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Humor-->O mais humano dos medos -- 01/01/2000 - 22:25 (amelialopes) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
O mais humano dos medos

Medo de dentista parece que é geneticamente determinado, todo mundo tem. Eu, porém, não sinto apenas medo, mas sim pavor. Quando estou na sala de espera de um, fico sempre inconformada, perguntando a Deus: Por que o senhor não criou os dentes auto-renováveis, estraga um, nasce logo um outro novinho?
Aliás, acredito firmemente que todo dentista é antes de tudo um sádico. Sentem prazer em ver suas vítimas, ops! digo clientes aterrorrizados, contorcendo-se na cadeira. Até o barulhinho do motor foi estrategicamente pensado. Já na sala-de-espera você o ouve e sofre por antecipação, imaginando-se o próximo a ser torturado.
Agora, requinte de crueldade mesmo é a tal da cirurgia para extração do dente siso. Sempre se que se fala em medo de dentista, alguém lembra justamente o dia em que arrancou o siso. E contam tudo, com tantos detalhes sanguinolentos e dolorosos que penso que Jason , o assassino do filme “Sexta-feira 13” foi inspirado em tais cirurgias.
Eu mesma já presenciei um drama desses. Meu marido após a extração do siso saiu pela rua... chorando feito bebê! Ao chegar em casa foi direto para a cama e lá ficou por três dias fartos de gemidos e suspiros.
Depois de ouvir tantas histórias dramáticas, é natural que eu encarasse a retirada do siso como algo terrivelmente doloroso, um verdadeiro pesadelo. Consegui passar 33 anos incólume, até que...
- Amélia, esse seu dente siso não dá para ser obturado, precisa ser extraído. E rápido – sentenciou.
Tentei ignorar.
- Passa um antiinflamatório. Hum.... não melhor . Faça um canal.
- Lamento, esse não tem jeito – respondeu com um sorrisinho malévolo.
- Ta bom. Mas eu tenho direito a uma segunda opinião.
Dez opiniões depois. Rosto inchado e envolto num lindo lencinho xadrez azul,
combinando com a saia, voltei derrotada ao consultório do primeiro dentista no começo de setembro.
- Ok! Marca a cirurgia para início de outubro.
- Não é possível esperar tanto tempo. Vamos marcar para depois de amanhã.
Fui embora para casa arrasada. Febril, rolei na cama a noite inteira, visões de mim,
sendo torturada na cadeira do dentista espocavam como flashes.
Chegou quinta-feira. Superagitada, eu caminhava de um lado para o outro, olhando o relógio de minuto a minuto. Minhas mãos suavam e tremiam. Confesso: estava em pânico.
- Amélia, tá na hora, vamos - chamou meu marido.
- Já vai. Espera um pouco que vou passar um batom.
Dito isso, corri para o banheiro e me tranquei lá.
Meu marido tentou de tudo para me convencer a sair. Bateu na porta, xingou, argumentou. Nada. Eu, em pânico, sentei-me no chão e lá fiquei até que ele já desesperado, chamou toda a família: minha mãe, a sogra, sogro, e até meus filhos de 9 e 13 anos para ajuda-lo.
Conseguiram. Fomos todos juntos para o consultório.
Na sala-de-espera, sentei-me dura, retesada. Meus ombros e o pescoço doíam de tanta tensão. Qualquer barulhinho e eu já pulava sobressaltada. Minha mãe segurava uma mão, meu marido a outra. Minha sogra cochichou com o marido:
- É manhã. Onde já se viu tanta confusão por um dente.
- O próximo – chamou a secretária.
Levantei-me de um pulo e tomei a direção da porta da rua. Mas lá já estava , de braços abertos, minha sogra. Olhei para a janela. Sete andares.
- Acho que dói menos – pensei.
- Mãe, chamou meu filho, entro com você.
Pronto. Era muita humilhação. Era preciso reagir. É dever de toda mãe mostrar para seus filhos como enfrentar bravamente as vicissitudes da vida.
- Ok! Eu entro. Mas só se vocês entrarem juntos.
Depois de muita confusão, entramos . Cada um procurando um canto para se acomodar. Eu muito gentilmente ofereci para minha sogrinha querida a cadeira principal. Ela recusou.
Sentei-me e agarrei os braços da cadeira com toda força.
- Abra a boca – ordenou o dentista.
Abri.
- Abra mais! Abra tudo.!
Quando ele chegou perto, já com a anestesia preparada, fechei a boca.
- Posso cuspir? Minha boca está cheia.
- Pode, mas depois coopere e abra bem a boca. Prometo que não vai doer nada.
Olhei para ele, incrédula. Como alguém pode ser tão cínico?
- Doutor , se o senhor quiser , posso ajuda-lo, segurando a boca da paciente – ofereceu minha sogra.
Fuzilei-a com um olhar.
Anestesiou-me. Enquanto esperava que a anestesia fizesse efeito, ele remexia seus instrumentos. A velha enjoada puxou assunto:
- Doutor, esse medo exagerado é coisa do demônio. O senhor não acha?
Ela era uma daquelas crentes bem fanáticas que dava um “pum” em público e botava a culpa no diabo.
- Não – respondeu o dentista. Esse medo é bem humano. Até eu tenho.
- Se o senhor não se importa, eu vou rezar. Vou expulsar o demônio da covardia.
Sem esperar por uma resposta, ela ergueu os braços e começou. Primeiro o Pai-Nosso, depois, outras. A voz - a cada oração – aumentava mais de volume.
- Eu te expulso demônio em nome de Jesus ! Jesus tem poder!! – gritou erguendo a mão direita, imponente e com uma expressão severa.
O dentista virou-se.
- Eu pedi para rezar baixinho. Assim não dá.
- Vades Retro Satanás!. Berrou ela em resposta.
De boca aberta eu estava, de boca escancarada fiquei.
A velha entrou em transe histérico. Gritava por Jesus, batia as mãos e sapateava.
- Vade Retro Satanás! Abandone esta irmã.
- Eu nhem!? Velha doida. Será que já não basta o meu próprio escândalo?
Mas o pior estava por vir.
O dentista que estava paralisado pelo susto, de repente começou a tremer. Primeiro de leve.
- É de raiva – pensei – e eu que vou sofrer mais.
Depois, ele começou a tremer violentamente e a babar. Seu corpo dava saltos. Berrando, atirou seus instrumentos no chão.
Eu, mais do que depressa, saí da sala junto com os outros. Lá ficaram apenas o dentista e a sogra.
Ficamos na sala-de-espera. O barulho era terrível. Gritos e orações.
Finalmente, minha sogra saí e anuncia vitoriosa:
- Ele manifestou. Eu não disse? Tava com o demônio.
Uma semana depois meu siso ainda estava no lugar. O rosto inchado e dolorido. Sorte que descobri no jornal um dentista que receita florais de Bach e trata dos dentes com terapia de regressão a vidas passadas.
- E o dentista? Ah, converteu-se ao pentencostalismo e fundou uma igreja chamada “”Igreja do boticão anuncia a vinda próxima de Jesus” – Arrependei-vos , irmãos.


Amélia Lopes

Caro leitor,

Gostaria de receber sua opinião sobre esse meu atentado literário. Envie um e-mail para : amélialopes@zipmail.com.br

Obrigada.




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