanha sua imponência. Bom, mas falando da cerca, ela estava inteira no chão. A carga de pedras impulsionada por toda aquela pólvora, havia ido de encontro ao mourão central e a coitada havia simplesmente desmoronado. Restou-nos apenas dois dias depois, após sair do castigo imposto pela minha mãe, ajudar meu pai a começar a reconstruir a “indestrutível cerca”. E a limpar os estragos do quintal. Ainda me lembro que ele nos disse o seguinte:
- Vocês dois, vão me ajudar a fazer a cerca novamente, certo? Só quero duas coisas: enquanto estivermos trabalhando, não quero nenhuma conversa e nenhuma risada, ou voltam os dois para o castigo... e tem mais...bombas aqui em casa: nunca mais... Como se fosse possível calar duas pestes e controlar suas risadas...
Bons tempos aqueles...