Hoje acordei embestado, com uma pergunta fixa na cabeça. Quem sou eu? É uma questão que tangencia meus pensamentos de vez em quando, quase como um fantasma que esporadicamente aparece para assoprar na nuca dos desavisados, mas logo some. Pensei, e agora? Já sei, vou ao médico, ele vai ter que saber quem eu sou.
- Bom dia, como vai?
- Vou bem, doutor.
- E então, o que você tem?
- Bom, estou aqui para saber quem eu sou.
- Hã ... você não sabe quem é seu pai? Ou sua mãe? Ambos?
- Sei.
- Pensei que queria um exame de DNA. Então você sofre de amnésia?
- Não.
- Humm ... toma alguma medicação?
- Ah, pouca coisa. Gardenal, Lexotan e mais uns três faixas pretas de nome complicado.
- Quem receitou?
- Ninguém. Peguei na internet.
- Internet?
- É, achei no Google ...
- Google? Ahã ... e você não sabe quem você é?
- Pois é. É uma dúvida que me consome, quem sou eu afinal?
- No seu caso, acho melhor nós começarmos vendo se está tudo bem com a sua cabeça. Vou pedir um raio X.
- Isso! Pensei nisso também. Se bater um xerox da cabeça vai dar para ver o que tem dentro e saberei quem eu sou!
- O nome é raio X.
- Ou isso.
- Está aqui a requisição. Passar bem. Volte com o exame.
Fui logo fazer o tal exame. Cheguei e fui já pedindo para bater um raio xerox, xérox, cheroquis, sei lá, dos miolos. Eles leram o papel e me mandaram para uma salinha lá, encostaram minha cabeça numa placa branca, ora assim, ora assado. Numa máquina de xerox normal o papel fica deitado, mas nessas para cabeça ela tem que ficar de pé. Mandaram eu voltar amanhã para pegar o resultado. Explico que é urgente, um caso de morte ou morte. Eles dizem que o médico não pediu urgência. O pateta esqueceu, retruco. Seu eu morrer, processo todo mundo. Fica pronto em uma hora, avisam. Sento e espero.
Aqui está, tenha um bom dia. Já do lado de fora, abro e vejo que o xerox é preto e branco. Enlouqueço. Volto e peço colorido. Eles me olham sem entender, gente burra! Achei que qualquer lugar, hoje me dia, fazia cópia colorida. Justo aqui, não. Este raio xerox é dos antigos, só preto e branco. Paciência, vai este mesmo. Foi rápido, ainda dá para voltar no médico hoje.
- Olá, doutor, eis o exame.
- Que rapidez! Deixe-me ver. Hum ... você não tem nada.
- Eu não achava mesmo que estivesse doente, eu só queria sab ...
- Você não entendeu, você não tem nada na cabeça. Está faltando o cérebro.
- Faz falta?
- Normalmente sim.
- Mas eu estou bem sem.
- Pois é, mais um mistério para a ciência. Você deveria ter morrido ainda no ventre ou logo após o parto. Você é um anencéfalo.
- Então é isso que eu sou? Com nome de mulher, Ana Incéfalo?
- Ai, ai ... espera aí, deixa eu ver melhor, tem uma coisinha ali, um carocinho. Você tem cérebro sim, mas é bem pequeno. Diria então que você é um microcéfalo. Ou cérebro de azeitona, se preferir ...
- Microcéfalo é legal. Micro, coisa moderna. Pentium 4, 3 ghz, 512 de memória ... e tem nome de homem, Sr. Micro Incéfalo. Obrigado, doutor!
- Acho melhor enviar você para outro especialista. É bom lhe dar um tratamento.
- Se é para o meu bem, agora que já sei quem sou, topo tudo. Como é o nome do tratamento?
- É guillotin.
- Chique. Parece francês.
- Foram eles que inventaram. Usavam para acabar com os problemas na cabeça de quem eles achavam que precisava. Faziam um bem para eles e para a sociedade. Tudo pelo social. Por aqui, alguns chamam guilhotina ... vou te dar o endereço.
- Ele é especialista em quê?
- Faz várias coisas. Abortos clandestinos. Aplicação de silicone em bichas pobres e outras coisinhas ...
- É médico?
- Quase. Só não se formou. É que não o deixaram fazer vestibular, só porque parou de estudar no segundo ano primário.
- Sacanagem. Coisa de Brasil.
- Está aqui, vai lá e procura pelo Dr. Fura Tripa. Mas já paga adiantado para mim. Duzentos mangos do meu trabalho e quinhentos do dele.
- É caro!
- Vai valer a pena, fica frio.
- Terei direito a reconsulta?
- Claro, mas não vai precisar não.
- Beleza, então está aqui o cheque. Já que o senhor disse quem eu sou, nem me importo em gastar. Adeus, doutor!
- Adeus, felicidades ... idiota babaca ...
- Como?
- Eu disse adeus, felicidades!
- Para o senhor também.
Bom, então antes de ir lá no consultório do Dr. Fura Tripa resolvi passar em casa e contar tudo o que me aconteceu nesse dia maravilhoso. É que talvez o tratamento demore um pouco, sei lá, mas estou feliz, agora já sei quem sou. Fui.