URANIA
Autor: José Osvaldo de Meira Penna
Gênero: Ficção Científica
Num. páginas: 182
Versão Digital: R$ 18,28
Versão Impressa: R$ 36,55
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S U M Á R I O
01. A Conferência de Cosmobiologia de São Paulo
02.Perspectivas filosóficas da Conquista do Espaço
03.A Salvação no Céu
04.Polêmicas siderais
05.A Ficção científica
06.Pródromos do Grande Debate
07.Pluralidade ou Singularidade dos Mundos Habitados
08.O Universo Infestado de Demônios
09.Desperdício na Natureza
10.A Coincidência impossível
11.Arthur Ditú, o Petit Prince e o Itii
12.Uma Teologia sideral
13.Discos Voadores e Mandalas
14.O OVNI está chegando
15.Micromégas e os E.T.s de Monsieur Arouet
16.Epílogo. A Solidão de Cândido
***
A CONFERÊNCIA DE COSMOBIOLOGIA DE SÃO PAULO
Como chefe do Departamento Especial de Cooperação Técnica e Científica do Ministério das Relações Exteriores, Cândido Pafúncio compareceu à Terceira Conferência Internacional de Cosmobiologia e Vida Extraterrestre, realizado em São Paulo em princípios de 2007, neste novo século e milênio que tantas extraordinárias experiências e descobrimentos promete para a Humanidade. O certame foi promovido pela Associação Internacional de Cosmobiologia cujo Presidente é o celebérrimo professor Carlo Sagana, da Universidade de Cornell, estado de Nova York. Cabia o patrocínio à ativa e entusiástica Sociedade Brasileira pelo Retrocesso da Ciência. Esta contava com o apoio da Secretaria da Contracultura do governo federal. Era a primeira vez que a conferência se reunia no Brasil. Causou imensa sensação. Não apenas que os ilustrados e respeitáveis centros científicos do país se viram focalizados pelos mídia internacionais, mas também nos variados meios de comunicação de massa indígenas, tupiniquins e botocudos, fora a atenção despertada para a ciência fictícia (para distingui-la da ficção científica, já há muito vulgarizada em Pindorama) em seus aspectos mais salientes.
O certame promoveu três dias de debates em alto astral. Inaugurou-se uma exposição sideral, com projeções cósmicas no hotel Maksoud Plaza. Presentes delegados de quatorze países, a saber: Rússia, Estados Unidos, Japão, China, Alemanha, França, Suécia, Canadá, Cuba, Costa Brava, Pongo-Pongo, Palestina, Israel e Brasil, o único sul-americano convidado. Era delegado brasileiro o professor Ludovico de Freitas Pavão, brilhante e conhecido cientista de longos cabelos astronômicos e emérito colaborador cosmológico do "Jornal do Brasil", que, com tato invulgar, ocupou a presidência de honra.
À sessão inaugural compareceu o governador de São Paulo, Dr. Takechi da Costa Tanaka, um tipo legal; e a Prefeita Celestiana Pedrosa Chuí, figura polêmica. Cerimônia solene e festiva, e como! No grande saguão central do hotel foram apresentados modelos espantosos, supercomputadores pós-modernos, robôs aperfeiçoadíssimos, quase humanos, aparelhos complexos para comunicação interestelar e intergaláctica, assim como figurações hipotéticas de diversos tipos de civilização extraterrena. Um espetáculo! Cândido acompanhou os debates, dirigidos pelo prof. Freitas Pavão, com indisfarçável entusiasmo: na adolescência se havia interessado pelos astros, havia sonhado com homenzinhos verdes que traziam a felicidade enlatada e bem acondicionada em seus veículos espaciais, e se prometera mesmo, certa vez, no bonde de Botafogo (quando ainda trafegavam esses veículos da indigitada Light), ser passageiro de uma astronave para a Lua. Ele lia Júlio Verne e H.G. Wells, o que lhe provocava tempestades cerebrais extremamente perturbadoras. Seu velho guru e professor, o Dr. Aristóteles Di Pífio, lhe havia incentivado o pendor. O contato com espécies inteligentes de outros mundos celestiais tenderia a melhorar a Humanidade, criticando seus defeitos e sugerindo novéis soluções, singulares, para nossos intratáveis problemas coletivos.
