DR. PELÓPODAS RESPONDE
________________________________________________
Quadro diário de perguntas e respostas na TV
* obs: Dr. Pelópodas é médico, filósofo e consultor da revista Chamego
_________________________________________________
Consulente_ Dr. Pelópodas, o trabalho dignifica o homem?
Doutor_ Sr. Yamasaki, primeiramente, bom dia! Como tem passado?
Cons._ Tamo aí, né?.. em pé sem cair, deitado sem dormir... E o senhor?
Dr._ Mei pedra, mei tijolo; mei criolo, mei caboco! E a família? diga lá!
Cons._ Vai indo, vai indo... nóis num é barril mais vai rolando...
Dr._ Aceita um drink, Yamamoto?.. só pra dar um alôzinho na idéia.
Cons._ Desculpe, doutor... meu nome é Yamasaki.
Dr._ Ah, tá! Tem um coréia, dono duma lanchonete lá no meu bairro, que se chama uma merda tipo isso aí... Faz um pastelzinho do bicho! o miserável...
Cons._ Coreano e chinês é uma coisa; japonês, outra! Ou o senhor não sabe que...
Dr._ Ora essa! eu sei lá por onde a galinha mija, porra! Mas qual era mesmo a sua pergunta?
Cons._ [Ele faz uma cara de ‘deixa estar’] Professor, o trabalho realmente enobrece o homem?
Dr._ [Doutor cai na gargalhada. O outro, perdido na situação, começa a rir também. Um rindo pro outro, rindo, rindo... Dr. fica sério, subitamente.] Do que q’ôcê tá rindo, rapá?!! Tu me faz uma pergunta idiota dessa e depois fica aí arreganhando as canjica que nem retardado?
Cons._ Mas mestre!.. o trabalho é a mola-mestra, a essência do...
Dr._ Puta-que-pariu! Se liga, ô... Cê quer duvidar das palavras de Deus, meu amigo?!
Cons._ Como assim?
Dr._ Bem... Jesus Cristo, o Buda do Ocidente, nos garantiu, há 2000 anos: “Olhai os lírios do campo [falando teatralmente] e os passarinhos do céu, que não plantam, não fiam, não forjam, não agiotam, e no entanto o Senhor lhes provê de tudo o que necesssitam. Por acaso não valeis muito mais que eles, aos olhos do Pai? Portanto, afastai-vos de todo labor, porque é mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha, que um homem degradado pelo trabalho entrar no reino dos céus!” Eu concordo com ele e assino em baixo.
O senhor, pelo jeito, é desses que nasceram pra puxar carroça, né não? Desses que facilmente se apaixonam pela canga e se viciam na guaspada do chicote... e depois não vive mais sem eles... Cê tem mesmo cara de ser uma daquelas formiguinhas orientais laboriosas _ eu diria até, masoquistas _, uma daquelas almazinhas heróicas, irrepreensíveis e sem autodeterminação, tiranizadas pela consciência do dever... É isto ou eu só tô falando goma?.. [O japa faz um gesto de resignação.] Quanto mais esfolado, mais merecedor de aplausos o senhor se sente, né?..
Cons._ Eu sei lá... Eu só acho que um chefe de família dedicado...
Dr._ Sem querer te interromper: eu já conheço muito bem esse blá-blá-blá. Vamos preservar o ouvido do nosso adorado telespectador e ganhar um tempinho precioso pros nossos gentis patrocinadores. Vamos direto ao ponto. Na rápida conversinha que tivemos antes de entrarmos no ar já deu pra sacar tudo... Com o perdão da palavra, mas o senhor _ puta-queo-pariu! _ é um belíssimo dum otário, hem!.. Mas não se culpe, [o tom de voz se torna complacente] babaquice é assim mesmo... o que se há de fazer?.. É um treco que não tá na gente...
