Em 2003, um de meus filhos (rico que fui, possuo vários) passou as férias escolares em Brasília. Nos breves momentos que me brindou com sua companhia – pois aos jovens de então (e mais ainda aos de agora) quase tudo é permitido (valha-me, Dostoiévski!) –, procurei conversar. Saber do seu cotidiano em São Paulo, onde estudava Fotografia, conhecer seus pontos de vista sobre a situação política e econômica atual – do Brasil e do mundo.
No meio da conversa, calhou de eu elogiar a serviçal de plantão. Sempre bem-humorada e discreta, educada no contato pessoal, competente e esforçada em suas tarefas. Eficientíssima, portanto. Pra quê?
Meu filho, que ostenta alguns semestres de ciências sociais no currículo, não podia aceitar tamanho disparate. “Eficiência – que economicismo é esse, pai? As pessoas valem pelo que são, enquanto gente, e não como instrumentos para se atingir qualquer outro fim.” E dá-lhe Kant!
Sem muito sucesso, tentei consertar. Hélas (atenção, puristas: o galicismo já é aurélico; resta saber se também virou houáissico!). Logo ficou patente que a minha visão de economista, um vetusto cidadão – quase um sessentinha então –, era incompatível com a do jovem rebelde, pronto para defender as barricadas da Comuna de Paris, se já vivo fosse, no saudoso ano de 1871.
Matusalêmico que também já sou (pois sobrevivi ao big-bang cosmológico, digo, biológico), pelo menos uma coisa aprendi no decorrer dos meus 500 renascimentos pretéritos: há que se dar um desconto à juventude. Se não forem eles generosos e altruístas nessa idade – utópicos, de preferência –, quando poderão sê-lo? E dá-lhe Bobby Fields! Abolidos os sonhos, o que será do futuro deste país e do planeta? Mas, quem sabe, os deuses – que nos brindaram a nós, reles mortais, com os trancos da vida – fizeram-no com propósito defensável!? O de nos ajudar a metabolizar o sofrimento deles resultante, de forma a alcançar migalhas de sabedoria existencial.
Há quem diga que essa generosidade dos jovens já não é tão conspícua hoje em dia. Se esse diagnóstico procede, lamento muito. Tristes os tempos em que os jovens aceitam, acriticamente – por mero oportunismo uns, por questão de sobrevivência outros –, as lições de mestres e pais, por mais bem intencionados que estes sejam.
Entre os companheiros das lutas estudantis das décadasde 60 e 70, há quem identifique nessa atitude uma inclinação dos jovens de hoje para o supérfluo. Certamente Oscar Wilde não o faria, convicto que foi da necessidade do supérfluo para a mera sobrevivência da espécie. Ridículo? Nem tanto, argüiria talvez o espectro do rei Lear.
Mas o conceito de supérfluo – bem de luxo, para os economistas clássicos – sempre foi muito escorregadio. Todos os bens de consumo que não fizessem parte da cesta de consumo dos proletários foram, por isso, desvalorizados pelos economistas clássicos (exceto Malthus). Talvez porque, ainda no tempo de Adam Smith ou de Marx (o Mouro, como era chamado pelos familiares – não confundir com Othelo, o outro Mouro, este de linhagem shakespeariana), o consumo de chá ainda estivesse represado na ‘upper class” inglesa, sendo considerado um luxo exorbitante.
Nada que se compare, verdade seja dita, com o séquito do rei Lear, que resistiu o quanto pode a dele abrir mão, numa das mais belas histórias de todos os tempos. E que viva Shakespeare, o seu autor – o mais famoso careca de Stratford-upon-Avon!
Mas, como dizia eu – a utopia! Talvez o que distinga a minha da do meu filho seja que, longe de querer catapultar preocupações com a dívida social para muito além das calendas gregas, acredito que se deva levar em conta o custo humano das mudanças. De que vale a liberdade, afinal, se plantada à custa de inenarrável sofrimento humano?
À guisa de exemplo, pergunto aos navegantes: quantas lágrimas foram vertidas pelos parentes e amigos dos milhões de mortos, feridos, estropiados e desaparecidos nas guerras da Coréia e do Vietname, principalmente coreanos e vietnamitas, mas incluindo também representantes de outras nacionalidades (sem falar, mais recuado no tempo, das vítimas de outras fedorentas guerras intestinas).
Nesses casos, caberia talvez uma aritmética simples: se cada vítima teve, por baixo, cinco (5) parentes ou amigos de verdade, dever-se-ia computar, entre os custos da guerra do Vietname (sobre a qual tenho mais informação), o sofrimento de cerca de 25 milhões de pessoas.
Tivesse o tio Ho (Chi Minh) feito essa conta, inclusive acertado a “killing rate” dos seus patrícios (cerca de 100 ao invés de dez por cada francês ou, depois, americano), teria ele se empenhado tanto nessa guerra? Como foi ele o ídolo (talvez porque baixinho e anoréxico) da minha geração, ouso duvidar, porque sempre respeitei-lhe as boas intenções!
Daí que repito Brecht – os melhores juízes acerca da conveniência de uma guerra são as mães dos soldados a ela convocados! Ou/também os seus pais!