A delegação russa, à qual se integravam um representante do Kasaquistão e um ucraniano, era numerosa, erudita, esquiva e fortemente enquadrada por algumas figuras patibulares. Pancho Cuevas, o delegado da Costa Brava, viera acompanhado da mulher, Conchita, uma mulata jovem, petulante, abundante, boca sensual, olhos faiscantes, vestida com saias aberrantes e despida em decotes abismosos. Ela não tardou em popularizar-se na assistência, qualquer que fosse a nacionalidade ou ideologia, pela familiaridade e eqüanimidade do tratamento: a todos distribuía sorrisos e olhares sugestivos, insinuando contatos imediatos do primeiro grau - com possibilidades de rápida promoção para graus mais avançados, em etapa ulterior de exploração sideral. Paco Rodriguez Rodriguez, o delegado cubano, era velho amigo de Cândido: haviam-se conhecido em Pongo-Pongo onde Paco exercera as funções de Embaixador de El Comandante Fidel Castro. Renunciara à carreira diplomática por pressão de Raul Roa, com quem se indispusera. Na vida intergaláctica esperava encontrar a satisfação de seus sonhos libertários, cultivados desde a infância como filho de uma prostituta de Havana. Detestava os opressores e os exploradores. Seu desejo secreto era aplicar as teorias de Marx à difícil problemática da exobiologia, provocando uma revolução cósmica... Seria um herói que entraria para a história!
A Delegação americana era naturalmente chefiada pelo próprio Carlo Sagana. Estrela hollywoodiana de 1ª grandeza da vida sideral, era Sagana considerado o principal expoente da escola dita do "ah! oh!", na ciência física. Foi também a supernova da Conferência. Tipo extra-vertido, extra-vagante e extra-ordinário, verdadeira prima-dona da astronomia popular, animava a todos os participantes do certame com sua ardente e absoluta convicção de, mais dias, menos dias, iria estabelecer contatos do segundo, terceiro e talvez mesmo quarto graus com inteligências extraterrenas. SETI - Search for Extraterrestrial Intelligence constituía sua obsessiva preocupação, à qual dedicava dezesseis horas de sua compulsiva atividade diária. Ansiava ser o Copérnico, o Newton e o Einstein da exobiologia, tudo de uma só vez. Trajava uma T-shirt com o S de Superman-Sagana. Envergava um capacete de motociclista com dupla antena acoplada a um rádio transmissor e computador de bolso. Com tal aparelho mantinha-se em permanente comunicação, direta, com a NASA, em Houston, estado do Texas, através de satélite. Além de Sagana, Joel Achenbach era outro importante conhecedor do tema entre os americanos. Interessantes também, como figuras de sábios, o alemão Kai-uwê von Sternbach e seu companheiro sueco, Johann Olsen Egge. Os dois vinham dispostos a apresentar teses revolucionárias sobre um problema da maior relevância para a ciência da biologia cósmica e, segundo afirmavam, para a própria sobrevivência da humanidade terrena. Tratava-se da questão dos Electrovetores supercondutores criogênicos, com base em cristais densos de neutrons acondicionados em starminers modulares politáxicos, possuidores de uma fabulosa energia, que Kai-Uwê calculava em algo da ordem de dez mil vezes à que é produzido pela fusão do núcleo de hidrogênio em hélio. Ele nutria ainda, porém discretamente, o ambicioso projeto de utilização dessa energia para o controle e organização das estrelas e, eventualmente, o domínio da Galáxia. Associou-se a Paco Rodriguez, embora não apreciasse o regime cubano, pois nutria tendências trotskistas. Como, por outro lado, era também ecólogo, budista, anti-racista e feminista, negava-se a usar o termo "Humanidade" para nossa espécie terrena. A essa palavra preferia as expressões, politicamente mais corretas, de "Animalidade" ou "Especisismo". Evitava desse modo discriminação contra o sexo feminino, implícita no termo "Humanidade" (do latim homo, homem), e contra os animais. Prevenia-se, do mesmo modo, contra qualquer discriminação planetária, racial ou específica contra os E.T.s. Essa posição "politicamente correta" provinha do fato de sofrer de graves complexos de culpa inconscientes, pelo fato de seu pai haver sido o comandante do campo de concentração de Buchenwald e prestigioso oficial das SS Totenkopfverbände - refugiado no Paraguai no pós-guerra, onde fora eliminado por agentes do Shinbet israelense.