Não sei se o senhor tem alguma noção da história da civilização ocidental, mas desde os primeiros registros de sociedade humana nessa parte do mundo, podemos observar que o trabalho foi sempre, sem exceção, um apanágio da escória, dos degenerados, dos covardes, da ralé _ em suma, a mais desprezível e vergonhosa condição à que um homem pode decair. A dignidade do trabalho é invenção recente aqui nas terras do sol poente... uma ideologia criada por espertalhões que nunca se deram ao luxo de lavar um só copo em suas vidas e nem ao menos sabem como se fabrica um simples ovo frito...
Os relatos de todos os povos conhecidos, desde o século IX a.C. , nos mostram que as pessoas honradas sempre se ocuparam ou da guerra, ou das artes, ou do trambique: religião, adivinhação, política e outras armações mais... Mas o supra-sumo da nobreza sempre foi, e continua sendo, ela... sua excelência, a vadiaaaage [com voz de malandro carioca, fazendo um bamboleio com o corpo.] O trabalho sempre sobrou pros incapazes, pros desfibrados e, é claro, pras vítimas de cativeiro.
Cons._ Mas o senhor também não é um trabalhador assalariado?.. Quê que o senhor tá fazendo aqui, agora? _ Trabalhando, ora!
Dr._ Aí você se engana, Kawasaki! Embora eu tenha três barris de sangue nobre nas veias (minha linhagem remonta a Fanágoras da Beócia, a Butacides de Crotona e Zigfriedum Schroederius da Saxônia... pra não falar no tronco mestre de minha genealogia: vovô Zeus e vovó Afrodite), minha índole contemplativa desviou-me do caminho das artes bélicas. Faço parte do alto clero, por assim dizer; sou um mestre do amor, surfista da luz, motoqueiro da esperança... um sumo sacerdote da Humanidade... entende?.. como o foram Sêneca, Nescióstrato e Nefilibóstanes! O que faço aqui perante as câmeras não é um trabalho, absolutamente; é um sacerdócio... Estou aqui pra me aliviar do excesso de sabedoria. É como fazer sexo pra se aliviar do excesso de sêmen. É uma missão e, sejamos francos, o maior auê! _ pelo qual eu sou regiamente pago, diga-se de passagem.
Hoje em dia, o trabalho continua cumprindo o seu papel de escravização da gentalha, em prol da boa vida dos novos nobres: os vendedores de cocô. Mas o mais nobre dos nobres ainda é, sem dúvida alguma, o playboy _ aquele cara que não faz porra nenhuma a não ser coçar o saco e tirar chinfra o tempo todo... sem remorso! Este é o verdadeiro grande-homem, e não os mártires... não os fundadores e revolucionários... não o presidente da Coca-Cola... não o almofadinha gabola de Wall Street... não o self-made-man caipira ou o megaempreendedor chupador de charutos... não esses babacas como você, que se orgulham de trabalhar muito e se matar pela família (uma mulher imbecil e uma ninhada de pequenos idiotas que vão crescer e morrer estúpidos até a milésima geração). A verdade é que você e os da sua laia, ricos ou pobres, ficariam mais perdidos que peido em bombacha, caso se vissem fora do círculo vicioso do trabalho. Admitamos, meu bom homem; é um tanto constrangedor, mas eu tenho que lhe informar: tu é um otário! um escroto que precisa ser gerenciado, pressionado, empurrado, chicoteado, amarrado, arrastado dum lado pro outro... senão não saberias o que fazer com estes dois braços e estas duas pernas que tão aí dependurados nesse corpo... Mas que cara de tacho é essa, meu nêgo?! _ Tava achando que ia ouvir uma longa e espalhafatosa retórica de louvor ao suor do trabalho? Vai tomar na tampa! Querias sentir emoções baratas ouvindo uma repugnante apologia à labuta da ralé?!.. [Baixando o tom de voz, inclinando-se ligeiramente em direção à câmera:] Deixa eu fazer um parêntese aqui pro telespectador não me interpretar errado: quando eu falo ‘ralé’, eu tô falando de todo e qualquer sujeito que trabalha pra ganhar dinheiro _ entendeu? _, desde o biscateiro pé-inchado até o presidente dos Estados Unidos, aquele pederasta inútil! [Retomando o tom de pagação, irônico:] A glorificação do trabalho é mesmo um belo pretexto pruma besta de carga como tu, que não sabe fazer outra coisa senão puxar carroça! Sinto muito cortar o seu barato, meu peixe, mas ainda vai levar algumas encarnações procê deixar de ser pateta!.. Fico só imaginando as ceninhas doces do seu dia-a-dia... Quantas frases incríveis não devem sair dessa boquinha!.. Me dá até arrepio, puta-merda!! Pelo menos aqui no Brasil, você não precisa passar pelo vexame de ter que cantar o hino da empresa já no cu da manhã, antes de iniciar mais um dia de proezas!
