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Infantil-->A formiguinha insubordinada -- 14/06/2000 - 13:59 (Suzana Mueller) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
A FORMIGUINHA INSUBORDINADA


O exército de formigas saúvas avançava noite a dentro.
A trilha seguia em frente, organizada, determinada, objetiva. Vinha de muito longe
Tontinha e Vermelhinha eram as últimas da gigantesca fila, aparentemente interminável.
Aquela era a primeira noite que ambas saiam para trabalhar.
Estava sendo, para elas, tão pequeninas ainda, difícil acompanhar a marcha das companheiras.
Tontinha e Vermelhinha nasceram no mesmo dia.
Tontinha foi batizada de Tonta, por parecer sem rumo.
Nasceu, olhou em volta e começou a rodar em círculos.
Provocou risos e piadas das mais velhas.
Vemelhinha, por ser escarlate. Vermelha rubra e brilhante, destoava-se das demais.
Tornaram-se amigas.
Iam juntas, olhando em volta de si, deslumbradas com a visão grandiosa aos seus olhos, afeitos somente, ao mundo subterrâneo.
A lua fina, bem recortada no céu, fatia dourada discreta, aparentemente frágil, cravada em abóbada celeste, parecia a Tontinha, um mundo sem fim, inatingível, proibido, belo e irreal.
Sem sentir, exclamou:
— Como é bonita!
Tão logo suas palavras foram escutadas por Coordenadora, esta deu a ordem de parada.
— Parem todas. Tontinha percebeu alguma coisa que não avistamos.
— Será uma roseira? - perguntou Cintura Fina.
Coordenadora retrucou:
— Tontinha é muito infantil ainda. É a sua primeira marcha... Usou o termo errado. Roseiras não são bonitas e sim suculentas... Venha até aqui Tontinha. Mostre-nos o que viu e que passou desapercebido de todas nós.
O exército havia parado.
Algumas formigas estavam surpresas com a perspicácia da pequena estreante.
Outras, despeitadas, por não terem percebido o que ela descobrira em sua primeira caminhada.
Coordenadora atenta.
Vermelhinha, orgulhosa da amiga, que naquele momento, era o centro de toda a atenção de um exército bem treinado, eficaz, poderoso, sorria feliz.
Tontinha levantou a frágil patinha para o céu:
— Vejam lá no alto. Olhando para nós... Como é bela!
— Ah, é isso? Estava se referindo à lua? E nos fez parar, atrasar nossa marcha, para olhar para cima? Ver lua? Lua não se corta e nem se recorta, sua tonta!
— Não pensei em recorta-la. Eu quero admira-la... - gaguejava a formiguinha.
— Admira-la? Pensa que temos tempo sobrando para admirar essa coisa, sem nenhuma utilidade para a nossa comunidade?
Virou-se para o grupo, que ainda permanecia em fila organizada:
— Feroz, Implacável, Navalha? - gritou.
Três formigas graúdas saíram do grupo, perfiladas e aproximaram-se de Coordenadora.
— Levem esta tonta à presença de Madrinha. Ela saberá o que fazer...
Vamos embora. Já atrasamos o bastante a nossa marcha por causa dessa inconseqüente.
Vermelhinha fez um gesto de acompanhar a amiga, mas foi impedida pelo grito de Coordenadora dirigido diretamente a ela:
— Em marcha!
Tontinha olhou para Feroz, Implacável e Navalha. Sentiu medo do que leu em seus olhos.
Encolheu-se.
Feroz aproximou-se dela:
— Viu o que fez sua irresponsável? Nos tirou do nosso trabalho...
— Mas a lua...
— Lua coisa nenhuma. Lua é coisa dos homens, o nosso pior inimigo...
Navalha segurou Tontinha com firmeza:
— Não sei onde estou com a minha cabeça, que não corto a sua. Infeliz!
Implacável que estivera um pouco afastada das duas companheiras, calada, observando, falou com determinação:
— Podemos fazer isso sim! Navalha corta a cabeça dela e dizemos para Madrinha que ela tentou fugir...
— Madrinha não acreditaria nisso. Além do mais, passaríamos aos seus olhos por incapazes... sermos enganadas por essa fedelha?
Tinha lógica a argumentação de Feroz.
— É. Está certa! Politicamente correta. Precisamos cumprir as ordens, mesmo contra as nossas vontades... Vamos voltar. Madrinha saberá o que fazer com ela.
E dando um safanão em Tontinha, gritou:
— Anda logo sua tonta. E olhe para o chão. Já fez absurdos demais por hoje.
E deram início ao longo trajeto de volta. Tontinha entre Navalha e Feroz. Logo atrás Implacável resmungava baixinho.
Implacável, Navalha e Feroz não eram operárias. Eram exímias guerreiras. Cortavam folhas como uma espécie de treinamento, para adquirirem rapidez nas batalhas. Cortavam cabeças inimigas.
Chegaram ao formigueiro.
Madrinha olhou surpresa para o exíguo grupo.
— Aconteceu alguma batalha? São vocês sobreviventes? Não fiquem ai paradas... Falem o que aconteceu. - tentava, sem muito êxito, se manter equilibrada.
Navalha respondeu pelas companheiras:
— Não Madrinha. Não travamos nenhuma batalha hoje. Também não apareceu nenhum homem, com suas horrendas tochas de fogo.
— E por que estão aqui separadas do grupo?
— Por causa de Tontinha. Ela atrapalhou nossa marcha, falando de lua...
— Que lua? Alguma planta nova? Uma espécie desconhecida, ou algum enxerto criado por aqueles homenzinhos amarelos de olhos engraçados?
Referia-se aos japoneses.
— Não Madrinha. Lua, do céu mesmo.
E contou com detalhes o que havia acontecido.
Madrinha escutou a tudo calada. Olhava apreensiva para Tontinha, que assustada, inconscientemente regredira. Dava voltas e mais voltas em círculos imaginários.
— Muito bem. Fizeram bem em trazê-la de volta. Vão para seus aposentos. Preciso conversar seriamente com Tontinha.
— Boa noite Madrinha. - falou Navalha.
— Boa noite Madrinha. - era Feroz.
— Boa noite Madrinha. - repetiu Implacável.
Retiraram-se.
Madrinha olhou para Tontinha. Estava pálida.
— Pare de rodar Tontinha e venha até aqui, precisamos conversar.
A pobre formiga veio para perto de Madrinha.
— Sente-se. - pediu.
A formiguinha obedeceu.
— Sabe você, a responsabilidade de ser uma formiga, Tontinha?
— Imagino Madrinha. - gaguejava.
— Será que imagina mesmo? Durante milênios os homens nos estudam. Sentem nossa superioridade em relação a eles. Comparam-nos às abelhas, na intenção de nos humilhar...
Tontinha franziu a “testa”.
— Acha que não? É exatamente isso que eu digo. Não somos iguais às abelhas. Não preparamos delícias para eles usufruírem e prolongarem as suas vidas. Sabia que o mel que elas fabricam, beneficia aos homens? São umas tolas! Nós, não! Eles sim, trabalham para nós! Plantam e nós cortamos. Porisso nos perseguem... Eles nos odeiam. Claro que menos que nós a eles. Nós os desprezamos. São uns incapazes. Precisam de verdadeiras parafernálias para construírem suas horrendas construções. Usam tratores, guindastes, pranchetas, calculadoras, capacetes e, ultimamente, recorrem a esse último recurso que anda em moda entre eles, o computador. São dependentes de máquinas. Nós temos a mais bela arquitetura subterrânea, sem precisarmos de tudo a que eles recorrem.
— Mas... mas o que tem eles a ver com a lua? - arriscou-se a voltar ao assunto.
— Você ainda está pensando nisso, Tontinha? A lua? A lua é a distração dos homens. Quando acabam o dia, que chamam lá entre eles, de um dia de trabalho, preparam alguma bebida horrorosa dentro de um copo, e ficam olhando para a lua com ares de abobalhados. Dizem coisas tão bobas para a rainha deles...
— Eles também têm uma rainha? - Tontinha estava além de tonta, pasma.
— Não uma. Várias. E elas, as rainhas, deixam eles vivos! Você pode imaginar tamanho disparate? Elas, deixam os machos vivos! E eles ficam livres e vivos para seduzirem novas rainhas. Têm vários filhos com elas, que depois de “enxertadas” são abandonadas pelo macho, que vai olhar novamente para essa lua, que tanto lhe impressionou, com outra rainha... Os filhos? Eles geralmente abandonam... Cabe à mãe cria-los sozinha...
— Que horror Madrinha!
— Horror mesmo! Mas a culpa, é da rainha deles. Elas permitem. Acham que eles, os homens, são superiores a elas. Quando eles falam, um monte de sandices, olhando a tal da lua, sabe de que elas, as rainhas, os chamam?
— De tontos?
— Antes fosse... Não, de pó..., não... é parecido com pó... - gaguejava sem lembrar o termo.
— Pólen? - gritou Tontinha procurando cooperar.
— Não. Lembrei! De poeta! E eles? Acreditam que são... Deve ser o efeito da tal bebida que ingerem... Ficam bobos!...
— E a rainha deles, Madrinha, ela aceita isso? Afinal, ela é uma rainha. - afirmou com ênfase.
— Só por tradição... Mas nem são consideradas como tal. Poucos a chamam pelo título. Os que formam comunidade com elas, pequenas e insignificantes comunidades, cinco ou seis filhos no máximo, esses a chamam de Rainha do Lar.
— E os outros?
— Bem, os caminhoneiros chamam-na de Patroa. Apresentam-na para os companheiros: — Aqui é a minha patroa! - Você precisa ver como eles impostam a voz ao pronunciar o título colocado por eles.
Os que têm outras rainhas na rua, apresentam-na como Esposa, para distingui-la das demais: — Esta é a minha esposa!
O intelectual, esse tipo não é lá muito levado a sério pelos outros, chamam-na de Companheira: - Esta, é a minha companheira.
Os poetas a chamam de Musa. E os farristas, aqueles que ingerem mais da tal bebida engarrafada, a chamam de Fêmea!
— Esta é a minha fêmea. É uma máquina! Quando elas ficam velhas, as rainhas, perdem os títulos de Rainhas do Lar, Patroa, Esposa, Companheira, Musa, Fêmea. Passam a ser chamadas de Sogra, Avó, Bruxa, Megera, Esclerosada.
— Mas a lua, Madrinha, não tem culpa, ela clareia o nosso caminho...
— É cúmplice deles. Não precisamos de luz, temos nosso olfato. É privilegiado!
Falando assim, levantou a cabeça e agitou as antenas.
— Elas, já estão chegando. Espero que tenha assimilado o que falei, Tontinha. Não vou castiga-la. Por hoje. Mas não incorra outra vez no erro. Limite-se ao seu trabalho... Nada de olhar para o céu. Olhe para o chão! Agora vá dormir. Precisa crescer. Quando isso ocorrer, vai ter orgulho de ser uma formiga!
— Boa noite Madrinha.
— Durma bem, Tontinha.
Quando Tontinha se retirou, Madrinha sorriu. Gostava da formiguinha. Tontinha fazia-a lembrar-se dos tempos de sua infância. Também ela, um dia distante, deslumbrara-se com a imensidão do mar. Olhara para um veleiro e se emocionara vendo a vela oscilando ao vento. Quisera, sonhara em navegar. Seu crime, havia sido bem mais grave que o de Tontinha. Ela chegara a pensar em abandonar o formigueiro e desbravar o mar, bem no alto da vela, onde sua visão seria mais ampla.
Que dia aquele! Fora levada à presença da Rainha. E graças aos conselhos escutados, hoje era uma figura respeitada na comunidade. Na hierarquia do formigueiro possuía alta graduação. Era respeitada e admirada pelo seu bom senso, segurança, competência.
Parou com as suas reminiscências para se concentrar na visão do exército de formigas que vinham chegando pelas galerias. Era impressionante. E tudo aquilo que via, obedecia a ordens suas. Sorriu discretamente. Escolhera o caminho certo para a sua vida. A sua trilha. Ali tinha poder! Quem sabe se na vela do barco não seria atiçada pelo vento? Estaria hoje no fundo de águas estranhas.
Observou uma agitação coletiva entre os grupos de formigas.
— Por que estão ansiosas? - quis saber.
A resposta veio em forma de pergunta, uníssona:
— Tontinha?
Navalha, Feroz e Implacável haviam voltado.
Madrinha abrangeu a todas com seu olhar severo:
— Tontinha já deve estar dormindo. Não vai mais acontecer fatos desagradáveis, como os de hoje. Foi uma infantilidade dela. É pequena ainda...
Implacável cochichou para Navalha:
— Devíamos ter-lhe dado cabo...
Navalha tremeu.
— Está com frio Navalha? Por que está tremendo? - quis saber.
— De ódio. Estou com ódio por não ter cortado a cabeça dela lá na estrada...
— Calma Navalha. Formigas como ela se condenam sozinhas...
— Tem razão, Implacável. É só esperar...


*********************************

Enquanto isso, Tontinha nos seus aposentos, confusa, procurava entender as palavras de Madrinha. Rodava, incansavelmente, pelo espaço vazio repetindo:
— Não olhar para cima. Só olhar para o chão. Esquecer que existe lua. A lua é cúmplice dos homens, que escravizam as rainhas. Olhar para o chão, chão, chão, chão e olhar a lua. Parou. Falou para si mesma:
— Tonta! Bem merecido o nome que recebi! Confundo tudo. Não posso olhar o chão, só a lua... lá vou eu de novo.
Lua não! Só chão! Chão, chão, chão.
E foi neste monólogo repetitivo e exaustivo que Vermelhinha encontrou-a . Abraçou-a:
— Minha amiguinha! Temi por você! Madrinha lhe castigou?
— Não Vermelhinha, ao contrário, foi muito bondosa, mas tenho que decorar uma frase...
— Qual?
— Olhar só para o chão, nunca para a lua...
— É fácil Tontinha, vamos repetir juntas.
E ficaram as duas pela noite a dentro, repetindo a primeira lição de suas vidas:
NUNCA OLHAR PARA CIMA. SÓ PARA O CHÃO!


**************************************************

O formigueiro onde Tontinha nascera possuía uma população de 300.000 formigas. Era um dos mais respeitados e temidos da região.
A comunidade a que Tontinha fazia parte era sabiamente dirigida.
Elas, as formigas, são consideradas pelos estudiosos do assunto, os seres mais inteligentes depois do homem. Superam o cão, o elefante, o cavalo, etc.
Vivem em verdadeiras cidades e constróem suas casas, carregando barro e argila. Reduzem-nos a bolinhas úmidas e trabalham qual um exímio pedreiro. Usam tão somente a boca e as patinhas.
Tudo é feito em equipe. Umas fabricam as bolinhas, enquanto outras fazem os buracos no solo. Alicerces. Vão colocando as bolinhas, apertando-as, pressionando-as com a boca e as patas. Paredes e colunas vão tomando forma.
Algumas formigas transformam o barro e teias de aranha em uma pasta que logo endurece. Uma espécie de tijolo.
Abrem galerias largas e compridas, verdadeiras estradas.
Em uma colônia de saúvas, existem, além da rainha, machos, operárias, soldados e prisioneiras.
Os soldados protegem a colônia e defendem as operárias que trabalham no corte da folhagem.
A colônia de Tontinha, destacava-se das outras por ter mão-de-obra especializada e em quantidade.
Em outras colônias pequenas, as mesmas operárias que cortam as folhas, transportam-nas para os formigueiros. Na “Colônia da Prosperidade” (esse era o nome da comunidade a que Tontinha fazia parte), o trabalho, era dividido. Um número de operárias, sobe nas árvores e cortam as folhas. Outras operárias levam todo o material recolhido até a porta do formigueiro. As operárias internas, esperam a carga que é levada para o interior do mesmo.
Pode-se dizer que o trabalho dentro de um formigueiro é interminável.
As folhas são cortadas e esmigalhadas até se tornarem uma massa macia. Só aí então, elas semeiam fungos especiais.
Não faltava alimento nos depósitos da Colônia da Prosperidade.
Conservavam vivos e prisioneiros os afídios, insetos conhecidos como pulgões, armazenadores de mel, alimento predileto das formigas, como uma reserva, mas não estava sendo preciso recorrer a eles. Os depósitos estavam lotados.