A tese de Sternbach e Egge, soube-se logo, seria contestada pelo russo Alexei Ivanovich Stárin, Secretário Geral da Academia de Ciências da Rússia. Stárin era pessoa que não gozava de muita confiança do Presidente russo. Isso porque havia sido auxiliar de Gorbachov, o qual dera início ao momentoso processo de glasnost que havia revolucionado e dissolvido a URSS. Como eminente autoridade em matéria de genômios, nas espécies gregárias de tipo termiteira-formigueiro que mais se aproximam da organização socialista, Stárin era, no entanto, cercado do maior respeito pelos especialistas em cosmobiologia.
Já na primeira sessão, de abertura, ocorreu o foguetório. Cândido Pafúncio tudo observou com a mais aguda atenção. Cabia-lhe informar adequadamente às curiosas e sofisticadas altas autoridades do Itamaraty. Após os discursos de boas-vindas e de apresentação em que o professor Freitas Pavão, em explosiva retórica, proclamou o Brasil, generoso e belo país desprovido de preconceitos de raça, o terreno ideal para os contatos imediatos com as espécies intergalácticas, o canadense John Skywild pediu a palavra. Em tom tranqüilo, porém forte e incisivo, ele protestou contra o que qualificou de tentativa do Dr. Sternbach de introduzir um elemento de confusão agressiva nos debates, ao levantar e tentar introduzir na agenda da Conferência a questão cabulosa dos starminers modulares politáxicos, sem qualquer relevância do ponto de vista do tráfego interestelar em veículos do tipo UFO ou OVNI. Em outras palavras, acusou Sternbach de fascista ou neonazista. Angustiado por seu complexo de culpa e reação inconsciente ao Complexo de Édipo mal elaborado, o alemão quase sofreu uma crise apoplética: sentiu-se profundamente injustiçado pois era um humanista, ou melhor, um animal político acima de qualquer suspeita.
Mal havia, porém, terminado a sua intervenção quando se levantou o sheik Rachid al-Babuni, representante da Organização Árabe de Exportadores de Petróleo, falando em nome da Palestina, para exigir a inclusão do árabe como língua de trabalho da conferência. Nisso foi apoiado pelos dois centro-americanos, Paco Rodriguez e Pancho Cuevas. Irônico mas incisivo, Carlo Sagana interrompeu a troca para salientar que o problema não era o das línguas terrenas, diferenciadas desde os tempos da Torre de Babel, mas o da descoberta de meios de comunicação mental interplanetária. "Qual a língua do planeta 3 xy de Aldebaran, cujo tipo de civilização, 15.000 x 3R, já permite contatos imediatos do segundo grau?", inquiriu retoricamente - sabendo-se que 15.000 significa o número de anos de progresso tecnológico que, de um ponto de vista histórico-evolutivo, o aludido planeta pode possuir de avanço sobre a terra, multiplicado por um fator aleatório de três. O sheik Rachid al-Babuni exigiu imediata retratação das palavras do representante americano que julgou ofensivas. Acusou Sagana de capitalista e pro-sionista: ele estaria tentando, imperialisticamente, impor o inglês como língua única de trabalho - no que foi sustentado pelo russo Alexei Ivanovich Stárin que gritou: "Nyet!". Al-Babuni voltou à carga. Propôs a expulsão do delegado de Israel, Shlomo Dreifuss Ben-Haifa, e alegou que este não representava o povo da Palestina independente, mas apenas a população judia. Acrescentou que o profeta Mahomet (louvado seja!) percorrera os céus no cavalo Barak, proporcionando aos fiéis muçulmanos meios mais privilegiados de comunicação intergaláctica de que qualquer outro veículo terrestre ou espacial, inclusive os inventados pelos judeus.
O professor Takeshi Araki, da Universidade de Osaka e representante do Japão, observou então a compatibilidade entre os hálitos sulfônicos poliaromáticos do planeta 3 xy de Aldebarán com a abordagem dos contatos imediatos em língua árabe. Pediu a inclusão desse item na Agenda. Sem compreender o que se passava, convicto porém que o Dr. Aristóteles Di Pífio tinha razão quando afirmava que o progresso científico melhoraria as relações humanas até suprimir as diferenças de língua, Cândido perguntou a um seu vizinho japonês, repórter do Asahi Shinbum, em que sentido o prof. Araki encontrara tal compatibilidade dos hálitos sulfônicos poliaromáticos com a língua árabe. "Sim Senhorú, Exsuelentissimú", retorquiu o nipônico, "Dotorú Arakí, deregadô japonês, japonês, tem insuturuções esturitas de Tokyô no sentidô apoiarú árabi poru causa peturóreu, peturóreu, peturóreu...". E, abaixando-se em profunda saudação e assobiando por entre os lábios cerrados, acrescentou com um riso nervoso: "peturóreu cósumicô, ah! ah! ah!"...
