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Humor-->f. Como deixar de ser careta e boca-aberta -- 11/05/2002 - 00:26 (Jactâncio Futrica) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
DR. PELÓPODAS RESPONDE

_________________________________________
Quadro diário de perguntas e respostas naTV
* obs: Dr. Pelópodas é médico, filósofo e consultor da revista Chamego
______________________________________________



Consulente_ Doutor Pelópodas, o que eu faço pra deixar de ser tão careta e boca aberta?

Doutor_ Como assim? Se explique melhor: tu é meio lerdo?.. doentinho...

Cons._ Não, eu sou super, uuultra-normal! E é isto que me mortifica... Cheguei à conclusão de que possuo uma espécie piranhice osmótica com o meio-ambiente... não sei se o senhor me entende. Me atrevo mesmo a dizer que sou a média aritmética encarnada da raça humana! E é aí que tá a encrenca: de tão normal, tão igual, de tão caninamente fiel à novela dos usos & costumes, ao espírito da massa, no final das contas eis-me aqui: um careta! um bibelô da sociedade! um corno do nada! Eis minha recompensa por ter sido tão solidário aos cacoetes de meus compatriotas!..

Dr._ Pois é! Tu sabe o nome disso?

Cons._ Disso o quê?

Dr._ Desse tipo de idiota que você afinal se cansou de ser.

Cons._ Diga lá....

Dr._ Paga-pau!.. Eu vô mandar por este verbete na próxima edição do Aurélio: “paga- pau. Adj. S. 2g. Tipo de otário que cai de quatro por qualquer merda que vê na frente.” É desconcertante admitir, meu amigo, mas 99% da humanidade é paga-pau!.. Isto é ser normal, ISO 9002...

Cons._ É por isso mesmo que estou aqui, mestre... pra romper com isto tudo! Eu gostaria muito de pirar um mucado, de incrementar o meu jeito de ser, sabe cumé?.. tipo esses roqueiros doidões transviados... esses rebeldes sem causa invocadões da televisão, que deixam a mulherada toda de buceta pingando... aqueles motoqueiros pinta-braba, tipo os Hells Angels...

Dr._ James Dean... Jim Morrison... Peter Fonda... Lulu Santos...

Cons._ Isto mesmo! Quero aprender a ser mais doidão... ter aquele sex-appeal venenoso... deixar a manezice pra trás de uma vez por todas, em nome de Deus!! Não agüento mais ser tão normal!

Dr._ Você fez bem em me procurar. Realmente, logo no primeiro momento em que bati os olhos em você, já exclamei baixinho com os meus botões: “Porra, mas que caboquinho mais dançado, mais borocoxô! Fiquei com pena... mesmo assim tive que rir! não teve jeito. Me desculpe.

Cons._ Eu sei muito bem a cara de otário que tenho!.. não posso fazer nada. Tem mais é que rir mesmo! Antigamente, eu ficava horas e horas diante do espelho, treinando fazer cara de esperto... mas apesar das caretas todas que ensaiei, acabei descobrindo que só mesmo o doutor Franquinstáin pra dar vida a uma coisa morta!

Dr._ Caras e bocas, franzir de sobrolhos, sorrisinhos amaneirados, suspiros, viradinhas de pescoço... na frente do espelho... Essa é boa! Faz uma cara de esperto aí pr’eu ver!

Cons._ Aí depende. Tem vários tipos esperto. Tem o esperto cínico... assim ó... E tem o desdenhoso. Tem o esperto abusado... olha só... Tem o frio e insensível, o gatão, o depravado, o relaxadão... É uma porrada de careta! Só que não funciona. Mané é mané mesmo! é uma praga!

Dr._ Ah, mas que se foda tudo isso! Não sejamos tão psicologistas: a única coisa de que você precisa, meu amigo, é um belo carro esportivo do ano, com sistema de injeção eletrônica digital seqüencial multiponto, suspensão hidropneumática de oitava geração e espelho no teto _ só isto! Você vai ver como as coisas vão começar a acontecer na sua vida, como mágica!

Cons._ Um dia eu chego lá! Um dia ainda vai chover na minha horta... e aí eu vou entupir a boca de muita gente! _ pode escrever... Enquanto isso não rola, gostaria me valer dos seus conselhos pra ir me virando na base da ginga e do borogodó, entende... Muitas vezes estive prestes a entregar os pontos; pensei mesmo em aceitar minha sina e assumir de vez a bandeira da manezice... mas quando entrei em contato com os seus ensinamentos, senti que realmente podia desencanar o meu eu, dinamizar radicalmente o meu ser, revolucionar, extrapolar, incendiar, transfigurar a minha matéria!.. Graças ao senhor, hoje eu sei que nem tudo está perdido...