************************************************
Passou-se uma semana, depois da desastrosa estréia de Tontinha no trabalho de corte.
Novamente o formigueiro se preparava para nova saída. Coordenadora dava ordens, orientava, revisava a legião de formigas prontas para mais uma noite de trabalho.
Madrinha aproximou-se de Tontinha:
— Aprendeu sua lição, Tontinha? - falou com mal disfarçado carinho.
— Sim Madrinha.
— E qual é a filosofia?
Vermelhinha ficou apreensiva. Tinha medo que Tontinha trocasse as palavras, como sempre fazia.
A fila já organizada olhava para ela.
Navalha atenta.
Tontinha deu dois passos para o lado, ergueu a cabeça com segurança e orgulhosa de si mesma falou alto:
— Nunca olhar para cima. Só para o chão!
— Muito bem Tontinha. Estou orgulhosa de você. Vejo que não me enganei...
Madrinha não completou a frase. Vermelhinha respirou aliviada.
Coordenadora pediu, usando um tom diverso do habitualmente usado com as outras formigas, que voltasse para o seu lugar.
Sentira, intuíra, que aquela pequena formiga era distinguida das demais, por algum motivo que lhe escapava. Madrinha deixara perceber claramente sentir um afeto especial por ela.
Não poderia se indispor com Madrinha...
Tontinha voltou para o seu lugar no final da fila, ao lado de Vermelhinha.
Navalha mal disfarçava o ódio que sentia por Tontinha, de Madrinha e pelo mundo todo.
Tinha suas razões. Navalha era uma das formigas mais importantes da comunidade. Além de cortar com uma agilidade inexplicável o triplo de folhas das demais formigas, era uma guerreira imbatível.
Quantas cabeças rolaram por terra de formigas inimigas? Não se tinha conta.
Nascera mais “amolada” que as demais, daí ter ganho o nome de Navalha.
Tinha uma técnica especial para decepar cabeças de exércitos inimigos. Atacava pela lateral. O inimigo, antes que se desse conta já estava morto, com a cabeça separada do corpo. Navalha levava seus troféus para a comunidade, orgulhosa. Era uma triunfante! Mas revoltada! Por mais detentora em número de mortes, não lhe auferiam nenhum título na comunidade. Era só uma espécie de carrasca. Sabia matar, mas não lhe enxergavam valores superiores. Não tinha cargos importantes como Madrinha, Coordenadora, etc.
Quem sabe, pensava, desprezam o meu trabalho? Certamente me odeiam... no entanto, protegem essa pirralha tonta, que só sabe rodar feito um pião.
Todo o ódio que sentia do mundo, canalizava para a pequena formiga.
Finalmente foi dada a ordem de partida.
As legiões de operárias seguiram pelas galerias em marcha apressada. Logo estariam em céu aberto. Uma formiga nunca sabia se voltaria ao formigueiro. Eram tantos os perigos...
Tontinha, de cabeça baixa, olhava para o chão concentrada.
Vermelhinha falou para ela:
— Muito bem amiguinha. Veja se consegue manter esta postura que tudo sairá certo.
— Estou tentando Vermelhinha. Preciso ter e sentir orgulho de ser uma formiga.
Andaram, andaram, andaram.
Tontinha começou a perceber o quanto era enfadonho obedecer aos ensinamentos de Madrinha. Arriscou de esguelha uma rápida olhada para o céu. E quando viu, o que viu, não conseguiu reprimir o grito.
Navalha acercou-se dela. Coordenadora logo em seguida. Tontinha tivera sorte, pois já estava de cabeça baixa.
— O que foi agora Tontinha? - indagou a Coordenadora.
— Bati em uma pedra... - mentia.
— Machucou a perna?
— Não. Só doeu um pouco.
— Logo passará. Preste mais atenção ao caminho...
Falando assim, apressou o passo em direção às demais que não haviam parado.
Vermelhinha perguntou:
— O que foi de verdadeiro Tontinha? Por que gritou?
— Vermelhinha, disfarce e olhe para o céu...
— Será que devo?
— Claro que deve. Ninguém vai ver, somos as últimas da fila...
— E Navalha?
— Está atenta ao inimigo.
E Vermelhinha olhou. Não gritou. Seus olhos desmesuradamente aumentados fitaram Tontinha:
— Por nossa Rainha, o que significa isso?
— Quem sabe Vermelhinha? Está tão gorda! Perdeu aquela silhueta aristocrática, que tanto me encantou...
— Estará grávida?
— É isso Vermelhinha! Está grávida! Vai ter muitas luas pequenas, brilhantes... - falava animada, feliz. De repente parou. Pensou. Perguntou:
— Será Vermelhinha, que nascerá alguma Tontinha como eu? Vai ser tão interessante uma pequena lua, rodando em círculos pelo céu...
— Cuidado, lá vem Coordenadora.
Esta perguntou para Tontinha:
— E a patinha? Como está?
— Já está boa.
— Tome cuidado. Sabe o quanto são importantes as nossas patas...
Afastou-se.
As amigas retomaram o diálogo interrompido:
— Como ficou feia! Era tão elegante.
— É natural! Está engordando a fim de criar espaço para as luazinhas.
— Quer saber de uma coisa Vermelhinha?
— O que?
— Tomei uma decisão.
— E qual é?
— Vou sempre olhar para o céu! Aconteça o que acontecer, mesmo que para isto tenha que me custar a vida, vou sempre fitar o céu!
— Mas Tontinha...
— Não adianta Vermelhinha. É uma decisão minha! Quero ver a filha do céu. Quero acompanhar o crescimento de sua barriga. Quero ver suas filhas, luas, belas como a mãe, nascerem, tomarem posições no céu e nem Navalha, Feroz e Implacável irão me impedir. Já não tenho medo delas! Eu olho para o alto!
— Mas agora Tontinha, abaixe a cabeça, Feroz se aproxima...
— Não! Não vou abaixar minha cabeça! Vou olhar para a frente!

E assim fez!

**********************************************************

Madrinha chegou perto de Tontinha.
— Como foi sua noite de trabalho Tontinha?
— Foi bem Madrinha. Acho que jamais serei como Navalha. Ela é uma perfeccionista. Corta com tal precisão e agilidade uma infinidade de folhas...
— Sei disso. Corta melhor ainda, cabeças inimigas! É de muita utilidade para a nossa Comunidade mas... bem... prefiro que se mantenha afastada dela. Não é companhia para uma formiguinha como você! Está na hora de dormir... Tem alguma coisa para me dizer, Tontinha?
— Sim Madrinha, tenho! Agora, eu sinto orgulho de ser formiga!
— Por nossa Rainha Tontinha! Como você está parecendo uma formiga adulta! É assim que se fala! Boa noite minha filha!
— Boa noite Madrinha!

**********************************************************

E Tontinha cumpriu o prometido. Acompanhou toda a “gravidez” da lua.
Esgueirava-se toda noite pelas galerias e ficava intermináveis momentos, olhando para a lua.
Observou toda a sua metamorfose. Bateu patinhas quando esta atingiu a apoteose. Estava na lua cheia.
É agora, pensava: - Não tem condição de crescer mais...
Desesperava-se só em pensar que as luazinhas nasceriam sem ela “por perto”.
Conheceu as estrelas. Com liberdade total para admirar o céu com tranqüilidade, olhava cada estrela, cada planeta, com atenção.
— Quem serão? Formigas do céu? Por que será que brilham? Serão inimigas da lua?
E lá numa noite, percebeu que havia sido enganada pelo objeto de sua adoração. A lua estava minguando. Não havia filhotes nenhum! Era uma enganadora. Cúmplice dos homens, como lhe dissera Madrinha.
E pela primeira vez em sua vida Tontinha chorou. E chorando voltou para o formigueiro. Quando as formigas acordaram, ela ainda chorava.
— Madrinha, Madrinha, gritou a Fofinha, a Tontinha está chorando.
Madrinha acudiu:
— O que aconteceu Tontinha? Teve algum pesadelo?
— Não Madrinha! Quero ser igual a Navalha...
Madrinha franziu o cenho. Navalha escutou e sua natureza vaidosa gostou do que ouvira. Estava atônita. Odiara tanto aquela boba tonta, e no entanto, logo ela, reconhecia a sua superioridade ao ponto de querer imita-la. Aproximou-se da pequena formiga chorosa.
— Acho difícil Tontinha, ser parecida comigo... É uma questão de genética. Nasci privilegiada, mas posso lhe ensinar alguns truques...
Madrinha interrompeu seu oferecimento:
— Não é necessário Navalha. Tontinha está somente deprimida. Passa os dias com sono como se não dormisse bem. Venha Tontinha, venha descansar. Como está pálida... Vermelhinha? - chamou.
— Sim Madrinha...
— Fique ao lado de Tontinha, veja se consegue que ela durma. Não está dizendo coisa com coisa. Imagine só, querer ser igual logo a quem. Falava baixinho, mais para si mesma.
Quando ficaram sozinhas, Vermelhina perguntou:
— Aconteceu alguma coisa Tontinha? As luazinhas nasceram mortas?
— Não existe luazinhas...
— Como não existe?
— Tudo brincadeira da lua. Está ficando fina de novo.
— Não é possível. E as... filhas?
— Não existem...
— Não fique assim Tontinha, Madrinha estava certa, temos que olhar para o chão.
— Quero dormir Vermelhinha, preciso dormir!
Navalha que tudo escutara, afastara-se discretamente.

*********************************************************

Nos dias que se seguiram, Tontinha não mais chorava. Também não sorria.
Saía para trabalhar com as outras formigas e não olhava mais para o céu. Também não olhava para o chão. Só para a frente.
Um dia Navalha se aproximou dela:
— Preciso falar com você Tontinha. Vamos até aquela jaqueira...
Sentaram nas raízes expostas da árvore:
— Sei porque anda triste. - falou.
— Sabe?
— Claro que sei! É por causa da lua...
— Pode me matar Navalha. Não tem mais importância. Sei que errei, mereço o castigo. Seja rápida, não quero sofrer.
— Quem lhe falou que vou lhe matar?
— Não vai?
— Claro que não! Como poderia matar uma fã minha? Sei que me admira, quer ser até igual a mim...
Tontinha ia dizer que não a admirava e nem que queria ser igual a ela. Falara aquelas palavras em desespero, descrente pelo engano que sofrera, mas achou melhor ficar calada.
Navalha continuou:
— Fiz umas pesquisas com alguns amigos noturnos. A lua não enganou você!
— Como não me enganou? Passei noites e noites esperando pelo nascimento... arrisquei minha vida... e no final...
Agora tentava segurar o choro, reprimido por tantos dias, sem conseguir. Lágrimas escorriam livres.
— Pare com esse choro, sua tonta. Estou lhe dizendo que a lua não mentiu para você. Ela é uma rainha solitária... Não tem filhos... Tenta engravidar, mas não consegue...
— E o sol?
— Pouco se vêem. Não tem nada a ver...
— E aquelas luzes em volta dela?
— São formigas do céu... Não se sabe de onde vêm. Zelam pela rainha solitária...
— Pobre lua, falou Tontinha, já esquecida de tudo porque passara.
— Faz pena mesmo coitada, não tem ninguém!
— Tem sim Navalha! Tem eu! Estou feliz por ela não ter me enganado. Mas quero saber, por que está me ajudando?
— Porque você Tontinha é a única em todo o formigueiro que reconheceu o meu mérito. Sou uma matadora... Mas tenho o meu valor. Faço o meu trabalho com perfeição e não me dão o reconhecimento a que tenho direito... - parou de falar pois Tontinha já não a escutava mais. Rodava freneticamente em círculos.
— O que está fazendo sua tonta?
— Estou dançando Navalha. Estou feliz. Vem Navalha. Vou lhe ensinar a rodar.
Estendeu a patinha para Navalha. Esta titubeou meio indecisa se deveria aceitar o convite da pequena formiga. Deram-se as patas e começaram a rodar, rodar, rodar.
A lua, lá do alto clareou o chão, sorrindo. Não era toda noite que poderia assistir a dança de duas formigas, banhadas de luar.


*******************************************************

Agora, finalmente, Tontinha era feliz!
Perdera o medo que sentia de Navalha. Voltara a confiar na lua, tinha uma grande amiga, Vermelhinha, e sabia ser Madrinha sua protetora.
Mas a lua era a figura mais importante de sua vida. O seu grande amor infantil. Chamava-a quando se deitava para dormir de Mamãe Lua. E acenava para o céu antes de cair em sono profundo.
O trabalho no formigueiro continuava rotineiro e monótono. Mas Tontinha esforçava-se por realiza-lo sem se queixar. Questionava-o às vezes consigo mesma, ou com Vermelhinha, que não entendia bem a amiguinha mas escutava-a pacientemente.
— Vermelhinha você gosta do que faz?
— Como assim Tontinha?
— Gosta de cortar, cortar, cortar, toda noite, sem olhar para outras coisas em volta que não sejam folhas?
— Mas, eu sou uma operária amiguinha, aliás como você também.
— Mas não somos máquinas...
— Madrinha falou que somos superiores às máquinas...
— Madrinha é de outra geração de formigas... Será Vemelhinha que ela algum dia, já sonhou?
— Sonhar com que?
— Ora, com alguma coisa... Em ter uma mãe, por exemplo... Eu tenho a minha, Mamãe Lua, toda noite antes de dormir converso com ela. Tenho você, é como se fosse uma irmãzinha, afinal nascemos no mesmo dia... mas e ela?
— Ela tem nós todas. Tem poder. Decide por nossas vidas. É muito importante!
— E isso realiza uma formiga? Ter autoridade? É meio vazio não acha?
— E o que seria “cheio” segundo você?
— Não sei ao certo... Quando corto as folhas, dia após dia, fico pensando, será só isso a vida? Não terá um outro sentido? Algo que nos faça felizes, como quando eu esperava as luazinhas nascerem?
— E o que seria? - repetia querendo uma resposta mais concreta.
— Não sei Vermelhinha, não sei, mas quero descobrir... Se você pudesse escolher nascer, do jeito sonhado, queria ser o que?
— Uma Tanajura. E você?
— Eu? Eu queria ser o Vento, o Ar, para poder correr o céu, chegar perto da lua, das formigas do céu, brilhantes. Eu queria ver a beleza lá do alto.
— Mas a lua é tão pequena Tontinha... em alguns minutos você andaria por toda ela e ainda correria o risco de cair...
— Esquece-se Vermelhinha que eu seria o Vento?
— Tem razão. Agora vamos Tontinha. Coordenadora já está organizando a fila...
— Eu odeio essas filas...
— Mas se você for justa vai reconhecer que Coordenadora permite que seja a última da fila. Assim pode andar em círculos sem atrapalhar a marcha das outras. A propósito, quando é que vai parar de andar em círculos? Parece estar sempre dançando!
— Não pareço dançar. Eu danço Vermelhinha! Sou tão feliz quando giro! Devia aprender a bailar!

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Um dia belo de sol, Tontinha recebeu autorização para sair com um grupo de formigas que iriam sondar terrenos plantados.
A luminosidade do dia era deslumbrante. As formigas iam sondando as plantas, para à noite, juntamente com as outras cortarem as folhas. Tontinha subiu em um muro alto. Avistou uma casa, um jardim e uma menina.
A garotinha, rosada, gorducha, com um imenso chapéu florido, corria pelo jardim de planta em planta, admirando as flores. As vezes curvava-se sobre uma flor e aspirava seu perfume. Junto a uma viçosa roseira de rosas amarelas, ela segurou a flor e beijou. Alisou com delicadeza suas pétalas ainda não desabrochadas totalmente, e tal qual Tontinha, começou a rodar em círculos, dançando.
— Que belo - pensou - essa garota também descobriu o quanto é saudável dançar.
E Tontinha esqueceu o tempo observando a garotinha:
— Será uma inimiga nossa? Não parece ser... Uma garotinha com tanta sensibilidade não deve odiar ninguém...
— Vamos anotar essa plantação, é toda de folhas tenras.
Virou-se ao ouvir a voz. Era Implacável
— Este jardim não Implacável.
— E por que não, posso saber sua tonta?
— Tem uma menina que...
— Você quer dizer uma inimiga não é isso?
— Não acredito que seja. Precisa ver Implacável como a garota ama suas plantas...
Implacável gritou histérica:
— Feroz, Feroz, suba aqui. Venha escutar o que eu estou ouvindo.
Feroz veio acompanhada de Navalha.
— O que é agora Implacável?
— Esta tonta, não quer que cortemos este jardim, porque tem uma menina que beija flores...
— Você está brincando Implacável...
— Não, não estou. Ela falou assim mesmo!
— Vamos dar uma lição nela e agora.
Navalha que estivera calada avançou para as duas:
— Não toquem nela!
— O que significa esse comportamento Navalha? Passou-se para o lado dela. Logo você?
— Não passei para o lado de ninguém. Sou a mesma Navalha de sempre, só não gosto de covardes.
— Nós covardes? Como ousa chamar-nos de covardes?
— Chamo e repito. Sentem-se fortes com Tontinha, uma criança ainda. Pensam que esqueci o episódio da formiga americana?
— Não sabemos do que está falando...
— Sabem sim. Claro que sabem. Quando naquela batalha, lá para as bandas do Norte, aquela gigantesca formiga americana atacou as duas, ambas bateram em retirada, se não fosse eu que decepei a cabeça dela, estariam mortas agora. Se mesmo assim não lembram, guardei a cabeça entre os meus troféus, posso mostra-la a ambas. Quem sabe assim, não ativo a memória das duas?
Calaram-se ambas envergonhadas.
Navalha virou-se para Tontinha:
— É claro que vamos cortar esse jardim! Acho que tem algo de errado com você Tontinha! Não percebe a filosofia de nosso formigueiro... talvez seja sua idade... Por que não conversa com Madrinha? Ela precisa lhe ajudar! Nem sempre vou estar por perto... Vamos embora. A noite voltaremos.

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— Madrinha, precisamos lhe falar.
Feroz e Implacável tinham o semblante carregado.
— Pois falem.
— É sobre Tontinha. Está atrapalhando o nosso trabalho.
E Implacável relatou o episódio do jardim.
— E vocês bateram nela? - quis saber.
Interpretaram errado a pergunta de Madrinha.
— Pois é! Íamos dar uma surra daquelas nela, mas Navalha impediu...
— Navalha?
— Sim Madrinha! Partiu para cima de nós duas, chegamos a pensar que gostaria de cortar nossas cabeças. É claro que não conseguiria...
Continuaram falando enquanto Madrinha pensava: - cortaria sim, muito antes de perceberem. Navalha é única! É especial. Mas por que tomou a defesa de Tontinha? Não combina com o temperamento de Navalha. Não estou gostando nada disso!
— Podem ir. Vou conversar com Tontinha.

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Tontinha alheia aos problemas causados por seu comportamento irreverente, contava para Vermelhinha o que tinha visto.
— E era pequena como nós. Fez todo um jardim Vermelhinha. Eu vi! Com suas pequenas mãos plantou uma mudinha de planta. E havia uma variedade de flores. De todas as cores. Perfumadas, coloridas...
— Boas de cortar?
— Cortar? Destruir todo o trabalho da pequena menina?
— Esqueceu que é uma inimiga, Tontinha?
— Chamam também a lua de cúmplice dos homens! Agora me responda Vermelhinha: que culpa tem a lua dos homens serem bobos?

— Isso é verdade! Você me confunde Tontinha. Quando ouço as suas razões entro em conflito comigo mesma.
Tontinha ia continuar seu relato mas foi chamada por Recado.
— Madrinha quer falar com você Tonta!
— Comigo?
— Foi o que ela disse: - Recado, vá buscar Tontinha, preciso falar com ela.

