O Afonso e o saco-de-pancadas dele e da mãe dele (esclareço: eu, o próprio!) passamos a nos entender muito bem assim que me tornei um temido faixa branca de judô. A bem da verdade, diga-se que essa minha primeira aventura marcial - ver texto "Testículos e Estrelas" - durou pouco. Só até que me esmagassem as “orquídeas” – digo, testículos, pois, sendo grego de nascença, tive de ser alfabetizado em armênio - durante um volteio de mau jeito. Resolvida finalmente essa diferença fraternal, a nossa amizade durou o suficiente para compensar o passado desperdiçado pelos primeiros quinze anos de entreveros diários.
No período de 23 anos em que fui carioca (sem nunca ter sido assaltado), dividimos o mesmo quarto (em camas separadas, atenção!), no apartamento de nossos pais. Depois, ele se casou – com uma mulher! – e eu, desolado com o ambiente pecaminoso de tortura que os primos milicos implantaram na ex-doce, porque ex-maravilhosa, cidade de S. Sebastião, decidi, dois anos depois, montar no fusquinha que papai me legou e ir plantar soja no cerrado brasiliense junto com Dom Bosco.
Aconteceu, porém, que depois me desvirtuei, dedicando-me a especular, desenfreadamente, no mercado financeiro, onde agora, por falta de fundos, dedico-me, estribado em incríveis técnicas de meditação budista, a relembrar os momentos sublimes de minhas encarnações pretéritas.
Depois disso, passamos a nos encontrar (melhor que nos defrontar!) apenas esporadicamente – no máximo duas vezes por ano, com exceção dos três em que vivi em Londres, direto, sem pisar no “patropi” e me entupindo as artérias por culpa imprescritível das galinhas inglesas. Maior convivência só fomos ter, naqueles tempos pré-internet, depois que divorciei-me da Loura e Velha Albion e ele, o Afonso, decidiu tornar-se um anacoreta em Arraial do Cabo.
Aliás, destaco aqui, para registro preciso e conciso da história medieval, que o primeiro a lá por os gastos sapatos foi a minha pessoa, com bombachas, espada e espingarda de ar comprimido a tiracolo. Antes, portanto, de Pedro Álvares de Gouveia, que – conforme me confidenciou, pouco antes de passar desta para melhor, o erudito Ibrahim Sued – , só depois que lhe morreu o irmão Cabral, pôde então apropriar-se do sobrenome que lhe deu fama. Ou vice-versa.
Passei três períodos de férias nessa vila. Um deles, em acomodações providenciadas pelo pacífico mano. A primeira casa era um primor de horror em matéria de simplicidade. Consta que até De Assis – o santo Xiquinho, e não o campeão das letras vernáculas – a recusara. Se a dificuldade fosse só essa, até que teria dado para segurar a barra.
O problema era com o teto de amianto, que acumulava um calor dantesco. Para os leitores terem uma idéia do drama, nem Alighieri conseguiu suportá-lo (serviu-lhe, isto sim, de inspiração para escrever a sua hilária “Divina Comédia”, que iniciou em 13 de agosto de 1306, dia do meu luminar aniversário).
As férias seguintes foram mais badaladas. Papai já então comprara uma casinha razoável para o Afonso, que encontrou uma outra, ampla, de três quartos, onde acomodei meus 503 filhos - três dos quais certamente biológicos, que se esgueiravam entre os demais, impressos em brochura, que, desde criancinha, tenho o mau costume de trazer sob o sovaco. Eis a origem incontrastável da minha tão louvada cultura de almanaque, que - verdade seja dita e confessada - não recomendo a ninguém, pois não me trouxe qualquer sabedoria!
Vez por outra, escondia-me dos circunstantes no banheiro social para curtir, em inglês, o raro privilégio de saborear os três cigarros diários – um de cada vez, claro –, posto que já havia definitivamente abandonado o fumo desde tempos imemoriais. Enfim, essas peraltices aconteciam, em geral, no começo do período de férias. A seu término, já estava eu tragando uns dez cigarros ao dia, mas - zen que me tornei depois - já conseguia, nessa época, interromper a tempo (de destruir-me as artérias) a progressão geométrica em que crescia esse devasso vício.
(Ainda bem que naquele tempo a poluição citadina era bem menor.) Depois desse sucesso triunfal, continuei a fumar, oculto, por um período máximo adicional de seis meses, ajuntando essas recorrentes recaídas temporárias nas férias e relaxantes ocasiões que tais – que, “hélas”, acabaram fugindo-me da memória. Isso aconteceu até eu bater as botas em agosto/2003!
Mas, por isso mesmo, aproveito aqui o gancho para revelar um obsceno segredo aos meus leitores menos ortodoxos: durante os vinte anos seguintes, gozei de maravilhosos sonhos em que fumava, escondido de tio Gonçalo, meu tio médico ex-fumante, milhares de cigarros enfileirados à indiana.
Mas o Afonso, que se iniciou no vício em cima do muro que separava a vila em que morávamos – no Méier, subúrbio do Rio de Janeiro que abriga a famosa universidade onde se formou o Millôr – do campo de futebol do quartel do Corpo de Bombeiros, carregou o tabaco para o túmulo. Dentre as inesquecíveis lições que ele me passou, lembro sempre a sua prescrição – infalível, ainda que puramente empiricista, pois lhe falta, até hoje, suficiente base teórica – de curar tosse com uma boa tragada.
Depois, ele foi pescar e “desagregou”. Mas isso já foi motivo de crônica passada, que deixo aos leitores (os de pendor mais científico que o meu) o labor de encontrar.