Dr._ Mas de jeito e maneira, meu velho! Enquanto restar um único passarinho a gorjear neste mundo... enquanto a última criança, em seu derradeiro hausto de vida, desferir seu último e baço sorriso, ainda então reluzirá a flama da esperança!

Cons._ Carácolis!! Que máximo! Minha adrenalina foi lá em cima com esta! Valeu! Valeu mesmo!

Dr._ Não há de que, Hildeu...

Cons._ Pode me chamar de Bola-Murcha, que é o meu apelido desde moleque. O senhor é como um pai pra mim... um pai espiritual! Meu pai biológico é um desses castelhanos ignorantes _ aquele bicho circunspecto e enrustido! Tem uma coleção de pornografia braba escondida debaixo da banca de ferramentas na garagem; é um punheteiro de carteirinha, apesar dos cabelos brancos... mas não perde aquela empáfia ibérica de patriarca imaculado! Ao longo da vida, ele destilou em mim uma noção de responsabilidade paranóica, que eu ia engolindo sem perceber, na minha boa inocência. Acho que foi isso que me deixou tão careta: toda aquela palhaçada séria, aqueles acautelamentos sombrios, aquela mania de “o quê que os outros vão falar do filho do Hernandez?!!” _ e dá-lhe pau no lombo! Sem notar, fui desenvolvendo uma tristice enviesada e difusa que grudou que nem caraca dentro de mim. A mulherada sempre me diz, fazendo beicinho, “Vochê tem uma cariiinha de agoniado!”... Disfarço, dizendo que isto é apenas a sombra de um fascinante mistério que guardo dentro de mim... algo que poderia abalar o mundo... Mas é como se eu falasse em grego; elas não entendem nada.

Dr._ E não é pra menos... parece papo de bêbado! Até eu boiei... Mas, e aí? O que elas dizem depois?

Cons._ Me botam pra escanteio rapidinho, aconselhando-me a ser um pouco mais insolente na próxima vez... É por isto que estou aqui: pra que o senhor desintegre a minha mente!! Não agüento mais ser tão careta, tão democrático, tão bonzinho, tão preocupadinho... Todo dia, ao acordar, me desespero por saber que serei obrigado a me aturar até o fim do dia! Ai, doutor! num mi güento mais!! num güento!! Tô farto de ser tão razoável, tão coerente, tão rastejante! É nojento! É nojento, doutor!! [ele se emociona.]

Dr._ Pois muito bem. Acalme-se. Me diz aí: cê já fez alguma promessa a Deus, em troca de alguma graça?

Cons._ Já sim. Minha mãe tava com um cisto enorme no ovário... Prometi nunca mais por cigarro nem álcool na boca, se Deus a curasse sem precisar de cirurgia.

Dr._ E deu certo?

Cons._ Sim, eu fui valido; alcancei a graça pedida e parei de beber e fumar _ assim, de estalo! Foi foda! mas eu tinha empenhado a minha palavra com Jesus; não podia pisar na bola...

Dr._ É mesmo?! Que lindo!.. Pois tome este cigarro e taca fogo! Fuma até o toco!.. Esmeralda!.. me traz uma dose tripla de absinto, aí do meu barzinho!

Cons._ Mas eu não posso... E o meu juramento, doutor?! Ai, Cacilda...

Dr._ Cê mesmo disse que tá cansado de ser tão razoável e coerente! Pois então deixa de nove-horas e vai logo fumando essa bosta!.. Os pastores evangélicos cansam de usar e abusar do nome de Deus, e não acontece nada, rapá!

Cons._ Eu sei disso! Eu sei que Deus não tá nem aí se nós fazemos isto ou aquilo. Teoricamente eu sei. Mas meu cérebro de muquirana tá programado pra funcionar num tal grau de coerência, que se eu quebrar minha promessa, ele vai me punir, talvez com uma artrose, um câncer, sei lá... Meu cérebro é incapaz de se recusar a estabelecer um encadeamento lógico e conseqüente de fatos, entende? Vai dar galho, eu tenho certeza!

Dr._ Ah, é? _ Pois que se foda!!! Câncer, diverticulite, embucetamento do duodeno, linfoma cusal _ que se dane! Que importa se tu vai morrer 30 anos mais cedo ou mais tarde? Isso não é nada, perto da loucura da eternidade!.. Cê sabe a origem da palavra “eternidade”?

Cons._ Ahn.

