A Polícia Militar distribuiu panfletos com orientação aos passageiros de coletivos e metrô do DF para se prevenirem contra roubos e assaltos. Uma iniciativa louvável, de grande utilidade pública.
Como é natural, a cartilha tem ilustrações. Acontece que, assim que foi publicada, apareceu quem não gostasse de um dos desenhos. É a ilustração que mostra dois personagens armados abordando uma vítima. Até aí, nenhum problema. Mas alguém concluiu que os bonequinhos com armas nas mãos parecem ser negros.
Então, na Câmara Federal um protesto se ouviu: isso é racismo!
Quando uma iniciativa pública, por melhor que seja, torna-se alvo fixo de pedras grandes, muita coisa pode acontecer em rodas de discussão, gabinetes, palácios, praças, assembleias, plenários e noticiários. Mas nada impede que muita coisa aconteça, também, em nossa imaginação. Ou seja, é inevitável que se recorde o que já se viu por aí para imaginar o que pode acontecer a seguir. Curiosamente, parece que tudo fica mais inflamável quando a polêmica invade o território do "politicamente correto". Então, vejamos.
As medidas esperadas seriam a suspensão da distribuição da cartilha e a preparação de nova edição.
Agora, imaginemos o rumo que as coisas podem tomar.
Os editores alteram a ilustração. Colocam dois brancos assaltando a vítima.
Aí acontece algo incomum e inesperado. Alguém se dói pelos brancos.
“Já que o problema é a cor da pele, por que diabos os assaltantes têm de ser brancos?”
A essas alturas, está claro que a polêmica vai esquentar. Hora de convocar uma reunião.
Um secretário começa a falar. Parece disposto a argumentar que não é politicamente correto defender brancos. Mas os editores falam mais alto:
“Se não pode ser negro e não deve ser branco, o que vamos fazer?”
Nova alteração. A dupla de assaltantes é mista. Um branco e um negro. O problema, agora, é definir a cor da vítima.
Um professor defende o critério das cotas raciais, mas um sociólogo aparece para explicar que a maior vítima da sociedade injusta é o negro. Por analogia, seria mais coerente colocá-lo como vítima na ilustração.
A mudança é feita.
“Ôxe, e negro assalta negro, é?” questiona o representante de um movimento baiano.
Convoca-se, então, uma assembleia democrática. Todos falam muito e muitos entendem pouco.
“Isso aqui tá confuso. Conhecem aquela ministra que tem opiniões escancaradas sobre assuntos velados? Vamos chamá-la...” sugere um iluminado.
A ministra chega com opiniões bem claras:
“Antes de mais nada, eu gostaria de dizer que as mulheres são vítimas.”
Examina a cartilha e dispara:
“Ora, vejam só. Essa ilustração mostra três homens e nenhuma mulher! Qual foi o critério?”
O Movimento Nova Mulher aplaude e sai em marcha pela Esplanada.
A ministra conclui a análise e comenta:
“Gente, quem entende desse negócio de cartilha é o MEC.”
Uma equipe do MEC é chamada. Professores da rede pública aproveitam para manifestar descontentamentos no lado de fora do prédio. Docentes federais se solidarizam e, no fim do dia, é declarada paralisação por 180 dias.
Equipe do MEC examina a cartilha e conclui que foi elaborada em contexto exclusivamente heterossexual. Adverte sobre o crime de homofobia e faz duas recomendações: diversificar a sexualidade dos personagens e aliviar o rigor gramatical do texto. “Aliás, todo o texto poderia ser substituído por tirinhas”, sugere um assessor.
O Movimento GLBT aplaude e festeja com uma parada na Esplanada e outras 24 pelo país. Uma ala dissidente vai para as rodovias e interrompe o tráfego para reivindicar tratamento carinhoso.
Os editores começam a rascunhar nova ilustração, que contém uma mulher e personagens de diferentes orientações sexuais, mas se recusam a imprimir antes que haja conclusões consistentes.
Então, um oficial pede a palavra e diz que a nova ilustração parece um baile gay e lembra que a ideia central da cartilha não é sexualidade, mas segurança. E acrescenta:
“A propósito, o crime está atacando em muitas frentes. Com tantos ataques, seria bom ouvir alguém da defesa”.
O convidado da defesa comparece e defende que qualquer decisão seja previamente alinhada ao contexto político das minorias internacionais. Propõe que sejam convidados para o debate Chávez, Evo, Fidel e Ahmadinejad.
Algumas organizações discordam e interditam o Eixo Monumental. Mas o convite é mantido. Enquanto aguardam os estrangeiros, algumas lideranças parlamentares sugerem maior participação da sociedade nas discussões.
Duzentas e vinte representações são chamadas.
Uma ONG se manifesta, avisando que quer ampliar a pauta e que tem pendências sobre demarcação de áreas dos descendentes dos quilombos.
Os Karas-Duras ficam sabendo e também preparam uma pauta em torno da demarcação de terras indígenas.
Durante assembleia, o Movimento Viva Vivo se posiciona contra armas de fogo nas ilustrações e um secretário propõe novo plebiscito sobre desarmamento.
Os convidados estrangeiros chegam e a reunião é transferida para o Centro de Convenções.
Evo vai logo avisando que não sairá dali sem elevar o preço do gás boliviano. Chávez pede moderação, mas exige que um dos assaltantes da ilustração seja caracterizado como Tio Sam:
“Los Estados Unidos es el mayor peligro!”
Um líder político concorda, mas diz que a prioridade agora é explicar aos quilombolas que a assembleia não discutirá demarcação de áreas. Ao ouvir isso, um líder pataxó começa a “twittar” para várias tribos.
Enquanto na Amazônia caciques se enfurecem por não terem espaço para a questão das terras, Ahmadinejad comunica que fará testes nucleares no subsolo, no setor de embaixadas.
O coordenador da reunião intervém e pede que não percam o foco das discussões. Mas ele próprio fica desfocado e trêmulo quando é interrompido por um assessor que entra às pressas e sussurra ao seu ouvido.
Depois de ouvir, o coordenador anuncia que a reunião será interrompida:
“Estão nos avisando que 800 índios armados cercaram o prédio e nos fizeram reféns.”
Alvoroço, pânico geral, todo mundo telefona para todo mundo.
Alguns dias se passam, até que antropólogos, padres, freiras, indigenistas, sindicatos e Hillary Clinton são chamados para mediar a situação.
Semanas se passam e, finalmente, reconhecem que as negociações não avançam. Exausto, Fidel implora que alguém com afinidades indígenas tome a frente das negociações.
Evo é o cara. Entra em campo com todo o gás e, sem querer, acerta uma joelhada em alguém abaixo da linha do Equador. Resmunga alguma coisa e vai em frente.
Evo passa dez dias expondo propostas para um acordo com os índios, quando alguém o interrompe para avisar que o outro lado não está entendendo sua falação em Aimará. Então, ele se dá conta de que não domina nenhum dos idiomas e dialetos indígenas do lado brasileiro. A essas alturas, as conversações são suspensas.
Neste momento, nada há de novo. A última notícia é de que todos seguem reféns, enquanto se procuram intérpretes que possam fazer tradução simultânea do Xavante, Ianomâmi, Terena, Ticuna, Guarani e Caritiana para Espanhol e Aimará. E vice-versa.
Não há previsão para a reedição da cartilha.
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