Meditou Cândido sobre o admirável e evidente esforço dos delegados de todas essas grandes e ricas potências de realizarem o ideal meliorista, tão acariciado por seu velho mestre o Professor Aristóteles Di Pífio, de avanço científico no conhecimento, na paz, no amor e na justiça intergaláctica. Começou a bater palmas. E, pedindo a palavra em nome do Governo brasileiro e por ordem do Itamaraty, exaltou a concórdia entre os povos e as potências, inclusive as íntegra e extra galácticas. Acentuou que o Brasil, povo pacífico que resolveu pela arbitragem seus problemas fronteiriços, sempre defendeu a paz, o princípio de não-intervenção neste ou em qualquer outro planeta, e o respeito aos direitos e autodeterminação dos povos. De vários locais do salão partiram assobios "psiu, psiu", exigindo silêncio. O professor Freitas Pavão bateu fortemente na campainha. Mas as escaramuças prolongaram-se. Mal se iniciava o debate substantivo em torno do tema, fascinante e decisivo, dos electrovetores supercondutores criogênicos, com cristais densos de neutrons acondicionados em bolhas de sabão etéreo e antes mesmo do encerramento da primeira sessão, já Pancho Cuevas, o delegado da Costa Brava, demorou-se uma hora e meia para expor, em discurso emocionado e condimentado de farta adjetivação, os magníficos e inéditos progressos efetuados por seu país, sob governo progressista, na área da biologia cósmica e das comunicações interestelares. O sucesso fora o resultado do grande esforço popular pois a Costa Brava só possui um pequeno radar para tais comunicações. A pobreza de meios é suprida pelo talento dos jovens membros da Associação Operária pelo Progresso da Tecnobiologia de Costa Brava.
Biciki Puyitá, delegado da República Democrática Popular Científica, Progressista e Revolucionária de Pongo-Pongo, enfatizou por sua vez, durante duas horas, os triunfos dos cientistas pongo-ponganos que, inspirados pelo gênio incomparável de seu líder e Grande Piloto, o presidente de Pongo-Pongo, Sua Excelência o Enarca, Marechal de Campo e Doutor Shushufindi, Herói dos Direitos Humanos Subdesenvolvidos, haviam, três meses antes, construído por meios artesanais populares e enviado ao espaço uma noz de coco. A noz já estava transmitindo informações "espiritualistas", as quais eram sintonizadas pelo feiticeiro-mor de Pongo-Pongo. As duas comunicações, a de Pancho Cuevas e a de Biciki-Puyitá, foram recebidas com atenção, grande respeito e certo ceticismo. Foram aplaudidas discretamente. Eram excepcionais exemplos dos esforços do Terceiro Mundo nessa área de tecnologia de ponta. Ninguém se atreveu a causar embaraços aos P.E.D.s (países em desenvolvimento) com uma solicitação extemporânea de comprovação científica desses alegados contatos através de distâncias medidas por milhares e mesmo milhões de anos-luz.
Foi então que Cândido notou na platéia, do outro lado do auditório, a figura sempre mordaz e atenta de seu velho amigo, o francês François Marie Arouet. Era ele. Com seus longos cabelos em cachos, seu sorriso irônico, a expressão maliciosa, a cabeça magra e simiesca, a indefectível Gaulloise apagada a um canto da boca amarga, era ele certamente. Acenou com insistência, aproximou-se e lhe apertou calorosamente as mãos. Havia mais de quinze anos que se haviam encontrado em Paris, por ocasião do almoço na Embaixada do Brasil, quando fora cobrir, ainda por conta do Departamento da Ásia do Ministério das Relações Exteriores, o escândalo do japonês canibal que provocara um incidente internacional. Arouet era agora o delegado francês à Exobiologia. Historiador, poeta, filósofo, escritor de renome e jornalista nas horas vagas, não era um especialista no ramo. Havia sido, porém, amigo íntimo e inconfortável do Presidente Mitterand, que conhecera em Vichy à época da IIª Guerra Mundial. Fora agora, provavelmente, despachado para essa conferência em S.Paulo de maneira a não causar embaraço ao Presidente Chirac, que queria se ver livre de OVNIs e ETs.
Obs.: Leia, também, o livro do embaixador Meira Penna "Cândido Pafúncio", hilário do início ao fim (F.M.).