Cons._ Lá na Gold Family _ minha empresa _ nós temos um hino, sim! E muito bacana, se o senhor quer saber!.. Eu acho super importante realmente... Eu acho que estimula pra caramba... É aquela vibração, sabe?.. aquela energia! Faz a gente se sentir mais motivado, mais solidário... irmanados no objetivo comum de todos: o sucesso!
Dr._ Você poderia cantar esta maravilha pra nós, meu passarinho vitorioso?!
Cons._ [O outro se enche de ilusão:] O senhor não repara a voz não, tá?.. “A Goldiiii é uma coisaaaa/ muitooo sensacionaaal/ A genteeee fica contenteeee/ e nunca se paassaa maaal// Trabalhooo de gabaritooo/ de ternooo e gravataaão/ Marchaamooos sempre unidooos/ para ser um campeaaaão...”
Dr._ Fantástico, fantástico! Pode parar! [Doutor confidencia aos telespectadores:] O cara é diiimais, rapá! _ pena que não chupa! [Ele, que já se esqueceu de seu convidado, volta-se de novo pra câmera, que fecha nele:] Devia ganhar um troféu, esse cara! Taí um documento vivo da espiritualidade humana neste início de milênio _ a própria essência do Babacão Universal 2000! Um cabeça-de-bagre desses devia ser empalhado pra ser exibido em museus no futuro. Eu fazia questão de redigir pessoalmente a plaquinha explicativa: “O exemplar observado ao lado dominou o planeta no período que se estendeu entre a Revolução Industrial do século XVIII e a ascensão da Ultra-Direita Ecológica Transcendental, em meados do séc. XXII.”
Senhor presidente da república! Senhores senadores! Ativistas do Green Peace! Cabe a nós, espíritos de escol, tomarmos já uma iniciativa pioneira nesta questão do manejo racional e sustentável dos recursos géneticos nacionais. A autoridade moral necessária a esta brilhante empreitada, empresto-a agora, de público, em rede nacional, e disponibiliso-me desde já para o futuro cargo de Ministro da Eutanásia... Ô, Babasaki!.. Cê ainda tá aí, rapá?!
Cons._ Yamasaki...