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Tontinha estava novamente em frente a Madrinha.
— Já me contaram o episódio do jardim...
A formiguinha interrompeu-a :
— Foi Navalha, Madrinha?
— Ao contrário. Soube que ela até tomou sua defesa. Não estou gostando nada disso... Esqueceu o que lhe falei sobre os homens Tontinha?
— Não era um homem, usava saia, era uma menininha como eu, como Vermelhinha, plantou seu jardim.
— São cúmplices dos homens! Concordam com eles! Às vezes, são até mais perversas. Para você ter uma idéia, em um campo aqui perto, existia uma mulher que era uma verdadeira carrasca. Ela exterminava formigas com um gás mortal... Perseguia raposas, sarigüês...
— Estamos correndo risco Madrinha?
— Não. Ela morreu. Uma cascavel, possuidora de um veneno mais mortal que o seu gás deu cabo dela. Como vê, não podemos confiar em seres humanos. Sejam homens ou mulheres.
— Mas essa do jardim é uma menina...
— Cresce, não cresce Tontinha? E quando for adulta, sairá também com tochas de fogo atrás de nós...
— Mas essa gosta de flores...
— Vamos acabar com isso Tontinha! Antes era a lua, agora são flores. Por que Você é diferente das outras?
E sem esperar resposta, continuou:
— Hoje à noite você irá com as outras cortar esse jardim. Se não o fizer, vou pensar que tem prazer em ser insubordinada.
E sem olhar para Tontinha deu-lhe as costas.

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— Vermelhinha, escute o que vou lhe dizer: Não vou cortar o Jardim da Garota!
— Você é louca Tontinha? Quer se indispor com Madrinha? Ainda não reparou o quanto ela gosta de você?
— E só porque gosta de mim, tenho que fingir que não enxergo a sua injustiça?
— Não é injustiça. É nossa vida! Precisamos de folhas.
— Mas os depósitos estão abarrotados...
— Já pensou se todo o formigueiro pensar como você? Morreríamos de fome...
— Não adianta Vermelhinha. Não vai me convencer!

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Seguia calada noite a dentro. Pensava na garotinha:
— Deve estar dormindo a essa hora. Nem imagina o que vai acontecer no seu jardim. Pobre menina!
Chegaram ao local escolhido. Navalha, como sempre fazia, cortava o triplo de folhas das demais. Feroz e Implacável tentavam, em vão, acompanhar o ritmo dela. As outras iam cortando dentro de suas capacidades.
Tontinha, extremamente nervosa, girava descontrolada. As folhas iam caindo deixando caules desertos, nus sem os seus adornos.
Chegaram na roseira de flores amarelas.
— Essa não! - gritou Tontinha.
Feroz cortou com uma rapidez quase idêntica a de Navalha, quatro folhas. Olhou para Tontinha triunfante.
Implacável também subiu na roseira. Folhas e mais folhas iam se amontoando no chão. Já não seria possível preserva-la. Uma rosa amarela, bela, recém aberta caiu por cima do tapete verde, formando um contraste perfeito, verde - amarelo.
A pobre formiga não suportou mais a visão do extermínio. Identificara a flor que pela manhã, havia sido beijada e acariciada pela garota. Gritou:
— Malvadas! Ruins! Feias! Destruidoras. Vândalas. Vocês são operárias, mas são tão más quanto a Carrasca do Campo com seu gás mortal! Este é o único momento de poder que possuem, quando cortam. Não têm outros valores! Não gostam da lua assim como não enxergam a flor. Tenho vergonha de ser uma formiga! Odeio todas vocês e...
Não poude continuar o discurso. Uma patada forte na cabeça lhe tirou os sentidos.
Antes de desmaiar, ainda teve tempo de pensar e descobrir o sentido das formigas brilhantes do céu. Elas apareciam quando uma irmã sua era atingida na Terra. Viu estrelas e desmaiou.

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Acordou muitas horas depois nos seus aposentos. Quem a trouxera, pensava.
Olhou em volta e enxergou Vermelhinha, Navalha e Madrinha.
— Como está se sentindo Tontinha?
— Um pouco mais tonta ainda Madrinha. Mas enxergo-as claramente. Onde estão as formigas do céu?
Referia-se às “estrelas” visualizadas antes do desmaio.
— Que formigas do céu Tontinha? Está delirando? - Madrinha disfarçava o pânico que sentia ao pensamento de que a formiguinha poderia ter perdido a razão.
— Esqueça Madrinha, deve ter sido uma alucinação. Quem me trouxe para casa?
— Navalha carregou-a até aqui...
— Desculpe Navalha o trabalho que lhe causei.
Navalha resmungou qualquer som indiscernível e afastou-se. Fingia não gostar de agradecimentos e perdões, mas reconheceu que Tontinha sabia ser grata, ao contrário de Implacável e Feroz que nunca lhe agradecera sequer por ter ela, Navalha, salvado suas vidas no episódio da formiga americana.
Vermelhinha acercou-se da amiga:
— Está me reconhecendo amiguinha? Sou Vermelhinha, sua amiguinha, lembra? Nascemos no mesmo dia...
— Claro que lembro. Só tomei uma pancada forte na cabeça, mas não perdi a razão.
Madrinha interrompeu:
— Agiu como se tivesse perdido. Fez coisas terríveis. Colocou-me em situação difícil. Implacável e Feroz clamam por justiça. Chamou-as, ou melhor, comparou-as a uma mulher! E que mulher! A Carrasca do Campo. Coordenadora veio me dizer, com muito tato, que as duas, Implacável e Feroz, ameaçaram falar com a nossa Rainha. Estou em uma situação delicada.
— Vou me entregar pessoalmente para a Rainha. Não tenho medo dela!
— Parece não ter medo de ninguém mesmo! Não vai se entregar nada! Se cada operária decidir por conta própria o que deve fazer, não terá mais sentido o meu cargo. Irá para a Solitária. Quem sabe assim não terá tempo para repensar sua vida?
Parou para por em ordem uma dúvida momentaneamente esquecida.
— É verdade que falou ter vergonha de ser uma formiga?
— É sim Madrinha. Senti em mim mesma, vergonha por todas nós...
— Siga-me Tontinha. Vai ficar na Solitária.
— Posso ir também Madrinha?
— Não seja boba Vermelhinha. Não fez nada, graças a Nossa Rainha só nasceu vermelha demais, mas sem idéias estapafúrdias como esta irresponsável...
Tontinha acompanhou Madrinha sem dizer nenhuma palavra. Pensava que por mais doloroso que fosse o seu castigo, seria nada comparado ao sofrimento da garotinha de chapéu florido (de flores artificiais, certamente, para não danificar as verdadeiras), quando descobrisse o deserto em que se transformara o seu verdejante jardim.
A essa hora já deve ter visto o irremediável estrago, pensava, e deve estar chorando, como eu chorei quando constatei não haver luazinhas no céu.
Seguiram por outras galerias desconhecidas para Tontinha. Em frente a uma minúscula “cela” Madrinha parou.
— Entre na “cela” Tontinha. Vai ter tempo suficiente para pensar e repetir uma frase.
— Que frase Madrinha? Só olhar para o chão? Já “estudei” essa lição, mas troquei o lugar, olho sempre para a frente...
— Não, é outra oração. Repita: Tenho orgulho de ser Formiga!
— Não posso Madrinha! Não sinto esse orgulho, ao contrário, sinto até vergonha...
— Cale-se sua tonta! Não percebe que tento ajuda-la? Por que complica as coisas? Quer arruinar minha carreira, meu posto, conseguido com tanta luta, tanta dedicação?
Estava possessa.
— Perdoe-me Madrinha. Não quero prejudica-la. Amo-a tanto quanto amo a minha mãe.
— Que mãe sua tonta? Nossa Rainha?
— Não. Nem a conheço. A minha Mamãe Lua...
— Lua? Elegeu aquela lá sua mãe? Começo a dar razão a Feroz e Implacável! Você não tem jeito! É um caso perdido!
Virou-se para a carcereira :
— Não a perca de vista...
Só então Tontinha reparou que havia uma formiga um pouco recuada da cela onde Madrinha a instalara.
— Você é prisioneira também?
— Claro que não, sou guardiã.
— Mas não deixa de ser detenta. Está aprisionada do mesmo jeito que eu. Muda de título mas é uma presa também.
— Cale essa boca! Não gosto de você!
— Pois eu não lhe tenho ódio, tenho é pena da profissão que escolheu...
— Pena de mim? Por que lhe desperto pena? A presa é você!
— Acho que somos as duas. Não posso ir para fora ver a lua, por imposição. Você por opção, mas ambas perdem o espetáculo do luar.
— Se disser mais algum disparate desse tipo vou bater em sua cabeça...
— Não me importo. Quem sabe assim não torno a ver as formigas do céu?
— Você é louca! Completamente louca! Vou colocar meu parecer no relatório que farei. Agora cale a boca e pense na frase que Madrinha lhe mandou decorar...
Tontinha sentou-se no canto da cela. Era escura, feia, quente. Pensava na garotinha e achava seu castigo justificável, em comparação ao dela, que nada fizera e fora tão duramente castigada.
Procurou lembrar se Navalha também cortara a roseira de flor amarela. Não! Não se lembrava de tê-la visto. Sorriu ao pensar em Navalha. Tão má e tão boa! A guardiã havia se afastado. Ouviu vozes por perto. Quem seriam as donas das mesmas?
— Quem está ai? - gritou.
— Somos prisioneiras. Viemos de outro formigueiro. Fomos capturadas.
— Estão em celas?
— Ao lado da sua.
— Por que não fogem?
— Você é tonta?
— Ah, me conhecem? - estava contente em ser reconhecida pelas prisioneiras.
— Claro que não a conhecemos.
— Chamou-me pelo nome...
— Chamei-a de atarantada, de idiota, tola, mas começo a perceber que deve ser uma espiã...
—Espiã eu? Só espio a lua...
—E por que está nos aconselhando a fugir, se é inimiga nossa?
—Não sou inimiga de vocês. Não tenho ódio de ninguém. Não gosto de Feroz e nem de Implacável, mas não quero que nada de mal aconteça às duas. Por que teria ódio de vocês?
—Se não é amiga nossa, não é inimiga, então é uma traidora?
—Traidora, eu? - estava atônita.
— Claro. Está traindo seu povo, seus dirigentes e sua própria rainha, aconselhando-nos a fugir. É indigno de uma formiga!
— Você tem Orgulho de ser Formiga? - perguntou.
— Não só eu, todas que estão aqui comigo. Somos fieis à nossa espécie! - respondeu com orgulho.
— Desculpem-me. Só quis ajuda-las...
— Não queremos ajuda de uma traidora!
E Tontinha preferiu ficar calada. Começava a achar ser ela uma incompreendida. Não devia ter nascido. Não era aceita pelas formigas iguais a ela na aparência. Certamente não seria aceita pela garota do chapéu florido, por ser considerada uma formiga, igual a Implacável, Feroz e também Navalha. Mesmo não sendo implacável, feroz e nem cortar cabeças como Navalha, seria julgada como tal.
— Ainda me resta Vermelhinha. - pensava.
Os dias passavam vazios, monótonos, enfadonhos.
Tontinha já não conversava com as prisioneiras e também não se dirigia mais à guardiã. Observava que as suas refeições eram muito além do desejado. Até um pouco de geleia real lhe foi servido.
— Tenho certeza que existe o “dedo” de Madrinha neste cardápio... pensava.
Uma manhã recebeu surpresa a visita de Navalha.
— Navalha? Que surpresa agradável! Que bom ter se lembrado de mim...
A velha formiga sentou-se perto dela na cela.
— Lembro sempre de você Tontinha! Vermelhinha lhe manda um beijo. Somente hoje recebi consentimento de Madrinha para vir vê-la...
— Como vai Vermelhinha, Navalha?
A outra sorriu:
— Cada dia que passa vai ficando mais rubra... Está bem sim...
— E você?
— As vezes sinto minhas patas um pouco pesadas, deve ser da idade...
— Você não relaxa nunca, Navalha...
— Não posso. Os inimigos esperam exatamente por isso, uma distração, um relaxamento e ... adeus Navalha!
Riram descontraídas.
— Já sabe quando vai sair daqui?
— Não sei Navalha. Não recebi nenhuma informação...
Foi interrompida pelos gritos das prisioneiras da cela ao lado da sua.
— São as presas, não gostam de mim...
Navalha interrompeu-a:
— Sei quem são. Capturei-as...
— Navalha, velha nojenta, seu dia já está perto...
— Malvada!
— Carrasca!
— Sua Rainha é uma porcaria de rainha...
— Justiceira vai dar cabo de você, é só esperar...
— Viva Justiceira! - gritavam todas.
Tontinha veio para perto da amiga.
— Não responda Navalha... estão querendo lhe provocar...
— É justo, é justo o ódio que sentem, tornei-as prisioneiras...
— O que é Justiça, Navalha?
— Quer saber realmente Tontinha?
— Preciso.
— Não sei. Só sei que a Natureza não engana, não trai, é correta. Se você planta roseiras amarelas, nascem rosas amarelas. A Natureza não segue modas. Não troca suas “roupas”... É sábia. Escolhe suas cores e é fiel à sua escolha. Quer um conselho Tontinha?
— Até lhe agradeço...
— Confie na Natureza. Observe-a. Capte seus ensinamentos. Quando eu era pequena, assim como você, conheci uma velha formiga... ela dizia:
— É só esperar a troca das marés...
Ninguém a entendia, hoje, percebo o que queria nos passar...
Respirou fundo:
— As formigas, sentem-se donas do planeta... Os homens nos acham nocivas. Não somos! E nós, nos sentimos superiores... Também não somos superiores a nada! A natureza sim! Ela é perfeita! É única!
— Navalha, eu queria lhe dizer uma coisa...
— Pois diga Tontinha.
— Sinto muito orgulho de tê-la como amiga!
Ia responder que também se sentia muito feliz em tê-la como amiga, mas foi impedida pela guardiã:
— Tempo de visita esgotado.
— Até breve Tontinha.
— Se a Natureza permitir...
— Irá permitir sim.
Quando saiu da cela recebeu um côro de vaias das prisioneiras. Parou, olhou bem para elas, que imediatamente haviam calado e falou:
— Se fosse o contrário, se vocês tivessem levado a melhor sobre mim, certamente eu não estaria em uma cela e sim morta. Esta é a lei da Vida!
E deu-lhes as costas andando em seu passo apressado.

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Finalmente o castigo imposto a Tontinha foi dado por findo.
Coordenadora veio busca-la para leva-la em frente à Madrinha.
— Apresse-se Tontinha, não gosto de ficar nem por alguns segundos nestas galerias...
Tontinha percebeu uma recriminação velada em suas palavras, um ar de superioridade em relação a ela. Falava como se dissesse:
— Estou aqui cumprindo o meu dever, mas não faço parte deste submundo...
— Navalha é importante? - perguntou de chofre para Coordenadora.
A pergunta de Tontinha pegou-a desprevenida. Precisava pensar rápido em uma resposta que não a comprometesse. Embora sua opinião sobre Navalha já estivesse formada de há muito. Para ela, Navalha não passava de uma matadora exímia, sem nenhum outro valor. Uma assassina!
— Claro que ela é importante. Por que me pergunta?
— Porque Navalha veio até minha cela. Conversamos longo tempo.
A Coordenadora sentiu vontade de retrucar, que cela era um lugar perfeito para uma formiga como Navalha, não para ela, cujo curriculum era inatacável. Mas se conteve.
— Que belo gesto da parte dela. Imagino o susto que levou vendo-a chegar. Deve ter pensado que chegara a sua hora, não foi Tontinha? - sentia prazer em ser pérfida.
— Não! Navalha não me fará mal. Ela é boa, verdadeira, sincera, não finge gostar, ela gosta! Quando odeia, odeia!
— Está insinuando que sou fingida?
— Você é?
— Claro que não...
— Então não é! Somos o que somos, não o que os outros pensam ou dizem, que somos. Opiniões, não são verdades...
Andavam agora em silêncio.
Coordenadora ia pensando: - que formiga mais complicada é esta? Por que teria nascido diferente das outras? E por que Madrinha a distingue? Navalha a visita...
Chegaram em frente a Madrinha, que dispensou Coordenadora. Esta gostaria de ficar, para ouvir o sermão, mas como Madrinha se manteve calada, retirou-se.
— Como está se sentindo Tontinha?
— Estou bem Madrinha.
— Aprendeu alguma coisa de útil nos dias que passou reclusa?
— Sim Madrinha, aprendi.
— Posso saber o que?
— Que a vida é feia e que sou extremamente infeliz.
— Infeliz?
— Sim Madrinha. Gostaria de voltar o tempo, antes de ser presa, quando acreditava que dançar, gostar da lua, proteger um jardim do vandalismo de minhas irmãs, não incomodava tanto as formigas...
— Continua cultuando falsos valores?
— São os meus valores Madrinha.
— Tontinha, tenho procurado protegê-la das demais formigas. Afastei-a por uns dias, para acalmar a sanha assassina de Feroz e Implacável, que me cobravam uma atitude em relação a você. Elas não esqueceram que foram chamadas, por você, de facínoras, malvadas e outros adjetivos pejorativos. O mínimo que lhe peço é que me ajude a lhe proteger!
— Desculpe-me Madrinha, tenho sido má e ingrata...
— Não! Não tem! Eu lhe entendo! Agora vá, suba, precisa esticar as pernas, andar...
— Posso dançar?
— Pode Tontinha...
— Posso pedir mais uma coisa?
— Depende Tontinha, o que deseja?
— Queria sentar um pouco no seu colo Madrinha, mas não quero que fale, só quero sentir o contato de seu corpo junto ao meu, como uma mãe deve fazer com seus filhos...
Madrinha disfarçou uma lágrima que teimava em saltar dos seus olhos.
— Venha minha filha, pode sentar no meu colo. Acho que estamos sendo muito severas com você. Afinal, não passa de uma formiguinha.
E Tontinha foi embalada por Madrinha como gostaria que “a sua” mamãe Lua o fizesse. E pela terceira vez a pobre formiga chorou. Madrinha nada dizia. Alisava sua cabecinha, apertava-a contra o peito, transmitia-lhe calor animal.
Quando a pequena formiga se acalmou, Madrinha interrompeu seu próprio mutismo:
— Vá minha querida. Vá ver seu céu! Vá dançar, vá em busca de sua felicidade momentaneamente perdida, pois sei que há de encontra-la novamente.
E Tontinha saiu para fora do formigueiro. Quantos dias passara longe do “seu” céu azul? Não saberia dizer.
Fechou um pouco os olhos, pois a claridade demasiada, depois de tantos dias de escuridão na cela, estava lhe ofuscando.
Olhou em volta, ouviu sons, sentiu o vento e ficou realmente tonta de felicidade. Rodou em círculos simétricos, perfeitos, incansavelmente. Estava encontrando, finalmente, a alegria perdida.
Faltava mais uma apuração para que pudesse acreditar novamente na alegria e na volta da felicidade. Precisava ver se a garota do chapéu florido reagira ao golpe desferido por suas companheiras.
E Tontinha caminhou longo tempo. As vezes em círculos, as vezes olhando o céu, até chegar finalmente e reconhecer o muro onde do outro lado se avistava o jardim.
Subiu o muro alto e não acreditou a princípio no que avistara.
Não havia talos despojados de seus adornos. O jardim estava reflorido. Todas as plantas cortadas, vestiam-se agora de um verde novo, brilhante, vivo.
Correu os olhos pela roseira. Pequenos botões amarelos preparavam-se para desabrochar.
Ouviu um som de chuva caindo. Virou-se. E do lado oposto do jardim a pequena garota do chapéu florido com um pequeno regador molhava um canteiro de miosótis.
Lembrou-se da conversa que tivera com Navalha na cela, e agora entendia o sentido da mesma. Confie na natureza, ela dissera.
— Tenho três mães - pensou - Mamãe Lua, Madrinha e Mamãe Natureza.
Sorriu. Era realmente uma formiga privilegiada e única no mundo. Possuía três mães. Não impostas. Escolhidas. Por ela mesma!
Quedou-se longo tempo observando a garotinha. Como era bela e gentil. Observava seus gestos em alisar as folhas tenras, recolher as folhas secas, escorar alguma nova plantinha e correr em busca de água para rega-las.
Gostaria de poder falar, pensava, para dizer-lhe que não participara do extermínio das folhas...
Sofrera tanto. Não pelo castigo imposto. Não pela cela, a humilhação de ser prisioneira... Sofrera por ela. E agora...
Admirou a sabedoria de Navalha. Não tinha maturidade ainda para perceber o que a outra, adulta, vivida, percebera. Confiar na Natureza! Claro, essa não errava nunca! Era perfeita!
Porque não nos ensinam isso no formigueiro? Não! A ordem era olhar para o chão. Que ensinamento mais simplista. - pensou.
Uma jovem senhora acercou-se da garota.
— Será a mãe dela? Certamente, são tão parecidas...
A menina mostrava agora para a mãe os botões amarelos da roseira. Esta sorriu para ela e lhe entregou uma taça com duas bolas, uma da cor da terra e outra da cor das nuvens.
— O que será? Certamente é isso o alimento das meninas...
A garota levou uma colher à boca e seus olhos brilharam de alegria.
Alguém chamou a jovem senhora de dentro da casa e esta foi ao seu encontro.
A garotinha sentou em um banco do jardim e foi tomando lentamente seu sorvete.
Quando uma pequena porção caiu ao chão, Tontinha pensou que a garotinha iria chorar, pois reparou que esta ia derretendo rapidamente. Por que derretia?
A garota não chorou. Levantou-se e sempre segurando a taça foi ao encontro da mãe.
Tontinha desceu do muro. A bolinha derretia no chão. Provou. Que delícia. E como era friazinha, como as folhas molhadas pelo sereno da noite.
— Preciso contar para Vermelhinha, como é doce e gelada a comida das garotas.
E sorveu o quanto sua minúscula estrutura suportou.
— Agora posso voltar para casa. A Natureza já deu jeito em tudo! Confiar sempre na Mãe Natureza, vou ensinar para Vermelhinha, pensava.

