(História infantil, também para a criança que continua dentro de nós)
Era uma vez um barco à vela, muito velho e, por ser tão velho assim, possuía toda a sabedoria do mundo. Este barco, encalhado junto à praia, servia de ponto de reunião e brincadeiras para os meninos da Vila dos Pescadores. Mas à noite, sozinho no seu abandono, o velho barco ficava ouvindo o barulho do vento em suas velas emboloradas e feias, enquanto o seu mastro, tão alto, tão elegante, rangia e estalava, ansioso como um cavalo de raça, pronto a sair galopando e vencendo corridas. O mar batia em seu casco, mas já não o sacudia mais, tão enterrado na areia ele se encontrava. O velho barco sonhava velhos sonhos e recordava a sua vida de viajante pelo mundo, por todos os cantos deste imenso mundo.
Içada em sua verga, que é a trave ou viga que a sustenta, a vela-mestra enchia-se ao vento e, naqueles bons tempos do passado, levava o barco, através dos mares e oceanos, para terras distantes e estranhas. Ai! Quantas saudades! Possuía, agora, quase desfeitas pelo tempo, pequenas velas à sua proa, as “bujarronas”, que o mantinham em seu rumo. Bujarronas! Que nome sonoro e precioso, para o velho veleiro! O conjunto de todas as suas velas, a vela-mestra, o papa-figos, as bujarronas e as de trás - “as de-ré” -, chama-se “velame”. Como o barco havia se orgulhado do seu velame, tão branco , tão bonito!
As noites para ele, agora, eram tristes e vazias, perdido entre os ruídos das argolas enferrujadas e suas cordas, entre o zunido do vento em suas vigias, entre o barulho constante do mar.
Mas durante o dia, ele se renovava, enchia-se de vida, ao ouvir os meninos que se faziam de bravos piratas, a comandar:
- Marujos! Içar vela-mestra! Atenção! Inimigos à bombordo! Preparar para a abordagem! Atacar!
O veleiro ria de gosto e sentia como se estivesse navegando em alto mar, em alta velocidade. E vencia enormes ondas, e cobria-se de espumas que lavavam o seu convés. Podia até escutar o papagaio, companheiro dos seus antigos marinheiros:
- Homem ao mar! A boreste! Lançar os salva-vidas! Currupaco-papaco!
Às vezes os meninos começavam a marchar e a cantar, levantando suas facas de madeira: “Eu sou o pirata da perna de pau...” Para o velho barco, estes eram os únicos momentos de alegria, na sua solidão.
Mas um dia os meninos não vieram, porque o tempo estava ameaçador e o sol escondido por nuvens escuras. O mar, de costume tão verde e claro, tornara-se cinzento, grosso, e metia medo. Quando a tarde chegou, toda a violência da natureza explodiu ao mesmo tempo. Trazida pelo vento terrível, a chuva castigava a Vila dos Pescadores. Ondas imensas se formavam e explodiam nos recifes, nas pedras, na praia. Surravam, sem dó, o velho barco e sugavam a areia dos seus cascos e o empurravam para lá e para cá, como se ele fosse um frágil brinquedo. No temporal medonho, o veleiro encontrou a sua liberdade! Entre trancos, roncos, estalos, sacolejões, o nosso herói provou a sua força, a sua resistência e, de madrugada, quando veio a calma, a bonança, os meninos, os pescadores, os moradores da Vila, vieram correndo e ainda puderam ver, fascinados, as velas enfunadas – cheinhas de vento! – conduzindo novamente o velho barco, rumo ao desconhecido, a caminho de novas aventuras.
Ficaram admirando a sua silhueta, tão linda, tão imponente! O querido amigo zarpava para o infinito e suas velhas velas, quase em trapos, acenavam-lhes um festivo adeus