Dr._ Vem do hebraico mesozóico. Significa ‘vitória’... Vitória!, entendeu bem? Não tem nada a ver com duração. A partir do momento em que você transcendeu a imbecilidade, a histeria humana, você atingiu a eternidade!.. e aí pode você e o mundo inteiro explodirem, que nada mais importa!

Cons._ O senhor jura?!

Dr._ Mas é claro! Um segundo, um grão de mostarda de eternidade é uma eternidade inteira, mané!.. e aí pode o bicho pegar, pode a cobra fumar, pode o Sol se apagar, pode pegar fogo no mar! _ tanto faz: cê já tirou o cu da seringa... tá safo! Foda-se o resto!

Cons._ Pode crê! Pirante! Passa esse cigarro pra cá... Quero nem sabê! Pra quem tá perdido, qualquer mato é caminho! [Ele começa a fumegar, com vontade. Terminado o cigarro, bebe de uma vezada só o copão de absinto que tava a sua frente; depois exclama:] Di-lí-cia!!!

Dr._ [Doutor bate palmas:] Eeeeeiita, cabra pai-d’égua! Esse aí é daqueles que mata porco-ispim co’a bunda e arranca toco com o cu!! Botô moral, Bola-Murcha! Agora me diga uma coisa: cê tem lá alguma fixação, compulsão... alguma mania diferente?

Cons._ Não... nada, nada. A não ser um pequeno hábito de lavar as mãos de 15 em 15 minutos.

Dr._ Por que isto?

Cons._ Tenho uma certa neura com micróbios. Foi minha mãe que botou isso em mim. Até os 13 anos de idade, eu só tomava banho com água filtrada. Enquanto os outros meninos jogavam bola ou brincavam na piscina do clube, eu ficava só de longe, olhando na sombra, protegido de contaminações e das correntes de ar, metido dentro de dois blusões de lã, mais uma touca na cabeça, em pleno verão. Ia pra escola com um patuá cheio de alho e naftalina, amarrado ao pescoço, que era pra repelir os germes...

Dr._ Ah, é? Então espera só! Ô, Carlão! Vai lá no banheiro e dá uma vistoria nas baias. Me traz um copo d’água de privada... da que estiver mais indecente.

Cons._ Ué, mas...

Dr._ Fica frio! [A água chega, amarelona, com farelinhos esvoaçantes de merda.] Manda ver, Bola-Murcha!

Cons._ Só uma beiçadinha, né?

Dr._ Tuudô! O que não mata, engorda! Confie em mim. Temos que quebrar as estruturas de sua velha personalidade, pra que um novo Boiola-Murcha possa desabrochar, muito doido, muito solto, muito invocadão! Vai!!!

Cons._ [O outro solta um grito de macho sanguinário e vira o líquido espumoso; depois solta mais um rugido de bravata.] Acho que tô me sentindo mais dinâmico e arrojado, mestre! Tô indo bem?

Dr._ Bravíssimo! Magnífico! Caboco batuta, sô!! Como prêmio, vou te dar o telefone duma gatinha muito tesuda... Dá um güenta qu’eu já acho o cartãozinho dela... [remexendo os bolsos] Tá’qui! Apresente-se a ela em meu nome.

Cons._ Pra quê?

Dr._ Pra sangrar a coruja...

Cons._ O quê?

Dr._ Mijar embolado...

Cons._ Sexo?

Dr._ Lógico! minha criança...

Cons._ Mas assim, sem mais nem menos?

Dr._ Não me diga que você é desses pássaros que só transam por amor...

Cons._ Gostosa ela?

Dr._ Cê vai ver só! Perto dela a Gisele Binchen parece uma bruxa atropelada... Tá com Aids até na alma, mas é uma loucura de morena! um avião!

Cons._ Mas... e se a camisinha furar?

Dr._ Que camisinha o quê, rapá! Camisinha é coisa de fresco cagão!

Cons._ Pô! Então a moça tá cheia de Aids e o senhor quer que eu transe com ela sem proteção nenhuma?!

Dr._ Tesão e aventura ao mesmo tempo, mané! Cê não quer pirar? Então?! Loucura pouca é bobagem! Cê quer algo mais pirado que isso? algo mais ousado, mais revolucionário?! É melhor fazer roleta-russa com buceta do que com um revólver, concorda comigo? E mais: não faça teste de HIV depois, pra saber se tu dançou ou não. As chances são de 50% _ vai depender do seu santo no dia da trepada. E o grande barato tá justamente nisto: cê tem que viver na dúvida, no cagaço constante! Cê quer algo mais pirado do que saber que a sua próxima década de vida depende de um simples lance de cara-ou-coroa? É o bicho! É o cúmulo do sublime! Esta nova e terrível perspectiva irá sacudi-lo, acordá-lo de sua lesmice espiritual! Nem Buda, em pessoa, poderia fazer isto por você!.. Eu mesmo, quando em vez, caio na bebedeira e na roleta-russa da putaria!