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Não só para Vermelhinha, Tontinha contou suas descobertas.
Quando chegou ao formigueiro, ofegante, bastante corada, perguntando pela amiga com ansiedade, algumas formigas sentiram curiosidade em saber o que de tão importante Tontinha tinha para dizer.
E quando finalmente Tontinha juntou-se a Vermelhinha, um círculo relativamente numeroso fez-se em volta da formiguinha para escuta-la. Um verdadeiro anfiteatro cuja figura central era Tontinha. Esta, a medida que falava, rodava, assim ficava alternadamente em frente a todas.
— Vocês precisam provar. É doce, gelado.
— Não será uma gota de orvalho Tontinha? - perguntava uma.
— Não. Gota de orvalho não é. Já provei também. É incolor e inodora, essa tem açúcar como o mel...
— E por que derrete? - indagava outra.
— Acho que é porque seja feita de nuvem, quando cai na terra, derrete...
— Foi o branco que caiu? - quis saber Precisão.
— Exatamente. Penso que se o marrom caísse, o que é feito de terra, não derreteria...
Navalha que havia chegado discretamente, mantinha-se ao largo, ouvindo as aventuras da formiguinha que nem de longe, parecia com a mesma reclusa que fora visitar na cela. Estava eufórica.
As outras, quando perceberam a presença da temida formiga, retrairam-se mal disfarçando o medo que sentiam dela.
Tontinha acompanhou o olhar assustado das novas ouvintes e enxergou Navalha. Gritou:
— Navalha que bom lhe ver. Venha para perto de nós. Quero lhe contar o quanto foram sábias as suas palavras. A Natureza consertou tudo... mas venha, explique Você mesma para as formiguinhas, você fala melhor do que eu. Ensine para elas o que me ensinou quando foi me visitar na prisão.
Uma delas arriscou:
— Dona Navalha foi na prisão?
— Não só esteve lá como me deu vários conselhos úteis. Fale Navalha, fale. - pediu com entusiasmo mesclado de ansiedade.
Navalha aproximou-se. Parecia tímida. Era interessante de se notar, como a formiga mais temida do formigueiro, estava frágil em frente aos elogios e carinho de uma pequena formiguinha. Parecia desarmada.
Quando as formigas apertaram o círculo para lhe ceder lugar, ela sentou-se e a sua fisionomia, naquele momento, não era exatamente a de uma carrasca e sim de uma professora, mentora, conselheira.
— Sou uma velha formiga, posso dizer que fundei este formigueiro, muito, mas muito tempo antes de vocês nascerem. Nasci, posso assim dizer, com uma intuição privilegiada. Fui treinada desde cedo para estar atenta ao inimigo. Aprendi a observar tudo à minha volta. Dizem por aí (referia-se a Madrinha, Coordenadora etc) que o nosso pior inimigo é o homem. Eu discordo. Somos nós mesmas. Vivemos sempre em guerra com nossas irmãs de comunidades diversas. Matamos, saqueamos os ovos, as larvas e ninfas das inimigas. Escravizamos formigas mais fracas. E eu pergunto a Vocês, é justo?
Ninguém respondeu.
Navalha continuou:
— Aparentemente não é justo. Não é certo. O certo, ao meu ver, seria nos unirmos contra o homem. Mas não!
Guerreamos contra nós mesmas e perdemos assim tempo, para pensarmos numa maneira de exterminar os homens. Eles devem brigar entre si também, mas como não trabalham muito, sempre encontram tempo para pensar em nós e em alguma maneira de nos exterminar. E assim, levam vantagem...
Tontinha levantou a patinha pedindo consentimento para falar.
— Diga Tontinha. - falou Navalha.
— Estava pensando, se formássemos uma comissão de formigas para ir de formigueiro em formigueiro dar esta sugestão, de nos unirmos, será que acabaríamos com esta terrível guerra entre nós mesmas?
— Vocês seriam mortas antes de abrirem a boca. Todas aqui sabem o poder do nosso olfato. Tão logo elas sentissem o cheiro de vocês, as exterminariam...
Calaram-se todas. Tontinha lembrou-se, de repente, do jardim novamente reflorido.
— Navalha, fale para elas sobre a Natureza.
— A Natureza, formigas, é a única coisa mais perfeita que um formigueiro. Ela sabe tudo! Confiem nela!
Uma formiguinha muito pequena, menor que Tontinha e Vermelhinha, subiu, sem o menor resquício de medo pela perna de Navalha, talvez para ser melhor ouvida. Esta não se mexeu.
— D. Navalha, essa tal de Natureza é mais sábia do que a nossa rainha?
— A meu ver sim. Como é seu nome?
— Frágil. - respondeu-lhe a formiguinha.
— Pois é Frágil, além de ser mais sábia é também mais poderosa. Se ela quiser programar uma enchente violenta, ou um incêndio nos campos secos, nossa Rainha vai poder impedir?
Ouviu-se um não de todas as bocas.
— Mas a Natureza, - continuou - dosa as “coisas” na medida certa, os homens é que atrapalham...
Frágil sentou-se em Navalha.
— E a senhora, não pode extermina-los?
— Quem me dera Frágil, quem me dera.
Seu rosto agora assumira a mesma expressão de ódio que conservava nas batalhas. Mas as formigas não sentiam mais medo, nem dele e nem dela.
Continuou:
— Se eles acabassem, como a Natureza iria adorar. Ela trabalha mais que nós todas juntas e eles destróem...
— Odeio os homens. - falou uma.
Tontinha estava pensativa. Falou baixinho:
— Mas tem uma menina, ela gosta de jardim... está tão lindo Navalha, precisa ver, a Natureza renovou tudo!
— Folgo em saber Tontinha, que temos folhas novas.
Todas se viraram em direção da voz. Menos Navalha. Sabia que Feroz e Implacável estavam presentes.
— O que você quer dizer Implacável? - perguntou Tontinha.
— Estou dizendo sua Tonta, que hoje mesmo voltaremos lá. Valeu sua informação! Cortaremos todo este maldito jardim.
Tontinha começou a rodar freneticamente. Girava sempre quando a alegria era intensa ou o medo assustador.
— Por favor Feroz! Por favor Implacável! Não cortem mais aquele jardim.
— Quer voltar para a cela agitadora? Vamos cortar sim! Folha por folha...
— Não ousem faze-lo! Perderão suas cabeças antes que uma única folha caia ao chão. - falou Navalha calmamente.
— Está nos ameaçando, Navalha?
— Por enquanto, só avisando. - respondeu no mesmo tom de voz anterior.
— Venha Feroz, vamos procurar Madrinha. Ela vai gostar de saber o que está ocorrendo aqui.
Todas as formigas levantaram e durante alguns minutos só um grito festivo se escutara:
Navalha, Navalha, Navalha!
Finalmente, a velha formiga, era reconhecida e aplaudida dentro do seu formigueiro que ajudara a construir, em um dia longínquo.

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— Madrinha, precisava estar lá. Navalha nos ameaçou. Proibiu-nos de cortar o jardim daquela garota. Agora são duas. Ela e Tontinha. E estão formando adeptas. Já pensou Madrinha se as formigas não quiserem mais cortar jardins? Os pulgões não serão suficientes para toda a nossa comunidade...
— Não seja dramática Implacável. Temos muita vegetação ainda por perto. É bem verdade que os homens estão apertando o cerco, com essa massa infeliz que preparam de cimento ou de asfalto, mas ainda temos algumas áreas verdes...
— Mas por que não, o jardim da garota? Já soubemos que renasceu...
— Porque eu não quero! Não toquem em uma só folha de lá. Proíbo-as, - quase gritou.
— Mas...
— Calem-se. Cortem todos os campos que encontrarem. Todos os jardins. Cortem tudo! Somos formigas e continuaremos a ser, enquanto existir terra e formigueiros, mas aquele jardim, não. - já não falava, gritava.
As duas saíram possessas.
— Vamos falar com a nossa Rainha, Feroz.
— Está louca? Está pondo ovos...
— Você viu? Navalha quando saiu estava sendo aplaudida. Quem diria hein?
— Mas a culpa não é de Navalha, é daquela idiotinha pião, está virando a cabeça das formigas...
— Precisamos saber esperar.
— Exato! O dia dela há de chegar!

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Tontinha alheia aos desejos maléficos de Implacável e Feroz, levava a sua vida, dividindo seu tempo entre o trabalho, as visitas ao jardim da garota do chapéu florido, a contemplação de sua Mamãe Lua, aos longos diálogos com Vermelhinha.
Toda noite antes de se recolher ia aos aposentos de Madrinha:
— Boa noite Madrinha.
E Madrinha afagava-lhe a cabeça:
— Boa noite minha filha.
Não perdera o hábito de girar, andava sempre bailando e agora outras formigas a imitavam. Algumas tomavam aulas com Tontinha, mas por mais que se esforçassem, não possuíam a graça e leveza da formiguinha.
Navalha afeita sempre a observar tudo à sua volta, sempre atenta a inimigos, acompanhava meticulosamente o trabalho de Tontinha e aconselhava:
— Procurem observar como Tontinha gira. Sejam leves, esqueçam o peso do corpo e girem...
— Estou indo bem Navalha? - perguntava uma.
— Está, mas pode melhorar.
— E eu Navalha?
— Não está dançando, Crespinha, está sim, pulando como um sapinho. Observe sua amiga, sinta a leveza das suas patinhas...

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O verão chegou abrasante.
Os silos no formigueiro haviam baixado consideravelmente seus níveis.
Sentia-se inquietação entre as formigas.
Madrinha convocou uma reunião de emergência.
— Os restritos campos e jardins estão áridos. Instalou-se a seca nas plantações. Vou exigir de vocês um sacrifício superior às suas forças. Vão ter que procurar longe, os arroios, riachos, lagoas, onde é mais fácil encontrar vegetação. Desejo-lhes boa sorte.
Retirou-se visivelmente preocupada.
Coordenadora deu início à formação da fila.

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Há uns três quilômetros dali, outra reunião estava sendo formada.
Anciã, a mais velha formiga da comunidade vizinha, falava pausadamente para um número considerável de formigas atentas.
— Não tem mais como esperar e nem prorrogar esta decisão. Não existe a menor possibilidade de chuva. Procurem os riachos, lagos, até rios se for possível. Certamente irão encontrar outros exércitos em busca do mesmo que nós. Não vacilem! Ataquem! Não recuem! Lutem! Matem ou morram!
Pigarreou:
— Vençam. Saqueiem tudo que encontrar. Lembrem-se que da morte dos nossos inimigos, depende a nossa sobrevivência. Se tivermos que sucumbir de fome, optaremos por morrer lutando. É mais digno! Infelizmente estou velha, não posso mais acompanha-las. Estarei esperando, ao lado da nossa Amada Rainha por vocês e seus troféus.
Parou pois ofegava um pouco.
— Anciã, - falou alguém - se encontrarmos o exército de Navalha, devemos ataca-lo, mesmo sabendo que são superiores em número a nós?
— Não lhes restará outra alternativa. Se não atacarem, serão atacadas. Meu consolo, ou melhor, minha estratégia é eliminar Navalha. Destacar um número de guerreiras em função de Navalha. Lembrem-se que ela é o trunfo mais precioso de sua comunidade. Morta, deixará seu exército vulnerável. Agora preparem-se e boa sorte!

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O exército da Comunidade da Prosperidade seguia atento e cauteloso.
Tontinha evitava o mais que conseguia andar em círculos. Pressentia o perigo. Não queria ficar longe das companheiras, caso houvesse uma batalha.
— Vermelhinha, - pediu - fale alguma coisa, estou nervosa.
— Estou com medo Tontinha. Nunca vi Madrinha tão tensa e preocupada, como hoje.
— Tem razão! Pela primeira vez não me deu nenhum conselho, não deu também o tapinha que costuma dar-me, sempre que saio e falou longamente, a sós com Navalha.
— Já reparou o comportamento de Navalha também?
— Reparei sim. Anda, pára, fareja, está visivelmente apreensiva. Veja, pediu a Coordenadora para pararmos.
Foi dado o sinal de parada.
Navalha subiu em uma pedra. Falou:
— Já estou percebendo o cheiro do inimigo. Estão chegando em direção a nós. Estão vindo do lado norte. Preparem-se. Lembrem-se: ataquem, mordendo suas patas e antenas. Coordenadora convoque as formigas soldados. - pediu.
Assim foi feito.
Os soldados com seus cascos cornudos e os de cabeças peludas, bem superiores em tamanho às outras formigas, tomaram posições. A missão desses soldados é de proteger a colônia de que fazem parte e dar apoio e proteção as operárias que saem em busca de folhas.
Nas batalhas, esses soldados expõem suas sólidas e grandiosas cabeças em forma de escudo protetor, em torno das operárias e é quase impraticável os inimigos romperem esta barreira.
Virou-se para Tontinha:
— Se cuide Tontinha. Fique dentro do círculo, protegida pelos soldados. Eles nunca perderam uma batalha. Não posso zelar por você, estarei muito ocupada.
— Cuide-se também Navalha, não quero perder uma amiga tão leal e solidária como você.
— Pode deixar Tontinha, estou com ódio e ele me impulsiona. Como lhe disse a Natureza é sábia! Guardo meu ódio para os inimigos. Ele é um mal necessário, no mundo em que eu vivo!
Saiu apressada. Gritou:
— Feroz, Implacável. Venham para o meu lado. Imagino que elas vão destacar um grupo, só para tentar dar cabo de nós três. Vamos pega-las de surpresa.
As duas alinharam-se ao seu lado. Ali, em frente ao perigo, só um desejo prevalecia: vencerem a qualquer custo.
— Lá vem elas. Só ataquem quando eu der o sinal. - gritou Navalha.
Aparentemente colocaram-se em atitude passiva, mas tão logo as formigas inimigas atacaram, usaram seus próprios impulsos para derruba-las. As inimigas procuravam, a todo custo, Navalha. Esta ia degolando cabeças com uma agilidade espantosa. Para cada formiga derrubada por Feroz e Implacável, o dobro era conseguido por Navalha.
Tontinha dentro do círculo formado pelos soldados cornudos e de cabeças peludas, acompanhava o desempenho brilhante de Navalha. Era uma verdadeira guerreira. Não se descuidava nem por um segundo das laterais, frente e costas. Rodava com uma agilidade incrível na urgência de controlar os inimigos, vindos de todos os lados.
— Ela também sabe dançar como eu, só que a sua dança é em compasso de guerra, e a minha é de festa. - constatava Tontinha.