Dr._ Chega mais... aprochegue-se, que eu vou hipnotizá-lo... Amigos, chegou a hora! Vamos agora ousar um mergulho nesse universo misterioso e luxuriante que é a mente de um trabalhador da pátria _ este que aqui está!.. um profissional vigilante e interessado... pai de família extremoso... tiete fanzoco dos canastrões do esporte... enfim, o genro que toda sogra sonharia em ter... um homem bom!.. um homem que ainda acredita na lisura das instituições! À medida em que penetrarmos, telepaticamente, nesse mundo lindo e tão mágico, tentaremos expressar com palavras as imagens e emoções que formos captando. Creio que será uma experiência inspiradora!.. digna até mesmo de constituir uma homenagem, um hino à pujança do operariado brasileiro!.. [Doutor coloca a mão direita sobre a cabeça do sujeito e se concentra, de olhos fechados. Sua voz se torna repousante:] Relaaxa... relaaaaaxa, neguim... Você está exausto e feliz por mais um dia de dever cumprido... Suas pálpebras estão pesando... o queixo caindo... caiiindo... O sono vem vindo devagar... divagazim... O chiado dos pulmões faz uma cosquinha gostosa dentro do peito... Você já não se lembra daquela multa de trânsito milionária que te chegou pelo correio, nem das sucessivas brochadas que andou dando este mês... Só a paz... a paz completa é que existe neste momento... O mingau das almas começa a brotar no cantinho da boca... Você acabou de mamar e tá nanando nos braços da mamãe... Isso, meu doce!.. Seu coração está repleto do divino amor... Seu corpo está flutuando, flutuaaando, flutuaaaaaando... Assim! Minino bão!.. Telespectadores da Rede PQP, preparem-se agora para desfrutar momentos de intensa poesia!.. Meu olho astral está adentrando a mente deste homem. [Batendo na cabeça do sujeito:] Uh, uh! ô de casa! Amigos, sinto neste momento uma emoção embriagadora! Um treco zen!! Telúrico dimaaisss!! Opa, esperem! Estou captando algo que se mexe... Sintonizando o telão do hiper-espaço agora!.. as imagens já estão aparecendo... Ói só! Ispia! São cenas de sua vida, Nagasaki meu compadre!.. agora sim, nítido e claro _ um cinema!.. Ó ocê lá, cumpadi, de camisa listrada!.. todo todo, hem!.. É domingo, uma bela manhã de verão... O solzão castigando!.. e você dirigindo um carro mais do que sambado, abarrotado de gente... Raapaiz!, só mesmo a vontade de Deus explica que um bagaço desse ainda esteja rodando por aí! quê qué isso!.. A cada 20 metros a lateral dá uma raspada no asfalto; olha a labareda!.. Silêncio aí na cozinha, porra!.. A estrada é uma buraqueira só, mas você está assobiando, contente... É Kiss me Quick, do Elvis! _essa cê tirou lá do fundo do baú, hem malandro!.. Tem também a sua mulher, a sogra e a filharada melequenta _ todos espremidos dentro do corcelzinho vermelho ano sete três, brigando pela partilha do lanchinho... É uma viagem de visita... Ceis tão indo, de surpresa, filar uma bóia na casa daqueles seus ex-vizinhos que se mudaram pr’outra cidade há nove anos... O cara era analista de O&M lá na sua empresa... Sua sogra tá tomando conta dum sacão cheio de mangas, que ceis tão levando pra presentear os felizardos... e um litro de vinho São Roque acomodado num estojo de uísque Grants, aquele do tubão dourado... As mangas já praticamente que viraram sopa dentro do saco... Os buracos do estofado tão emplastados com uma papa de suco de manga e biscoitos Mirabel e a cada freiada sua patroa senta uma chifrada no parabrisa, o banco do carona deslizando que nem carrinho de rolimã. Os meninos saúdam os pedestres pelo caminho: “Ô fia-da-puuuuuta!!! Ô viaaaaaado!!! Ô cuzuuuuuda!!!”... Os dois mais novos já cagaram nas calças.
É! Quem trabalha merece se divertir; nada mais justo. Iiiaaaaaaaaaaaahh!!!!! [Explodindo num gritinho escandaloso, Dr. Pelópodas dá um empurrão na testa do sujeito, inesperadamente, com a mesma mão que antes o ninava. Ele despenca da cadeira, ofegante. Caído no chão, ele olha assombrado pro doutor por alguns segundos, depois foge, apavorado. Doutor permanece imóvel, numa pose marcial, absorto, impassível. Finalizando sua exibição, ele executa o dificílimo “Faniquito do Dragão Imperial Escarlate” acompanhado de uma série de gritinhos e grunhidos cerimoniais. Depois bravateia:]
_ Ham! Isso é pr’ele deixar de ser chato e ficar fazendo pergunta idiota!