Possuo o execrável hábito de acordar por volta das 5h00, senão antes. Mas, por questão de livre arbítrio, costumo permanecer na cama enrolando a mim mesmo, em semivigília até às 6h30: assim, tiro sonecas intercaladas por idéias que me assomam à mente, algumas das quais seqüestro depois para elaborar uma crônica. Hoje, o tema que me surgiu foi o poema “O desespero da piedade”, de Vinícius de Moraes.
Assim que levantei, tomei café-gororoba, higiene caprichada etc., trepei na estante e – surpresa! Encontrei dois exemplares do mesmo livro “O melhor da poesia brasileira” (a primeira edição, de 1979, e a nona, de 2005, ambas bancadas pela Editora José Olympio), contendo o referido poema, que imediatamente reli.
Nele, o “poetinha” eleva uma admirável prece ao Filho do Senhor Deus dos Exércitos, implorando-Lhe piedade para quase todo mundo:
– as pessoas que andam de bonde (quem não andou antigamente, dançou!) ou de automóvel (pobres paulistanos!);
- as pequenas famílias suburbanas (nasci no Méier, RJ!);
- os adolescentes que se embebedam aos domingos (cuba-libre, nunca mais!);
- os elegantes (tipo papai – só se for de porre!);
- os poetas franzinos (naquela época, era cafona exibir musculatura bem definida!);
- os jovens “saradões”(mesmo os que envelheceram!);
- os músicos de cafés e casas de chá (onde o show não podia parar!);
- os pobres que enriqueceram (e que, de cabeça, ficaram mais pobres ainda);
- os suicidas (serve japonês?);
- os ricos que empobreceram (um dos meus avós, sem apoio do Banco Central para pagar seus impostos!);
- os vendedores de passarinhos (hoje, perseguidos pelo IBAMA);
- os balconistas (que, até na França, precisam pedir licença para faze xixi; imaginem no “patropi”); - os barbeiros, cabeleireiros e seus fregueses (e dá-lhe fofoca!);
- os sapateiros e os caixeiros de sapataria (eca, ter de suportar o chulé dos outros!);
- os que calçam sapatos novos e apertados (aí fica difícil dançar um tango!);
- os dentistas (que seria de nós sem esses sádicos?);
- os veterinários (será que preferem os cãozitos ou as madames);
- os práticos de farmácia (a platéia mais atenta às minhas piadas!);
- os homens públicos (que só morrem em excelentes condições de saúde! Onde está a minha carteira?) e seus agregados (ei, me dá um emprego aí!);
- os meninos que se tornaram velhos antes do tempo (vide Confúcio e eu!);
- os homens humilhados – e, principalmente, as mulheres (todas elas, coitadas!).
A elas, dedica ele cerca de dois terços do poema :
- as moças feias que servem às bonitas e também estas;
- as mulheres que fazem sexo pela primeira (e última!) vez;
- as parturientes (antes de disseminarem o parto cesáreo!);
- as casadas (que receiam a solidão na velhice!);
- as desquitadas (o poema deve ter sido escrito antes da lei do divórcio, suponho);
- as assim chamadas vagabundas (que seriam dos meus primos judeus ortodoxos sem eleas?);
- as primeiras namoradas (que se passava na cabeça delas?), sem esquecer
- as santas (e frustradas!) mulheres – falta de opção?
Minha conclusão: surpreendentes a percepção e atenção do poeta para os sentimentos da vasta gama de pessoas que cruzam com a gente pela rua todos os dias – todas elas com razões de sobra para sofrer e, por isso, sempre merecedoras de piedade. E, não querendo, aparentemente, correr o risco de deixar de fora nenhum dos mortais, o magnífico poema finda com o apelo geral:
“...sede enfim/ Piedoso com todos, que tudo merece piedade”.
Mas aí ele não resiste e talvez querendo lembrar ao Senhor que também ele, Vinícius, é gente e, portanto, também um sofredor, pede-Lhe, humildemente, que
“...se piedade Vos sobrar, Senhor, tende piedade de mim!”
O poema lembrou-me de imediato o conceito budista da “compaixão”, que - a se crer nos meus amigos budsitas e seus tratados religiosos medievais - seria mais amplo do que a “mera” piedade cristã. Mas, segundo o mestre Aurélio e sua equipe, trata-se, em português, de simples sinonímia.
Talvez haja aí problema de tradução: o termo “compaixão” seria tão-somente a melhor aproximação encontrada para representar a disposição de ajudar o próximo a ser mais feliz e, se possível, alcançar a “iluminação”. Seus praticantes mais destacados seriam os “bodisatvas” – que eu consideraria algo como irmãos de sangue de São Francisco de Assis.
Não é à toa que haja especialistas na “Ciência da Religião” (o que me parece uma provocação semântica por parte das Pontifícias Universidades Católicas), que, desde há muito, consideram o budismo uma espécie de cristianismo sem Jeová – este, um Carinha bem mais nervoso do que o Seu filho! Para frente é que se vai! Senão, é a desaceleração, recessão ou estagnação!