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Justiceira, era a formiga inimiga, quase do mesmo nível de Navalha. Adversárias ferozes, odiadas entre si, sem nunca terem se encontrado, ansiavam, ambas, se defrontarem um dia.
Finalmente iam se conhecer.
Justiceira gritou:
— Descobri Navalha, vou atacá-la. Preciso de apoio.
Quatro formigas colocaram-se à sua frente, qual batedoras.
— Cuidado Navalha, gritou Tontinha que acompanhara a manobra inimiga.
Em fração de segundos as quatro cabeças rolaram por terra. Navalha desafiou-a:
— Agora Justiceira, sou eu e você. Venha! Há quanto tempo venho esperando por esse momento.
— Por minha Rainha, que vença a melhor e serei eu!
A luta mortal e definitiva deu início.
Cada qual com a sua técnica procurava o momento certo.
Justiceira sabia a maneira que Navalha atacava e não se descuidava um segundo sequer.
Rolaram ambas na terra. Um soldado inimigo veio dar apoio a Justiceira.
Navalha lutava simultaneamente com os dois, ambos exímios guerreiros. Não poderia suportar por muito tempo aquela situação. Logo estaria em desvantagem.
Tontinha procurou com os olhos Feroz e Implacável, mas ambas estavam em situação também delicada, pois estavam lutando em desigualdade, já que as inimigas seguiam as ordens da Anciã:
— Terminar com o triângulo, custasse o que custasse. - dissera a velha formiga.
Tontinha não pensou mais. Forçou o círculo dos soldados amigos:
— Me deixem sair, pelo amor de nossa Rainha, Navalha está correndo perigo...
Sua determinação, mil vezes superior ao seu tamanho, convenceu os soldados cornudos que abriram uma fenda para que saísse. Vermelhinha acompanhou-a .
Justiceira conseguira uma posição privilegiada. Estava por cima de Navalha que vinha tomando golpes laterais do soldado de apoio da inimiga.
E Tontinha aprendeu naquele momento difícil de sua vida infantil, que o Mal às vezes é o Bem e vice-versa.
Imprimiu toda a velocidade que o seu pequeno corpo suportaria e chegando perto de Justiceira cortou-lhe as duas patas, no momento que essa preparava-se para ganhar a luta, decepando a cabeça de Navalha.
Justiceira sem pernas, rolou para o lado. Navalha desvencilhou-se, rapidamente, matou o soldado com um golpe certeiro e virando-se para Justiceira falou:
— Não deixaria uma guerreira do seu porte viva, sem as suas pernas... Adeus Justiceira!
E decepou-lhe a cabeça.
Tontinha antes de perder os sentidos ainda ouviu Vermelhinha gritando:
— Tontinha, Tontinha, cortei a cabeça de uma feiosa maior do que eu!
O exército inimigo ao constatar a morte da líder, estava batendo em retirada.
O local estava pontilhado de corpos vermelhos.
Navalha ordenou a Vermelhinha que voltasse para o círculo seguro dos soldados, levando Tontinha com ela e foi em auxílio de Feroz e Implacável. Em poucos segundos derrotou os inimigos. Pela segunda vez salvara a vida das duas formigas.
Coordenadora gritava:
— Vamos ao saque. Invadiremos sua colônia e levamos seus ovos, larvas, ninfas, mantimentos, e as prisioneiras. Vamos. Venha Navalha, esteve brilhante, como sempre! Parabéns!
— Não gosto de saques! Vou levar Tontinha para casa. Salvou-me a vida, mas está em estado de choque. Não nasceu guerreira, mas foi uma guerreira.
E com delicadeza inimaginável em alguém afeito tão somente a batalhas e morte, carregou a pequena formiga de volta para casa.

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O exército seguia agora para o saque. Invadiram o formigueiro inimigo com as poucas sobreviventes já prisioneiras.
Anciã tão logo sentiu o ar “contaminado” pelo cheiro inimigo, soube que havia perdido a guerra, e por conseguinte, a vida.
Olhou pela última vez sua comunidade, fitou demoradamente sua rainha. Preferia a morte à condição humilhante de escrava.
Ergueu a cabeça com dignidade.
Feroz e Implacável foram as primeiras a entrar no recinto.
— Você Feroz, se encarregue da rainha delas, que cuidarei eu desta.
E a cabeça de Anciã rolou por terra.
— Dêem início ao saque. Levem tudo!
E as operárias iniciaram seu trabalho.

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Madrinha andava de um lado para outro inquieta. Sabia que suas irmãs não haviam saído simplesmente em busca de alimentos. Em crise de folhas, vários exércitos de colônias vizinhas partiam para luta. Conhecia o sistema. Era a lei da sobrevivência.
Navalha entrou carregando Tontinha, seguida de Vermelhinha. Colocou a formiguinha delicadamente no chão.
— E então Navalha?
— Vitória absoluta Madrinha.
— Muitas perdas?
— Metade das perdas do exército inimigo. Justiceira está morta!
— Conseguiu mata-la Navalha? - estava orgulhosa da “sua” guerreira.
— Não Madrinha. Ela sim me mataria se Tontinha não lhe cortasse as pernas.
— Tontinha? - agora era surpresa e incredulidade no seu quase grito.
— Sim, ela mesma! Uma verdadeira pequena guerreira, mas está em estado de choque.
Madrinha foi até onde Tontinha estava.
— Acorde Tontinha. Está tudo bem agora. Sou sua Madrinha, fale comigo.
E a pequena formiga começou a delirar:
— Vou para a cela. Sou uma assassina, Mamãe Lua não vai mais gostar de mim. Cuidado Navalha, cuidado. - gritava.
— Como está agitada!
— Deixe-a descansar, Navalha. Isso passa...
Vermelhinha mal conseguia se conter. Estava ansiosa para contar sua grande aventura.
— Madrinha matei uma feiosa maior do que eu. Fiz do jeito que vi Navalha fazer. Deu certo Madrinha, a cabeça dela rolou...
— Pelo visto temos duas novas heroínas em nossa Colônia. Parabéns Vermelhinha. Estou orgulhosa de você!
Navalha sentou-se em um canto pensativa. Estava calada e calada permaneceu, quando as companheiras chegaram com troféus (cadáveres de formigas inimigas) as próprias companheiras mortas, prisioneiras, ovos, larvas, ninfas, mantimentos...
O barulho era ensurdecedor. Cada qual queria falar mais que a outra.
Madrinha a todas escutava. Felicitava-as, parabenizava-as, elogiava-as. Era óbvio que se amavam.
Tontinha acordou. Olhou em volta e chorou.
— Pare com esse choro Tontinha. Agora é uma heroína. Salvou Navalha da morte certa.
— Posso ir olhar o céu Madrinha?
— Vá. Acompanhe-a Vermelhinha.
Subiram.
— Por que está tão perturbada Tontinha?
— Fui contra as minhas convicções, Vermelhinha. Não gosto de violências. Gosto é da Natureza. Mas tive que optar pela vida de uma amiga e a morte de uma inimiga.
— Disseste-o bem. Uma inimiga.
— Uma guerreira Vermelhinha. Um ser, como eu, como você.
— Se não a matasse, ela nos mataria.
— É isso! O sistema está errado! Somos irmãs. Temos os mesmos hábitos, rainhas, causa...
— Não pense mais nesse episódio tão triste. Vamos dançar?
— Dançar hoje? Não posso! Não estou nem feliz e nem com medo, por que dançaria?
— Para comemorar nossa vitória...
— Para você, Vermelhinha, uma vitória, mas para mim, uma derrota. Não, não quero dançar, quero olhar o céu.
— Amanhã esquecerá tudo isso. Lembra o que Navalha falou? A Natureza é sábia!
— Vou precisar de algo muito especial para esquecer esta noite, Vermelhinha. Foi terrível para mim!
— Vai acontecer sim. Com certeza, pode esperar!
Vermelhinha falou para tranqüilizar a amiga, sem supor o quanto estava sendo profética.

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As chuvas finalmente chegaram para alegria das plantas, dos rios, das formigas, dos pássaros, das borboletas, da terra e até dos temíveis homens!
Madrinha aspirou com prazer o cheiro de terra molhada.
— Daqui há 3 dias teremos folhas novas. Acabou a crise. Vamos novamente abarrotar nossos silos.
Chamou as encarregadas da limpeza do formigueiro:
— Levem os ovos para secarem ao sol. Limpem os depósitos para estarem prontos quando os gêneros chegarem.
— Tontinha, venha até aqui. - pediu.
— O que foi Madrinha? Fiz algo errado?
— Não minha filha. Dance para nós! Estou feliz!
E Tontinha dançou procurando esquecer todo o horror vivido, confiando na sabedoria da Natureza. Ansiando pela profecia da amiga. Alguma coisa muito boa estava para lhe acontecer. Finalmente sorriu.

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Não seria necessário fazer um longo percurso. Folhas novas em talos tenros, brotavam por todos os lados. Tênues raios de sol enxugavam o excesso de água na terra e dava brilho e calor às plantas. A vida ressurgia da terra.
Tontinha espreguiçou-se e não resistiu ao apelo de bem estar do seu pequeno corpo. Começou a dançar. Não viu nem sentiu o afastamento das companheiras. Era um momento só seu. Sua dança levava-a para longe de tudo e de todos.
Ele olhou-a, primeiramente surpreso, depois encantado, e finalmente apaixonado pela leveza, graça e alegria contagiante. Como era bela! Seria sua alma gêmea? Conseguia fazer na terra o que ele dominava plenamente no ar?
Quando Tontinha olhou para o céu e enxergou-o soube que Ele seria o verdadeiro amor de sua vida. Como era lindo! O seu equilibrista!
— Como é seu nome? - ele perguntou.
— Chamam-me de Tontinha.
— Como consegue dançar tão lindo, Tontinha?
— Não mais que você...
— Mora por essas bandas? - fingira não escutar o elogio que o envaidecia.
— Sim, para os lados de lá, apontava a direção do seu formigueiro.
— Nunca lhe vi...
— Saio muito à noite...
— À noite durmo profundamente para repor minhas energias. Passo os dias bailando. Para você ter uma idéia, nenhum outro pássaro consegue bater suas asas mais rapidamente que eu. Faço setenta batidas por segundo. - falava convencido na intenção de impressionar Tontinha.
— Você é um...
— Beija-flor, alguns me chamam de Colibri.
— Prefiro chama-lo de Beija-flor. Tenho “uma amiga” que beija também as flores... Ela tem um chapéu...
— Ela mora para os lados do sul?
— É. Como sabe?
— Conheço o jardim dela. Como sabe, alimento-me do néctar das flores e de pequenos insetos. Preciso das flores e ela as cultiva. Já vi seu chapéu florido...
— Eu sei. Onde fica sua comunidade? - precisava mudar rápido de assunto para que ele não associasse ela, às suas irmãs que praticaram aquele gesto de vandalismo contra o jardim conhecido de ambos.
Ele sorriu:
— Não vivo em comunidade. Construi meu ninho com musgo e teias de aranha. É bem acolhedor... Como falei anteriormente preciso dormir muito, trabalho bastante.
— Você faz o que exatamente?
— Transporto o pólen de uma flor para outra. Chama-se polinização.
— Existem muitos Beija-flores?
— Garota, você nem calcula. Quer que lhe cite alguns?
— Gostaria sim.
— Veja bem. Tem o beija-flor de dorso roxo. Beija-flor de tufinho vermelho, beija-flor ruivo, beija-flor cometa, beija-flor sílfide, beija-flor dourado de bico curvo, beija-flor de popelaire, beija-flor brilho de fogo, beija-flor estrela, são tantos que às vezes esqueço os nomes...
— E você qual é?
— Eu? Sou o beija-flor abelha, o menor de todos, só tenho 5cm de comprimento, isso lhe desagrada? - estava um pouco acanhado. Perdera a empáfia inicial.
— Ao contrário. Também sou pequena.
— Mas uma pequena linda! Já lhe disseram isso antes?
— Bem... acho que não. - falou timidamente.
— São cegos? Você é linda! Trabalha em que Tontinha?
— Sou operária.
— Gosto de sua profissão.
— Mas eu queria voar como você.
— Para que deseja voar?
— Para ir ver minha mãe.
— E quem é sua mãe?
— A lua.
— Ah, é linda também, assim como a filha...
E mudando de tom:
— Se quiser posso leva-la. Sente medo de alturas?
— Acho que não. E estando com você...
— Não sentirá receio. Vôo em todas as direções, para a frente, para cima, para baixo, dou marcha ré e pasme Tontinha, fico parado no ar. Veja.
E falando assim parou completamente no ar.
— Você é maravilhoso! É único! Como consegue?
— É fácil, sou um beija-flor. Em compensação não saberia fazer o que faz no solo.
— Posso lhe ensinar...
— Prefiro vê-la dançar...
— Tenho que ir, estou bastante atrasada...
— Posso lhe encontrar de novo, Tontinha?
— Você quer?
— É o que mais quero. Então, vejamos, amanhã a essa mesma hora, aqui nesses hibiscos, pode ser?
— Claro. Estarei pontualmente na hora marcada. Até amanhã Beija-flor.
— Até amanhã Tontinha.
Quando ela já ia um pouco distante, ele gritou:
— Tontinha?
Ela virou-se:
— Vai pensar em mim?
— Para o resto da minha vida.
E saiu correndo, envergonhada das próprias palavras.
Ele sorriu:
— Meu velho, acho que você está completamente apaixonado por essa encantadora Tontinha.

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Finalmente alcançou suas irmãs. O chão já estava completamente atapetado de folhas cortadas.
— Que vida sem sentido. - pensou.
Procurou Vermelhinha em meio a centenas de formigas.
— Vermelhinha, aconteceu aquilo que você previu, foi maravilhoso, devo a você.
— Aconteceu o que Tontinha?
— Ele! Conheci-o hoje.
— Quem é Ele?
— Em princípio pensei que fosse um equilibrista. Não, não é. É um beija-flor.
— Beija-flor? É bonito?
— Bonito? É lindo! Nem o sol, nem a chuva, nem o orvalho, nem as rosas amarelas se comparam a ele.
— Onde o encontrou?
— Nos hibiscos, aqueles que passamos, lembra?
— Vocês se falaram?
— Não só falamos. Dancei para ele. Ele, bailou no ar para mim e vamos nos encontrar novamente. Prometeu-me um vôo. Mora em um ninho, também construído por ele...
— Estou tão feliz por você amiguinha!
— Eu sei Vermelhinha, eu sei. Espero que também conheça alguém, você não imagina a felicidade que se sente em amar. Acho que o mundo fica colorido! Sinto vontade de gritar para todo o formigueiro minha felicidade. Estou até achando Feroz e Implacável simpáticas...
Vermelhinha não conteve uma gargalhada.
— Cuidado Tontinha para não ficar além de tonta, boba. Achar essas duas malvadas, simpáticas?
— Tenho pena delas. Não amam um beija-flor.

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Começava assim uma fase nova na vida de Tontinha. Cada dia que passava mais bela ficava. Seus olhos brilhavam e mais ainda, quando se aproximava a hora de encontrar com o seu querido beija-flor.
Passavam horas juntos. Ele no ar, ela na terra. Descobriam gostos idênticos, afinidades.
— Gostaria de conhecer meu ninho, Tontinha?
— Eu adoraria andar no lugar que embala seus sonhos.
— Posso leva-la em minhas costas...
— Não é necessário. Prefiro ir com você em um vôo mais alto. Eu subo em árvores, esqueceu?
— Claro, claro, queria poupa-la do esforço, é tão alto onde moro...
— Quanto mais perto do “meu céu” melhor para mim.
— Ama tanto o céu assim?
— Mas se é lá que mora a minha mãe?
— Tem razão Tontinha.
— Quer vir amanhã à noite? Pode sair?
— Mas se a noite, precisa dormir...
— Algumas horas a mais ou a menos não vão fazer diferença. Você gosta de doces Tontinha?
E ela contou para ele o quanto saboreara a bolinha “feita de nuvem” doce e gelada, da garota do chapéu florido.
— Pois amanhã vou lhe fazer uma surpresa, querida.

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— Vermelhinha, hoje vou conhecer o ninho dele, e saber qual é a surpresa que ele me preparou.
— E o grande vôo? Quando será?
— Ainda não estou preparada amiguinha. Quero subir com as minhas pernas ao encontro dele.
— Quando vou conhece-lo Tontinha?
— Amanhã, Vermelhinha. Falo tanto em você que ele até já lhe conhece...
— Contou para Navalha?
— Sinto um pouco de receio, será que ela aprovaria?
— Quem sabe? Navalha é tão imprevisível...
— E se ela não aprovar?
— Você desistiria dele?
— Nunca! Já lhe disse, Ele é o amor da minha vida, se suporto esse trabalho monótono, feio, esse perigo constante em que vivemos, perigo para todos os lados, vindo dos homens, do fogo, das nossas próprias irmãs, é porque tenho o amor dele.
— Como você está apaixonada, amiguinha...
— Está dando para notar?
— Só um cego não vê.

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Era uma bela noite de lua nova. Tontinha esgueirou-se de mansinho.
Andava apressada. Não gostaria de chegar atrasada. Navalha acompanhava-a mantendo uma distância discreta. Assumira um compromisso “pessoal” de zelar por quem lhe salvara a vida. Sabia os perigos noturnos, sabia também do destemor que os jovens sentem pelos mesmos.
Já percebera algo estranho no comportamento da formiguinha. Guardara para si mesma suas dúvidas e apreensões.
Tontinha parara. Navalha ouviu um leve bater de asas e ficou atenta. Era um beija-flor.
— Estranho - pensou - por que estaria acordado a esta hora da noite? Beija-flor não é um pássaro noturno, a coruja sim...
Agora a pequena ave bailava por sobre Tontinha. Esta encaminhava-se para uma árvore e dava início à subida. O beija-flor indicava-lhe o caminho. Navalha entendeu imediatamente.:
— Estão apaixonados, não resta a menor dúvida, qualquer um pode perceber. Mas são espécies diversas... não pode dar certo.
Interrompeu seus pensamentos para dar vazão a um riso incontido.
— Imagine só se Madrinha souber. Vai ter um ataque de nervos. Mas vindo de Tontinha, nada mais me surpreende... Ela é realmente uma estranha entre nós. Nasceu formiga por acaso...
Olhou detidamente para o beija-flor.
— Como é belo! Formam realmente um lindo casal.
E sentou-se em uma folha larga de mamona decidida a espera-la.