Cons._ Puta-queo-pariu! É loucura demais pra minha cabeça!

Dr._ A loucura é o ápice da sanidade, caaara!!!... Tá entrando no clima?

Cons._ Acho que sim. O senhor podia pedir mais uma talagada pra mim?

Dr._ Só se for agora! Esmeralda! Sapeca mais uma marvada aqui pro nosso amigo. Inventa uma mistureba aí da sua cabeça... um multidestilado daqueles! Que tal o Urina de Satanais?.. Sem gelo!

Cons._ E tasca pimenta!!! [ Barulheira de garrafas ao fundo.]

Dr._ Enquanto a Esmeralda prepara o seu coquetelzinho, vamos continuar o ataque. O careta que há em ti será escorraçado! exorcizado! picado em pedaços!! Agora nós vamos dinamitar uma outra fraqueza muito sutil, porém extremamente ‘empatadora’: o sentimento de superstição. Você, por exemplo, evita passar debaixo de escadas?.. deixar os chinelos emborcados ao lado da cama... negar alguma coisa pra mulher grávida, com medo de pegar micuim...

Cons._ Nada disso... bulhufas, bulhufas... Mas tem uma tia minha, a dona Pitica, que jura de pés juntos que quando alguém dá um presente de valor pr’outra pessoa e depois toma de volta, ela fica corcunda...

Dr._ Interessante! Eu vi uma correntinha dourada aparecendo aí na sua calça... De que se trata?

Cons._ É um relógio de bolso que pertenceu ao meu bisavô. Olha que jóia! É de ouro. Patec Philip, 1880... Repare aqui nos ponteiros; são dois diamantezinhos incrustados...

Dr._ Quer se arriscar a ficar corcunda?.. só de faz de conta... Você me dá, depois toma. Só pra testar sua frieza perante essas superstições tolas...

Cons._ Ahá-há! Essa vai ser a parte mais fácil!.. [Em tom de brincadeira:] Então... dr. Pelópodas... queira aceitar este presentinho tão inexpressivo que agora lhe passo às mãos...

Dr._ Puxa-vida! Você, hem?! Não precisava se incomodar!!

Cons._ Eu faço questão, o senhor merece!.. [A bar-woman, rebolando dentro de um micro-short, finalmente chega com a bebida. Bola-Murcha olha meio sem graça pro copão de birita _ um líquido roxo fumegante _, depois se anima e entorna tudo de uma vez só. A princípio ele não manifesta qualquer reação de agrado ou desagrado, como se tivesse bebido um simples copo d’água. Subitamente, crispa as mãos junto ao rosto e explode num grito que deixa todo mundo ali de cabelo em pé.]

Dr._ [Após se recuperar do susto, Dr. Pelópodas está sorrindo.] E aí, Bola-Murcha! Cê tá vivo, rapá?.. Então se liga aqui. Lembra qui tu mi deu? [Ele sacode desmunhecadamente o relógio pro rapaz.]

Cons._ Ahn...

Dr._ Obrigadão, tá! Valeu, mas valeu mermo!! [Doutor se levanta e sai em direção aos bastidores, cantando e dando passinhos de valsa, beijando o relógio, escoltado por dois prestativos rapagões.] Tchauzim, patureba! Deu tá dado! Já era!

[O outro fica ali, sozinho frente às câmeras. O cenho franzido (efeito da birita, que já subiu) contrasta com um sorrisinho lânguido que bóia em seus lábios. Paralisado, só os olhos se movem pra lá e pra cá, avaliando a situação através do semblante dos membros da produção. Uma gargalhada sonora (daquelas que só um sujeito gordo consegue dar) explode ao fundo. Foi o estopim: o estúdio inteiro vem abaixo; a equipe de produção entra em violenta balbúrdia, tomada pelo espírito de turba. Até então, cada um deles, isolado em sua cavalheiresca individualidade, continha o deboche. Mas o germe da anarquia fora plantado. “Cortaa!!”, grita o diretor. Bola-Murcha vacila por um momento, indeciso quanto à melhor rota de fuga... e sai dali correndo, apavorado, antevendo claramente que, no meio daquela excitação toda, acabaria virando alvo de um ritual de malhação do Judas... E realmente! Por pouco ele não foi festivamente espinafrado ali mesmo, em making-off...]



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