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Tontinha finalmente alcançou o ninho feito por seu amado. Notou o cuidado que ele tivera em arruma-lo e limpa-lo para a sua visita.
— Como é belo aqui em cima. Moro em sub-solo, não tenho a visão de uma paisagem como esta.
— Não quer saber qual a surpresa que reservei para você?
— Claro que quero, mas perdi-me admirando sua casa, sua arquitetura, sua paisagem. Qual é a surpresa?
— Trouxe néctar. Néctar de flores para você. Sei que aprecia mel...
E abaixando-se, esperou, pacientemente, que ela sorvesse gota por gota o néctar açucarado, guardado em seu bico.
— Gostou querida?
— Nunca provei nada parecido sequer, é divino. Ah também lhe trouxe um presente, ou melhor uma lembrancinha.
E lhe entregou um minúsculo ramo de alecrim perfumado.
— Para perfumar sua casa...
— Nossa Tontinha, pois agora é sua também. Como conseguiu? É tão pesado...
— Sou pequena mas sou forte.
Ele aspirou o perfume que se desprendia das folhas.
— Vou guarda-lo para sempre.
Agora olhavam a lua, calados, juntinhos, no aconchego do ninho.
— Gosto de sua mãe quando fica magrinha...
— Eu também.
— Por que ela engorda?
— É uma tentativa em vão de engravidar. Quer ter pequenas luas...
— E você? Não é sua filha?
— Adotei-a como mãe, senti tanta pena dela...
E contou sua atração pela lua, seu desapontamento, e finalmente sua compreensão pelo destino dela.
— Eu duvido que uma filha legítima seja tão boa e bela quanto você!
— Acha-me realmente bela?
— Mais que tudo! E olhe que conheço uma variedade enorme de flores. Nenhuma se compara e nem possui a sua beleza.
— Também não acredito que outro pássaro se compare a Você. É grande o seu ninho...
— Construi-o pensando nos filhos, cada beija-flor tem dois filhotes por ninhada...
Parou bruscamente.
— O que houve? Por que parou? Por que parece triste?
— Venha mais para perto de mim, Tontinha. - pediu.
Ela aconchegou-se mais ao seu corpo.
— Querida, nunca poderemos ter filhos. Continuará me amando, mesmo assim?
— Vou amar você até o último dia de minha vida. Se o meu destino é igual ao de minha mãe Lua, vou aceita-lo com resignação. E podemos adotar filhos sim. Todas as flores do mundo em que vivemos.
— E você Tontinha, será a minha Rainha das Flores. Olhe querida parece que sua mãe está sorrindo.
— Ela sempre sorri para mim. Hoje, sorri para nós dois.
— Seria possível você ficar para dormir comigo?
— Se prometer que me acordará bem cedo para eu chegar sem que notem a minha ausência, é possível sim.
— Fique tranqüila, muito antes de sua mãe recolher-se, eu acordo você. Boa noite meu amor!
— Boa noite meu querido.
E mergulharam em sono profundo.

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Navalha impacientava-se.
— Além de tonta é louca. Vai perder a hora. Não gostaria que fosse presa de novo. Nasceu para ser livre, mas precisa ter um pouco mais de responsabilidade. O namorado deve ser outro tonto aéreo igual a ela. Não devia retarda-la, se Feroz e Implacável descobrirem...
Olhava para a árvore na esperança de vê-la descer. Nada!
— Mas como posso zangar-me com ela? Quem diria, tão pequenina e tão corajosa! Cortar as patas logo de quem? Justiceira! Que humilhação! Tão poderosa que era! Danadinha, essa Tontinha.

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— Tontinha, Tontinha, acorde.
Ela espreguiçou-se.
— Dormiu bem?
— Como há muito não dormia, e Você?
— Fiquei um pouco preocupado com a hora mas dormi um pouco sim. Venha, vou acompanha-la.
— Não. Precisa dormir mais. Sei o quanto gasta de energia durante o dia. Vou sozinha. Ando mais rápida, sem ser observada... Deixe lhe olhar mais um pouco. Quero gravar suas cores, sua plumagem embaixo do pescoço é do mesmo tom de Vermelhinha. Posso levar uma peninha vermelha para ela?
— E para você não quer uma?
— Posso?
— Tire quantas quiser. Nascem outras...
— Vou tirar duas e fazer dois adereços. Um para mim, outro para minha amiguinha. Vão ficar lindos!
O beija-flor levantou a cabeça e Tontinha escolheu duas pequenas penas, mais parecidas a plumas. Arrancou-as.
— Doeu?
— Nem senti.
— Estou indo.
— Vamos nos encontrar hoje nos hibiscos?
— Estarei lá com Vermelhinha. Quero que a conheça. É minha melhor amiga. Foi ela quem previu sua chegada a minha vida. Mais uma vez agradecida pelo néctar.
— Também agradeço o alecrim.

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Tontinha desceu apressadamente a árvore. Como se atrasara. Ao lado dele perdia a noção do tempo.
Levantou a cabeça e deu com Navalha.
— Você aqui Navalha? Olhe posso explicar...
Sem sentir começara a rodar em círculos, visivelmente perturbada.
— Não precisa me explicar nada. Já percebi tudo. Estou aqui para que nada de mal lhe aconteça. Apresse-se, não vai querer que seu segredo caia nos ouvidos de Feroz e Implacável, vai?
— Por nossa Rainha, não!
— Então vamos.
Só então reparou as plumagens rubras.
— E o que é isso em sua boca?
— São plumas, vou fazer dois colares, um para mim, outro para Vermelhinha.
— Deixe que eu carrego para você. Está ventando muito, mal consegue segurar seu corpo ao chão...
Andava apressada. De repente parou, soltou as plumagens, subiu em uns arbustos.
— O que foi Navalha? Viu algum inimigo?
— Não quer fazer colares? Vai precisar de fios...
E desceu já carregando um fio de fibra finíssimo, nas mandíbulas.

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Vermelhinha e Tontinha, ambas de colares com pluminhas vermelhas preparavam-se para sair.
Feroz cochichou para Implacável:
— Está vendo? Estão se organizando, usam até emblemas para se distinguir das demais. O que será que têm em mente?
— Quem sabe! E Madrinha nem percebe. Coordenadora quer estar bem com Madrinha, enquanto isso elas vão formando adeptas. Veja, quantas estão admirando o “símbolo”... vermelho...
As formiguinhas, deslumbradas com o adereço que “dançava” ao vento, olhavam de perto, pegavam, procuravam perfumes, queriam para si também.
— Como conseguiu Tontinha? Quero um também.
— Eu também quero. - dizia uma.
— Troco por qualquer coisa que deseje. - pedia outra.
— Calma, pedia Tontinha, aos poucos farei para todas, seremos um time...
Fofinha bateu patinhas:
— Ôba teremos um time “O time das pluminhas vermelhas”.
— Cuidado Tontinha, - segredou-lhe Vermelhinha - vai deixar o pescoço do seu namorado totalmente depilado.
— Esqueceu da Natureza amiguinha? Nascem outras.

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Um ano se passou. A amizade entre os três amigos solidificou-se. Viam-se todos os dias e as noites, Tontinha, com a cumplicidade de Vermelhinha e Navalha ficava ao lado do seu Beija-flor. Amavam-se perdidamente, como no primeiro dia da descoberta do amor que sentiam um pelo outro.
Navalha aceitara ser apresentada ao pequeno beija-flor e gostara dele. Dissera:
— É uma boa ave!
Só fez objeção ao seu nome:
— Poderia troca-lo. Não gosto de beija-flor, abelha. Logo quem, abelha? - falava com desprezo.
— Não é o nome dele, Navalha! É a espécie, respondia-lhe Tontinha com paciência.
— Acho que Navalha está ficando velha, Vermelhinha... - dizia para a amiga.

Todo dia eram feitos dois colares de pluminhas vermelhas e assim, setecentas e poucas formigas já os ostentavam.
Reuniam-se em círculos no formigueiro, improvisavam brincadeiras.
Moram também nos formigueiros, além dos afídios, vários tipos de insetos. Cada espécie desenvolve uma tarefa específica. Uns se encarregam de manter limpo o formigueiro. Outros fabricam líquidos açucarados, um dos alimentos prediletos das formigas.
Além desses, convive com elas uma espécie de “bobo da corte”. Sua única tarefa é brincar com as formigas, mantendo-as felizes.
Reuniam-se e improvisavam brincadeiras.
Pernalta sugeriu:
— Nosso time cresceu consideravelmente. Por que não elegemos uma líder para ele?
Todo o time aprovou a idéia de Pernalta.
— Quero ser a líder. - pediu Vermelhinha.
— Acho que deveria ser Tontinha a líder, pois ela é quem nos fornece a materia prima para os colares. - disse outra.
— Mas quem fabrica os colares é Mão de Fada...
— Eu tive a idéia. - lembrou Pernalta.
Cabeça Grande pediu silêncio:
— Por que não fazemos uma votação? Seria mais justo!
Aprovaram todas a idéia.
Foram providenciar os “votos”. Cada formiga recebeu uma folha.
Os bobos da corte foram buscar uma velha casa de marimbondos, há muito desativada para servir de urna.
Cabeça Grande pigarreou e explicou:
— Cada uma de vocês, marca na folha sua preferência. A mais votada por nós, será nossa líder!
— Tem que ser votação secreta?
— É o certo. Assim, uma não influenciará a outra.
Fez-se silêncio.
Cada formiga marcava sua preferência e colocava seu voto na urna.
Quando todas votaram alguém perguntou:
— Quem vai fazer a apuração?
— Eu faço. - falou Desbotada.
E as folhas foram desdobradas, uma a uma.
Desbotada gritava:
— Navalha, Navalha, Navalha, Navalha, Navalha...
E assim, sucessivamente, a velha guerreira, ganhara, por unanimidade, a eleição. Era a líder!
Interessante que o seu nome não havia sido sugerido, mas fora escolhido por todas.
Navalha enxugou uma lágrima. Não havia mais como disfarçar, estava emocionadíssima.
Agora as formiguinhas batiam patas e davam gritinhos festivos. Foram abraça-la.
Tontinha aproximou-se da velha formiga:
— Navalha, vai ter que usar o nosso colar, agora que é a líder do grupo.
— Usarei Tontinha, usarei sim, com muito orgulho!
E o beija-flor arrancou sua mais bela pena vermelha para “coroar” a Velha Guerreira!

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O outono despediu-se deixando sua marca macia e fofa no chão.
Veio o inverno. Os silos estavam abarrotados. Não precisavam trabalhar já que havia reservas suficientes. Divertiam-se protegidas pôr sua própria arquitetura subterrânea e acolhedora.
Chegou a Primavera festiva.
O beija-flor sussurrava para sua amada:
— É essa a nossa estação querida! Pôr que não nos casamos entre as flores?
— Preciso crescer um pouco mais meu amor. Casaremos na próxima Primavera, prometo!
— Será a noiva mais bela do mundo!
E Tontinha abaixava os olhos, não para olhar o chão, mas para esconder a emoção que sentia.
E finalmente, chegou o Verão. Trouxe com ele um flagelo, o El Niño.
A temperatura subiu acima dos níveis normais. A Natureza ressentia-se em frente ao fenômeno. Animais morriam nos campos, por falta de água e vegetação. O calor era insuportável.
O depósito da “Comunidade da Prosperidade” estava novamente em baixa.
Madrinha convocou outra reunião.
— Vou ter que novamente, exigir um grande sacrifício de todas vocês. Os riachos secaram, os campos também. Não há vegetação! Procurem os rios. E se for preciso atravessa-lo, atravessem, mesmo que para isso seja necessário que algumas morram. É a nossa lei! A Comunidade deve continuar, apesar de tudo!
As formigas entreolharam-se. Estavam com medo. Sabiam contado, por formigas mais velhas, que em outra seca, anos atrás, formigas vivas serviram de pontes para que as outras companheiras, passando por cima de seus corpos, atingissem o outro lado do rio. Era cruel, desumano, mas inevitável.
Tontinha abraçou Vermelhinha:
— Amiguinha, se eu morrer quero que diga ao meu beija-flor que estarei sempre ao lado dele, mesmo distante...
— Não vai morrer sua boba. Esquece que somos as últimas da fila? Seremos as últimas a passar...
— Prometa Vermelhinha, por favor. - suplicou.
— Prometo. - respondeu solene.

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Já andavam há duas horas sem que aparecesse nenhuma planta, nenhuma lagoa ou arroio. No máximo, algum cacto perdido na imensidão da seca.
A bela fazenda de trigo, antiga fornecedora de grãos para as formigas, pródiga plantação da região, parecia um imenso deserto tórrido, habitado por fantasmas ressecados, abatidos, curvados no solo. Todo o trigo havia secado.
O rio se aproximava. Não mais aquele rio onde embarcações desciam e subiam a mercê das correntes. Parecia um rio insignificante para os homens, inútil por estar raso. Mas para as pequenas formigas, seu volume de água assustava. Como atravessa-lo?
Coordenadora ordenou que parassem.
— Procuraremos a parte mais rasa. Faremos pontes com nossos corpos. Quanto mais rápido andarem, maiores chances teremos de alcançar as margens. Reparem para o outro lado do rio. A vegetação está plena. Chegaremos lá. Boa sorte para todas!
As formigas andavam pelas partes quase secas do leito, contornavam as depressões, subiam em pedras, voltavam, evitavam as correntezas.
Perto da margem o volume de água era mais denso. As formigas alinhavam-se, qual uma imensa corda vermelha. As outras começaram a passar por cima de seus corpos, alguns já cadáveres.
— Corram, corram, aumentaremos nossa chance. - gritava Coordenadora.
Muitas já haviam alcançado a margem. Incentivavam, orientavam, tentavam ajudar.
Tontinha e Vermelhinha eram as últimas da fila. Estavam se saindo bem. A margem já se aproximava, bastava atravessar umas trinta formigas e estariam à salvo.
Uma pequena correnteza trouxe com ela um galho seco. Esse chocou-se contra Vermelhinha desequilibrando-a . Uma ondinha passou por cima dela. Tontinha virou-se e percebeu o perigo. Vermelhinha havia caído. Tentou puxa-la para cima. Tateou nas águas, segurou alguma coisa, e puxou com força. Era o pequeno colar que saíra do corpo da amiguinha, com a força da água. Procurou-a febrilmente nas águas. Em vão!
— Vermelhinha, Vermelhinha. - gritava.
Coordenadora pensou rápido: devo salvar essa tonta! Madrinha não me perdoará se não o fizer...
— Venha Tontinha, ela já deve ter afundado. Salve-se!
— Solte-me, preciso procurar Vermelhinha. Pode estar viva. Vermelhinha. - continuava gritando.
— Pare com isso idiota, está colocando minha vida em risco...
— Vá embora. Prefiro ficar a voltar sem ela. Solte-me.
— Se quer assim, lembre-se que pediu...
E deu-lhe um soco. Tontinha desmaiou e foi trazida para a margem. Estava salva.

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— Como está ela Madrinha?
— Mal, Navalha, muito mal. Não fala com ninguém, não chora, não come, não sai, não quer ver a mim nem a você. Parece que com a morte da amiga, alguma coisa morreu dentro dela também.
Colocou o colar de Vermelhinha no pescoço e não o larga nem quando vencida pelo cansaço adormece.
— Eram mais que irmãs...
— Sim. Eram amigas.
— Como poderemos ajuda-la?
— Como diz você: só a Natureza e seu grande amigo, o Tempo, poderão fazer alguma coisa por ela...
— Tem razão Madrinha.
— Gosta muito dela não é Navalha?
— Salvou-me a vida. Mostrou-me o outro lado da Morte, o seu oposto, a Vida. Sou a líder do grupinho dela. Aproximou-me das formigas que me odiavam com justa razão, pois não me entendiam. E eu, confesso, nada fazia para ser entendida por ninguém, presa à minha revolta, de minha própria profissão. Devo-lhe muito Madrinha! Você mesma, seja sincera, antes de Tontinha, estaria conversando aqui comigo?
— Confesso que não! Admirava-a, mas julgava-a incapaz de um gesto nobre. E no entanto...
— Também isso Madrinha, devo a essa “grande” pequena companheira...
— Por nossa Rainha, Navalha, ela ficará boa!
— Será Madrinha? A nossa Tontinha, a alegria maior desse formigueiro, emudeceu! E eu com ela!

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Tontinha alheia a tudo que não fosse a dor e a saudade da amiga, passava os dias deitada, de olhos fechados, segurando entre as patinhas a pluma vermelha, única e última recordação da amiga.
Feroz e Implacável se aproximaram do leito.
— Está dormindo ou estará fingindo?
— Fingindo é claro! Quer despertar a piedade de todas...
— De mim não desperta. Ao contrário! Estou feliz por ter ficado livre daquela idiota. Era uma aberração no formigueiro, parecia mais uma cereja de tão vermelha...
— Eu vi quando ela caiu. Se eu quisesse, poderia pega-la, mas fiquei torcendo que esta aí também se fosse...
— E você acha que Coordenadora permitiria que ela afundasse? É uma puxa-saco de Madrinha...
— O que importa, é que de uma já nos livramos. Só falta agora esta morrer também, para tudo aqui voltar a ser como antes...
— E vamos poder cortar o jardim da garota...
— Aquela eu não esqueço!
— Onde já se viu coisa igual? Proibido CORTAR O JARDIM DA MENINA DO CHAPÉU DE FLORES! - imitava a voz rouca de Madrinha, dando entonações que a ridicularizavam.
— Vamos deixar tudo rente ao chão. Talo por talo!
— Eu odiava Vermelhinha!
— Eu também. Mas esta aí eu só descanso quando não mais existir. Chamou-me de Vândala. O que é Vândala?
— Sei lá! Alguma espécie de abelha...
Tontinha a tudo escutara mas permanecia de olhos fechados e muda
— De que adiantaria revidar? Traria a amiga de volta?
Pensava:
— Por que Feroz e Implacável continuavam vivas e más, enquanto sua amiga desaparecera para sempre nas águas fundas do rio? Era justo? Finalmente o que era justiça? Quem a ditava? Nossa Rainha? Não! Não conseguiu evitar a passagem pelo rio... Mas a JUSTIÇA...
— Preciso entender, tenho que acha-la, deve-me uma explicação... senão a mim, a Vermelhinha. Quem a teria levado? E por que?
Levantou-se. Agitou os colares. Pensou:
— Preciso usar um terceiro, com uma peninha preta, pois é como vejo a vida agora. Sem luz. Negra!
Não sabia, mas instintivamente, imitava os seus inimigos: queria vestir luto.
Lembrou-se do beija-flor.
— Vou pegar uma peninha preta com ele... Onde andará? O que estará pensando de minha ausência? Certamente deve imaginar que não o amo mais. Como se fosse possível não ama-lo...
Tomou uma decisão.
Navalha e Madrinha ainda conversavam quando a viram se aproximar.
— Olhe Navalha, está vindo até nós. É um bom sinal. Começa a reagir em frente à dor...
Acercaram-se dela.
— Está melhor minha filha? - perguntou-lhe Madrinha - Quero que saiba que também estou sofrendo, Tontinha.
— Eu gostava muito de Vermelhinha. - falou Navalha.
A formiguinha olhou longamente para as duas velhas formigas.
— Não Madrinha não estou melhor.
Virou-se para Navalha:
— Eu sei sim, e ela também sabia o quanto você gostava dela e a protegia.
— Agora precisa comer alguma coisa, minha filha. Está tão abatida...
— Não quero comer. Vim me despedir de vocês.
— Como? - a pergunta era simultânea.
— Vou embora.
— Para onde Tontinha?
— Não sei Madrinha. Vou em busca de uma resposta para minhas dúvidas.
— Que resposta?
— Preciso entender a Justiça, como entendi Mamãe Lua...
— O que tem a Lua a ver com isso?
— Quando a vi amei-a. Depois me senti enganada por ela. Afastei-me dela. Fiquei revoltada, amarga, nem dançar mais eu queria. Navalha me explicou. Ela não me enganara. Era estéril. Voltei a ama-la. Agora preciso descobrir porque Vermelhinha morreu, enquanto Feroz e Implacável continuam vivas...
— Mas Tontinha...
— E o seu beija-flor?
Na tentativa de demovê-la de partir, Navalha lembrava-lhe a ave amada. Esperava assim convencê-la a ficar.
— Vou despedir-me dele. E se um dia eu “achar” a resposta que procuro, eu volto. Desejem-me boa sorte. - pediu
Madrinha abraçou-a fortemente:
— Para onde pretende ir minha filha?
— Em frente Madrinha, sempre em frente...
Madrinha sorriu. Tontinha “era ela” quando tinha a sua idade, só que era dotada de outra decisão e determinação que ela não possuíra.
— Não vou impedi-la minha filha. Vá em busca de suas respostas.
E lembrando-se de algo, falou baixinho:
— Se um dia tiver oportunidade de subir em uma vela de barco e ver o mar, volte para me contar...
Não continuou falando, pois sua voz estava embargada.
— Prometo Madrinha. Adeus!
Virou-se para Navalha.
— Querida amiga, prometa-me que nunca vai deixar uma formiga cortar sua cabeça. Que seja você a cortar a dela.
— Prometo-lhe Tontinha.
— Adeus Navalha.
— Adeus não, até um dia Tontinha. Sei que voltará e ainda a veremos dançar...

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Foi em direçào aos hibiscos. Lá estava Ele! Como emagrecera.
— Querida, Você voltou...
— Vermelhinha morreu.
— Como? Por que? Era tão sadia...
Contou-lhe tudo. Quando terminou ele perguntou:
— Por que não me avisaram que iriam atravessar o rio? Eu teria levado ambas para a outra margem...
— Não tivemos tempo. Foi uma decisão drástica, de última hora...
— Pobre Vermelhinha.
— Quero um favor seu...
— O que quiser minha querida...
— Uma peninha preta...
— Entendo.
E dizendo assim, arrancou uma pequena pluma e lhe entregou.
Ajudou-a a amarrar juntamente ao lado da outra vermelha do colar de Vermelhinha. Usava agora dois colares e três plumas.
— Tenho lhe procurado feito um tonto. Não sabia exatamente, onde morava. O vaga-lume, ele lhe conhece, já lhe viu dançando, fiquei com um pouco de ciúme, mostrou-me sua casa... Fui várias vezes lá. Não lhe via. Não podia entrar, por motivos óbvios... Permaneci aqui nos hibiscos. Sabia que viria. Nunca imaginei... Vermelhinha...
Calou-se.
— Vim despedir-me de você...
— Por que? Vai precisar do meu amor, solidariedade, consolo. Voltará a ser feliz um dia. Preciso de Você!
— Por isso mesmo. Não serei uma boa companhia. Vou lhe entristecer... Não sou mais a mesma... Preciso me encontrar novamente...
— E o nosso vôo? Nosso casamento? - estava desesperado.
— Ele acontecerá... E quando chegar a Primavera estarei aqui, como prometi um dia, para unir minha vida à sua...
— Mas se ainda estamos no Verão...
— Passará rápido. A Natureza é sábia.
— Vou com você!
— Não. Prefiro ir só. Busco uma resposta.
— Estarei aqui lhe esperando.
— Cuide-se. Eu voltarei.
— Até um dia minha Tontinha!
— Até um dia meu Beija-Flor!

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Andou firmemente para a frente. Não rodava mais em círculos. E nem dançava sua famosa coreografia que tanto impressionara ao pequeno beija-flor.
Chegou ao jardim da garota de chapéu florido.
Ali o calor abrasante não parecia tê-lo atingido.
Quedou-se longo tempo contemplando as flores.
A garota apareceu e cumpriu o mesmo ritual já visto.
— Você nunca irá saber. Salvei seu jardim da sanha de Implacável e de Feroz. Mas em lhe proteger de um sentimento de perda, contribuí para a morte de minha melhor amiga.
Acabara de conhecer o complexo de culpa.
— Adeus menina! Seja feliz com suas roseiras. Cuide bem delas, para que a morte de Vermelhinha não tenha sido em vão!

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— Já soube da novidade Implacável?
— Que novidade Feroz?
— A tonta foi embora...
— Para onde?
— Em busca de uma tal de Justiça...
— É alguma tanajura?
— Qual nada! Como você é burra Implacável, a Justiça é alguma coisa que não existe, mas as formigas tontas pensam que existem e aí ficam na esperança de encontra-la...
— Ela faz o que?
— Dorme... estou brincando com você! Se não existe, como pode fazer alguma coisa, Implacável?
— Tem razão Feroz. Quer dizer que estamos finalmente livres da tonta?
— E com a fé em nossa Rainha, para sempre.
— Então já podemos cortar o jardim da “princesinha” chata do chapéu florido?
— E Navalha?
— Está caduca, não notou? Usa aquele tal colar, chora, faz discursos, só falta perder o olfato...
— Se perder é bem capaz de ir bater em outro formigueiro...
— Matam-na na hora. Com a fama que tem.
— Seria ótimo para nós duas. Ela morrendo, seríamos reconhecidas, finalmente.
— Podemos ir à noite...
— Para que esperar? Não vejo a hora de cortar aquele jardim, folha por folha...
— Folha não, talos. Vamos corta-lo rente ao chão, assim não nascerá mais...
— E quem vai carregar?
— Não vamos carregar nada. Não somos operárias, somos guerreiras, esqueceu?
— Vamos então?
— Vamos.

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A jovem senhora sentou-se no banco para admirar o trabalho da sua garotinha. Aquele dia, nunca o esqueceria. Acabara de deixar a filha na escola e já sentia a sua falta, sempre às voltas com suas flores, seu riso espontâneo, seu chapéu florido.
Seu primeiro dia de aula. Será que se adaptaria?
Sorriu ao lembrar da recomendação da garota, ao se despedir:
— Mamãe, não esqueça de regar o meu jardim...
Molhou as plantas, cortou as folhas secas, observou se havia lagartas. Estava tudo bem.
Sentara no banco para admirar as borboletas.
— São belas, mas se não tomarmos cuidado, em breve teremos as temíveis lagartas...
Olhou para a roseira e viu uma rosa cair ao chão.
— Estranho, - pensou - por que teria caído? Acabei de olhar e não havia nenhuma lagarta...
Outro botão amarelo rolou no chão...
Vou até lá, alguma coisa está errada.- pensou.
Feroz e Implacável alheias ao perigo que corriam, em se exporem à luz do dia, continuavam absorvidas em reduzirem o belo jardim em um amontoado de folhas e caules inúteis.
— Ah, são vocês suas malvadas? Não respeitam mais nem a luz do sol?
Ficaram estáticas. Sabiam a gravidade do perigo. O inimigo não teria compaixão por elas.
— Não vou permitir que destruam o que foi feito com tanto amor, por minha filhinha.
E com a mesma tesoura que instantes atrás cortara os galhos e folhas secas, cortou as duas formigas pelo meio.

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Tontinha havia chegado a um imenso parque. O calor era o mesmo dos campos secos, mas várias pessoas sentadas em bancos sombreados, não pareciam se incomodar muito com a estação quente.
Crianças corriam por todos os lados. De suas mãos pequenas, escorregavam pipocas, algodão doce, sorvetes... Não faltava comida no chão.
Tontinha depois da longa caminhada, mesmo contra a sua vontade, sentia fome. Provou os doces e os salgados.
— Por que precisamos morrer, só para não quebrar tradições? Quanta comida aqui no chão, e no entanto...
Estava cansada. Subiu em um poste e ficou observando o movimento na praça.
Senhoras bem parecidas com a mãe da garota do chapéu florido, entretinham-se em conversas, enquanto seus filhos distraíam-se nas águas da fonte, nas estátuas da praça, subindo nas árvores.
De repente Tontinha avistou um beija-flor azul. Como era lindo também, devia ser algum tio do seu namorado. Embora de cores diversas e tamanho superior, era um beija-flor!
As crianças também viram. A ave planou no ar por sobre uma flor. Os meninos olhavam o beija-flor e falavam entre si.
Tontinha pensou: criança é boa, gosta de pássaros e de flores...
Notou que os meninos catavam “coisas” no chão. E começaram a apedrejar a avesinha. Lembrou-se imediatamente de Madrinha e suas primeiras “lições”:
— Eles crescem, não crescem? - ela dissera.
Estes nem haviam crescido ainda e já mostravam a maldade dentro de si.
— Fuja beija-flor, fuja deles. - gritava.
Olhou para as mães dos meninos na esperança que estas evitassem o apedrejamento. Ao contrário. Haviam parado de conversar e acompanhavam, cada qual, a pontaria dos filhos, com interesse materno.
— Fuja beija-flor, fuja. - gritou angustiada.
— Quem é você? - ele perguntou.
— Sou Tontinha, amo seu sobrinho.
— Fique tranqüila Tontinha, não me atingirão. Agradeço-lhe o cuidado comigo. Dê lembranças minhas ao seu namorado.
E ganhando altura desapareceu entre as árvores.
Os meninos frustrados voltaram às suas brincadeiras e as elegantes senhoras às suas conversas.
Tontinha estava triste. Por que quiseram apedrejar o inofensivo pássaro? Que mal ele fez? E por que aquelas mulheres não proibiram seus filhos do gesto insano?
Mais adiante um grupo de meninas armavam um círculo. Rodavam e cantavam de mãos dadas. Pareciam todas com a menina do chapéu florido. Novamente as jovens senhoras pararam de conversar para admirar a brincadeira das filhas.
— Elas também sabem rodar. - constatava Tontinha.
Distraiu-se vendo as amplas saias engomadas que usavam, em movimento.
— Por que nós, as formigas, não usamos roupas? É tão lindo!
Uma garota, sem saias engomadas, sem cabelo enfeitado com laços, sem sapatinhos de verniz, ao contrário, descalça, se aproximou da ciranda. Usava um vestido simples, rasgado, meio encardido.
— Quero entrar na roda. - pediu.
Uma senhora levantou-se rápido do banco, indo em direção a garota. Gritava:
— Saia! Está suja, vai contaminar nossas garotas...Afastem-se dela meninas...
As meninas das saias engomadas, afastaram-se rápidas da garota do vestido encardido e foram “armar” sua ciranda mais adiante.
Tontinha pensou que a garota do vestido encardido ia chorar. Mas não! Parecia acostumada a rejeição. Agora abaixava-se e catava os restos de pão, pipocas, balas meladas e sujas de terra.
— Não é justo, não é justo. - repetia para si mesma Tontinha.
Desceu do poste.
— Vou embora deste lugar. Certamente é aqui a “casa” da Injustiça, preciso procurar a Outra...
Passou todo o verão procurando respostas para suas dúvidas, sem encontrar.
O outono voltou. Novos tapetes de folhas secas eram formados de diversas cores. Como era belo! Pisava nas folhas amareladas e lembrava da maciez do “seu ninho” .
— Como era bonito e acolhedor nosso ninho. - lembrou.
Sentia saudades do namorado, de Navalha e de Madrinha.
— Não posso voltar ainda, preciso descobrir porque Vermelhinha morreu, enquanto Feroz e Implacável continuam vivas!
Atravessara toda uma cidade e seguia uma longa estrada, feita da “massa” que tanto irritava Madrinha,
— Como é quente! E que cheiro desagradável.
A estrada asfaltada ia dar em uma Capital próspera e populosa. Carros, ônibus, metrôs, pessoas andando apressadas, edifícios, aviões cortando o céu, um barulho ensurdecedor.
— Preciso tomar cuidado. Os perigos aqui são bem maiores e ao contrário dos campos a predominância é de pessoas... e elas, mesmo sem as suas tochas, são perigosas...
Uma semana passou. Tontinha observava seus inimigos, correndo no trânsito, nas ruas, nos carros...
— Por que correm tanto? Procuram o que? Preciso descobrir algum gramado, senão vou terminar como eles, totalmente neurótica. Corro também o risco de perder meu olfato com este mau cheiro que paira no ar.
Referia-se ao monóxido de carbono.
Seu instinto procurava o verde. E este levou-a para um imenso campo plantado de grama.
— Finalmente! Finalmente encontrei algo que vale a pena ser visto. Como é verde e macio este solo.
Deitou-se no chão e adormeceu profundamente. Dormiu toda a manhã e parte da tarde.
Acordou ouvindo vozes distantes. Abriu os olhos e só então reparou à sua volta.
O campo era circundado de arquibancadas. Aos poucos esses lugares iam sendo ocupados por pessoas eufóricas, sorridentes, descontraídas.
— Serão as mesmas que avistei correndo para um lado e para o outro? Não deve ser! Estas vestem-se diferente das outras, parecem alegres e dão impressão que esperam algo especial. O que será? A Justiça?
Acompanhou curiosa o movimento crescente. Aos poucos o estádio estava lotado. Não sabia. As pessoas eram as mesmas, só vestiam suas roupas domingueiras.
— Por que olham insistentemente para o campo vazio? Serão adeptas do verde? Vêm só para admira-lo? E por que gritam, agitam faixas, bandeiras?
Alguns homens sérios, parecidos com os que andavam correndo, tomaram lugar no campo. Conversavam entre si. A multidão gritava frenética. Eles fingiam não ouvir. Mais gritos. E do sub-solo, tal qual formigas, surgiram homens vestidos de forma engraçada, que foram espalhafatosamente aplaudidos por um lado do estádio. Tomaram posições no gramado. Outro grupo saiu de “debaixo da terra”, novos gritos, aplausos, fogos espocavam no céu...
— Essas tochas explodem... se Navalha visse...
Olhou com atenção para os últimos homens que entraram.
— Por que se vestem com as cores dos meus colares? Não me conhecem, não conheceram Vermelhinha e nem têm acesso ao meu beija-flor. Por que então estão de vermelho e preto? Será luto? E por que são tão aplaudidos? Serão guerreiros? Deve ser isso, são guerreiros.
Os jogadores alinhavam-se. Flash explodiam luz, deixando Tontinha momentaneamente cega.
Agora todos cantavam compenetrados alguma música importante.
Um sujeitinho engraçado segurou um pequeno objeto, levou-o aos lábios e ouviu-se um apito. Os rapazes vestidos engraçadamente começaram a correr.
— Atrás do que corriam? Devia ser de algo muito importante. Quem sabe dessa correria desenfreada, dependesse a vida de todos? Certamente correm atrás da Justiça. - pensava.
Espichou-se. Precisava ver. E viu!
Não era a sua Mamãe Lua, quando ficava gorda no céu, mas possuía o mesmo formato dela, quando cheia.
— É uma bola! Correm atrás de uma bola! Madrinha estava certa! Como são tolos! E por que as Rainhas deles os levam a sério?
E pela primeira vez, desde que Vermelhinha se fora, sentiu vontade genuína de sorrir. Dos homens! E riu, riu, riu. Sentiu-se melhor com o desabafo.
— Divertem-se de fato, nem parecem os mesmos que nos perseguem.
Agora procurava entender a “filosofia” do que via à sua frente. Eles tinham um objetivo. Precisavam “encaixar” a coisa redonda dentro da trave. Parecia difícil. Brigavam entre si. Talvez se cada um ganhasse uma “coisa redonda” não precisassem sofrer tanto!
Posicionou-se ao lado daqueles que envergavam cores iguais aos seus colares. Eles corriam mais que os adversários, chutavam com força a “coisa”, mas esta, por algum motivo, não atingia a meta.
Cada tentativa dos vermelhos e pretos, a multidão aplaudia, jogavam beijos, batiam palmas, as mulheres atiravam flores no gramado.
A “guerra” havia terminado e ninguém saia dos seus lugares. Tontinha também esperava. Subira na trave para melhor observar a estranha batalha. Os guerreiros sumiram embaixo da terra.
Agora eles voltavam. Mudaram de lado. Mais gritos, aplausos, fogos.
E os rapazes vestidos de branco e preto conseguiram fazer a bola entrar na trave adversária.
— Não é justo, - pensou Tontinha - os de minhas cores estão correndo mais...
E algo muito estranho aconteceu com a multidão presente. Não mais aplaudiam os rapazes “vermelho e preto”, ao contrário. Xingavam, urravam, jogavam as tais garrafas, que os deixavam mais bobos ainda quando ingeridas, no verde gramado, tentando alcança-los.
— Por que fazem isso com eles? Estão se esforçando tanto! Pobres rapazes! Não é justo!
E foi-se embora. Não seria ali que a Justiça também morava.

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Andava já há algum tempo quando sentiu que a brisa mudara de cheiro e quando passava pelo seu corpo, dava-lhe uma sensação de frescor. O que seria?
E à sua frente, uma imensidão azulada, enfeitada com espumas brancas, apareceu aos seus olhos deslumbrados.
— É o mar de Madrinha! Como é grande!
Lembrou-se da promessa feita a essa.
— Preciso achar a vela. Subir na mesma e contar para Madrinha, um dia...
Foi até o cais. Uma corda (parecida com outra “trançada” por corpos de companheiras) segurava um barco à terra. Foi fácil passar por ela e alcançar a embarcação.
Subiu no mastro. Como era bela a vista do alto!
Perdeu-se na contemplação das águas. Deslumbrou-se fitando as ondas revoltas com suas molduras cacheadas de espumas brancas. Distraiu-se com o vôo das gaivotas, e quando deu por si, já estava nevegando.
— E agora? Não vou poder mais voltar! Não importa, é tão agradável a brisa marinha...
Um velho, muito bronzeado pelo sol, com um chapéu de palha surrado, levava a embarcação para longe da terra.
Seus gestos eram calmos e seguros. Olhou para o céu e avistou-a.
— Formiguinha, o que veio fazer aqui? Não vai encontrar terra firme para pisar, mas fará companhia a este velho solitário...
E foi cuidar dos seus afazeres...
Tontinha gostou dele. Observava-o . Gostaria de lhe falar, perguntar coisas, achar respostas para as suas dúvidas...
O barco singrava as águas. O velho sentou-se na proa. Abriu uma sacola, tirou um pão. Olhou para Tontinha e como se lembrasse de algo, esfarinhou um pedaço, jogou os farelos no chão.
— Venha formiguinha, não achará folhas aqui. Prove do meu pão...
Comia lentamente seu pão, olhando o horizonte. Seu olhar era sereno. Tontinha desceu. Comeu os farelhinhos e gostou. Ele sorria para ela. Parecia feliz
por ter sido entendido.
Quando acabou sua refeição, novamente foi à sacola e de lá retirou um cachimbo. Acendeu-o .
—Interessante, também ele usa “tochas”, mas não para matar os outros, usa-a na boca. Será que quer morrer?
Não, não parecia querer morrer. Parecia sim estar longe dali, como se sonhasse acordado.
Seria infeliz? Por que vivia sozinho, longe dos outros homens? Não elegera nenhuma rainha para si? Este não lhe parecia um tolo! Ao contrário, se escolhesse uma rainha, certamente a faria feliz.
Como se houvesse lido os seus pensamentos, ele dirigiu-se a ela:
— Sabe formiguinha, quem vive com a Natureza nunca estará sozinho!
— De uma certa maneira ele me lembra Navalha. - pensou.
A noite desceu sobre o mar. Mamãe Lua continuava sua tentativa vã de engravidar. Estava no seu apogeu. Redonda e brilhante sua claridade prateava o mar. Tontinha desceu do mastro e sentou-se ao lado do velho pescador. Ele percebeu sua presença.
— Preciso tomar cuidado para não lhe pisar, amiguinha...
E ficaram longo tempo em silêncio, olhando a lua refletir-se no oceano.
Quando o outono terminou o velho pescador voltou ao cais.
Tontinha esperava ele atracar para atravessar a corda de volta para a terra.
— Até um dia amiguinha...
Como poderia se fazer entender por ele? Fora tão bom com ela. Dividira suas provisões. Andava cuidadosamente com receio de pisa-la. Conversava, ou melhor, monologava dirigindo-se a ela nas longas noites marinhas.
— Como poderei expressar minha gratidão? Como dizer-lhe o quanto lhe sou grata?
Quase gritou quando achou a resposta aos seus anseios.
— Já sei. Com a minha dança! Meu corpo falará por mim!
E dançou como nunca havia dançado antes. Quando terminou ele segurou-a delicadamente na mão.
— Obrigada formiguinha. Sua dança é linda. Não vou esquecer-me de você, nunca! Adeus formiguinha, se um dia precisar de solidão, de vento, de mar, de lua, procure o meu barco, terá sempre um amigo lhe esperando e achará a paz que procura. Adeus!
— Adeus, respondeu. - mesmo sabendo não ser escutada.

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Inverno!
As chuvas chegaram e lavaram os estragos causados pelo calor e as folhas secas deixadas pelo outono.
Os rios enchiam de novo.
A temperatura esfriara.
Tontinha sentia saudades de casa. Andara tanto, vira tantas situações, tantos rostos e não encontrara aquele que procurava. Onde se escondia?
O vento soprava frio. Refugiou-se em um templo.
Como era acolhedor o clima no interior da igreja. Muitas velas acesas aqueciam o recinto. Mulheres e homens escutavam atentamente um jovem falando. Ele falava em perdão, amor, caridade. Pedia que dividissem com os menos afortunados o que lhes sobrasse. Lembrou-se do velho pescador que dividira com ela suas refeições, sem que ninguém lhe mandasse faze-lo.
Quando o jovem parou de falar, as pessoas se retiraram...
Tontinha também saiu. Na porta uma velha parecendo sentir muito frio, estendia as mãos e pedia alguma coisa que Tontinha não entendera, para os que saiam. Ninguém parava e nem lhe prestava atenção. Haviam esquecido, rapidamente, os conselhos escutados, pensava a formiguinha.

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E quando a Primavera começou a dar sinais de sua presença, Tontinha lembrou-se da promessa feita ao seu querido beija-flor. Estava na hora de retornar. Apressou o passo. Não saberia se sua busca fora válida. Estava muito cansada.
De nada adiantara a longa caminhada, não iria conseguir mudar o mundo. Era frágil, indefesa, formiga. Os homens continuariam sendo homens e as formigas sempre seriam formigas. Existiriam sempre Ferozes e Implacáveis, mas em compensação outras Vermelhinhas nasceriam independentes da maldade alheia.
— Vou ao encontro do meu beija-flor. Quero voar nas suas costas e ver a minha Mamãe Lua de perto. Quero falar sobre a vela do barco e do mar para Madrinha, quero rever Navalha, aquela velha malcriada e ranzinza tão amada por nós todas. Devo esquecer a Justiça. Se ela não apareceu em quatro estações, é porque não me quer ver... ou, quem sabe, não exista.
Agora, já não andava, corria.

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Na Comunidade da Prosperidade a vida já não era a mesma.
Tontinha, sem querer, conscientizara o “time das pluminhas vermelhas” das injustiças cometidas dentro do formigueiro. Por que as operárias morriam, enquanto a Rainha era preservada dos perigos diários enfrentados por elas?
As prisioneiras? Afinal, eram irmãs, formigas também, moravam tão somente em outras comunidades. Por que eram escravizadas?
Os saques? Como eram indignos de seres que se julgavam tão superiores, até das abelhas...
A própria vida das formigas... Destruindo, cortando, dizimando, doesse em quem doesse.
E, finalmente, o seu abandono do “lar” em busca de Justiça.
Todas essas questões eram discutidas pelas formigas mais jovens em desacordo com o sistema. Sentiam falta da pequena formiga. Sua própria deserção, nada mais era que o desejo de entender as injustiças. Fora em busca da Justiça. Para si e para os outros e com este gesto deixara de ser uma simples formiguinha para transformar-se num mito.
— Navalha - perguntavam - será que ela voltará um dia?
— Estará viva?
— Ainda se lembra de nós?
— Será que encontrou o que procurava?
— Dançará ainda como antes?
Formiguinhas jovens, nascidas depois da partida de Tontinha, de tanto ouvirem falar na formiga que abandonara a própria comunidade em busca de respostas, sentiam curiosidade de conhecê-la:
— Iremos vê-la um dia? Voltará?
Navalha levantava a cabeça, olhava para o grupo onde um dia distante fora escolhida para líder e respondia:
— Voltará sim! Uma formiga, sempre volta ao seu formigueiro. É mais forte que todos os outros valores, mesmo tratando-se de Tontinha.
E caía de novo em profundo silêncio.

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O perfume das flores misturava-se aos outros aromas. Para qualquer ser seria difícil identificar a procedência isoladamente, mas não para Navalha, dotada de um olfato privilegiado.
Levantou-se, ergueu a cabeça e sorriu:
— Venham até aqui. Tontinha está voltando. Sinto o seu cheiro no ar...
Madrinha acercou-se:
— Tem certeza Navalha?
— Absoluta Madrinha! Mesmo já velha, não me enganaria. É ela sim, Madrinha! Está voltando para nós! A nossa Tontinha querida!
Correu pelas galerias. Parecia agora, motivada, uma formiga jovem.
— Vou ao seu encontro. Quero dar-lhe as boas vindas.
Algumas formigas acompanharam-na.
— Espere por nós Navalha, também estamos ansiosas para rever Tontinha. Temos tantas coisas para lhe contar, tantas para escutar.

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Já estava perto dos campos conhecidos, amados e tantas vezes pisados.
Uma emoção estranha tomara conta de si. Como pudera abandonar a terra amada? Seu beija-flor? Suas amigas?
— Perdoe-me Vermelhinha, não ter uma resposta para lhe dar...
Sentia-se um pouco culpada por estar de volta, ansiar pelo namorado, pelos amigos e estar viva.
— Vou primeiro rever Navalha, Madrinha, o grupo, depois vou em busca do meu amor. Tenho que me apressar para encontra-lo acordado... sorriu: - mas se ele já estiver dormindo, sei como acorda-lo...
E neste exato momento escutou a palavra ansiada, buscada, procurada por quatro estações:
— Justiça! Justiça! Justiça!
Parou atônita. O que significava? Quem gritava por ela?
— Justiça! Queremos justiça!
Procurou atentamente de onde vinham os gritos.
Perto dali uma multidão mal vestida, muito semelhante à garota do vestido encardido do parque e da velha sentada na saída do templo, ouviam um homem, bastante exaltado em cima de um palanque improvisado. Ele discursava:
— Bradaremos por justiça! Queremos igualdade para todas as classes. As fazendas serão divididas. Eu farei com que todos tenham terras, nem que para isso tenha que dar a minha vida.
Tontinha ouviu suas palavras. Seria aquele homem a Justiça? Procurara tanto e estava tão perto de si.
Navalha chegara ao local do comício. Onde estaria Tontinha? Seu cheiro agora bem forte, afirmava sua presença.
— Os poderosos não vão nos impedir de fazer justiça. Cada um de vocês receberá seu quinhão de terra. Faremos a reforma agrária, contra a vontade dos políticos poderosos, dos grupos capitalistas, de todos aqueles que querem nos impedir de fazer Justiça... Custe o que custar, venceremos...
Tontinha aproximou-se do palanque. Queria escutar melhor as palavras daquele homem. Precisava entender.
Navalha a viu subindo no palanque.
— Volte Tontinha, não deve se meter com homens que prometem. São perigosos. Não cumprem nunca o que falam. - gritava.
Mas Tontinha não poderia escuta-la, pois os gritos dos sem-terra anulavam sua voz.
Subiu ao palanque. Navalha apressou o passo para ir ao seu encontro e tira-la dali.
O homenzinho incentivado pela platéia exaltada, prometia cada vez mais, no seu discurso inflamado.
— Abaixo os poderosos, vamos enfrenta-los com nossas enxadas, pás, facões e determinação de vencê-los. Todos terão seu pedaço de terra, nem que para isso eu tenha que dar meu sangue, minha vida...
Finalmente encontrara a “Justiça”! Como era poderosa!
— Ele está dando sua vida e seu sangue pelos sem terra. Agora vou finalmente entender porque Vermelhinha morreu e Feroz e Implacável ficaram vivas!
Lembrou-se do velho pescador.
— Este homem é diferente daquele. Este fala muito. O outro falava pouco... mas ambos são bons homens!
Aprendera a confiar nos homens, apesar das advertências de Madrinha. Sorriu.
— Madrinha vê a maldade em tudo. É preconceituosa demais... mas eu, adoro ela!
Navalha já estava quase perto de Tontinha.
A platéia ensandecida pedia mais promessas.
— Venceremos! E aqueles que se atravessarem no nosso caminho...
Parou, pois acabara de avistar a formiguinha. E em um gesto teatral, estudado, segurou-a :
— e aqueles que atravessarem o meu caminho para nos impedir que se cumpra a Justiça esmagaremos, como a um inseto. Assim!
E completando a frase com o gesto, pressionou o dedo na formiguinha, sem saber ser ela a sua mais ardorosa ouvinte.
— Esmigalharemos nossos inimigos como a esta formiga...
Jogou-a longe com receio de uma mordida.
Todo o ódio antigo, toda a crueldade de sua profissão de carrasca, estampou-se na fisionomia de Navalha.
Viu Tontinha caida ao chão.
E com uma agilidade surpreendente para sua idade, subiu pelo corpo do assassino.
Primeiro cortou um triângulo profundo em seus lábios. O sangue jorrou.
Quando ele abriu a boca para gritar de surpresa e dor, a guerreira arrancava-lhe nacos de carne de sua língua mentirosa.
— Não falará mais seu nojento. - pensava, enquanto “navalhava” sua língua demagoga.
O homenzinho atônito, que momentos atrás prometia seu sangue e até sua vida pela “causa” gritava de dor, acovardado ante a visão do líquido vermelho que escorria lhe manchando as roupas.
Finalmente conseguiu identificar o objeto cortador e num golpe de sorte degolou a cabeça da velha guerreira com seus dentes. Cuspiu-a longe.
A platéia agora sorria. Estavam felizes. Gostavam de sangue.
As formiguinhas que vieram acompanhando Navalha, finalmente chegaram ao local.
Viram Tontinha caída ao chão. Estava viva! Aproximaram-se dela. Seguraram-na com carinho:
— Vamos leva-la Tontinha. Não se mexa! Vai ficar boa.
— Não existe Justiça, não existe, balbuciava com dificuldade.
— Não fale, não gaste suas energias...
Chegaram ao formigueiro. Madrinha esperava-as:
— Tontinha, minha filha querida, o que aconteceu com você?
— Não deve falar Madrinha, está muito machucada.
Madrinha sentiu que algo muito grave acontecera.
Perguntou baixinho:
— E Navalha?
— Está morta Madrinha! Foi degolada por nosso pior inimigo, o homem.!
— Vão busca-la! Merece honras. É e sempre será uma grande guerreira! Não deixem Tontinha saber, não suportaria mais este golpe.
Virou-se para cuidar de Tontinha. Como estava machucada!
As formiguinhas foram chegando silenciosas. Estavam tristes. Esperavam um outro regresso diverso desse, com danças, música, mel, aventuras contadas, risadas soltas...
Tontinha abriu os olhos. Avistou Madrinha debruçada sobre ela.
— Madrinha, subi na vela. Viajei no barco. Deve ir Madrinha... procure um velho pescador, é meu amigo...
— Não fale minha filha. Precisa ficar boa...
— Não Madrinha, estou morrendo, queria lhe fazer um pedido...
— O que desejar minha querida!
— Quando voltava para casa, vi uma lagoa, no centro dela mora uma vitória régia, gostaria de ser posta lá, ser banhada pela luz de minha Mamãe Lua...
— Prometo querida. Quando estiver melhor...
— Agora Madrinha, agora..., estou muito cansada... não vou dar jeito no mundo, sou apenas uma formiguinha...

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O cortejo seguia silencioso. Seis formigas operárias carregavam o frágil corpo.
Chegaram à beira da lagoa.
— Madrinha, não vejo Navalha, onde está? Queria despedir-me dela!
— Está no campo, querida. - mentia.
— Diga-lhe que ela estava certa! Só a Natureza é sábia...
— Direi minha querida, fique tranqüila.
Surgiu um problema. Como transportar a formiguinha para o centro da lagoa, sem ocorrer mortes?
Algumas voluntárias se ofereceram para formarem pontes.
— Não, basta de sacrifícios. Coloquem-me em uma folha. O vento me levará...

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As formiguinhas não entenderam, porque “desceu do céu” um belo pássaro e suavemente, com delicadeza, carregou o frágil corpo e deu início a um vôo nupcial.
— Quem será? - perguntavam entre si.
Finalmente Tontinha teria seu grande vôo.
— Notaram suas penas? São iguais a dos nossos colares...
— Vejam está voltando...
— Está levando Tontinha para a Vitória Régia...
— Ela viverá madrinha?
— Gostaria também de saber... mas tenho certeza, que em nossos corações, não morrerá nunca! Vamos irmãs, precisamos providenciar um belo lugar para o merecido repouso de uma verdadeira e leal amiga! Uma líder!
Voltaram em silêncio.
Navalha foi enterrada e por sobre seu túmulo foi colocado o colar de pena vermelha!

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Era uma bela noite de lua cheia.
Uma trilha de formigas, usando colares vermelhos, seguiam em frente, apressadas. Não estavam a trabalho. Há várias estações, percorriam esse mesmo trajeto toda noite de lua cheia.
Em frente à lagoa, onde descansava Tontinha pararam. E aguardaram. Já era um hábito entre elas. Quando a lua se posicionou bem ao centro da Vitória Régia, ele apareceu.
E deu início à sua dança.
As formiguinhas se espichavam para ver o centro da Vitória Régia.
Estaria Tontinha dançando também para o seu amado? Algumas diziam que sim. Outras não podiam afirmar, mas a dança do pequeno beija flor não era uma coreografia de morte, era sim, uma explosão de vida, alegria, felicidade! Uma dança de amor!

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Andou muito. Deixara tudo para traz. Precisava alcançar sua meta. O seu sonho! Caso contrário, teria sido uma vida sem sentido. Vã. Vazia. Em branco.
Respirou fundo. Já sentia indícios que estava na rota certa. O ar vinha dele!
Avistou o mar! A vela! O barco! O pescador! Uma imensidão de vida para si. Não sentia mais medo do vento e nem de ser atiçada por ele em águas estranhas.
Subiu pelas cordas, galgou o mastro.
E ele enxergou-a.
— Que prazer em reve-la formiguinha. Como cresceu! Senti sua falta...
Gostaria de dizer-lhe que ela não era a sua amiguinha, mas graças a ela, estava ali, para realizar um sonho antigo. Pensou:
— E para que informa-lo de uma realidade que em nada acrescentará? Melhor deixa-lo na ilusão que eu sou Tontinha e faze-lo feliz!
— Vamos partir amiguinha! Prometo-lhe uma bela viagem!
E Madrinha sorriu, feliz, como nos seus belos anos de infância. Estava finalmente em busca de seu sonho!.



F I M

Suzana Mueller - 1998



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