[Na casa dos maldosos, não há espelhos para que se vejam...]
A ema estava muito orgulhosa com tudo o que estava acontecendo em sua vida no momento. Era o momento mais importante de sua vida sem dúvida, e por isso sentia-se a rainha do cerrado.
Foi num desses dias, que encontrou a arara, e disse:
_ Olá arara, tudo bem?...
_ Vou indo, dona Ema...
A ema deixou aquela pose de dona ema que só ela tem, e entortou o pescoço como o da arara, imitou o jeito do bico dela, e falou:
_ Como, "vou indo dona Ema?!..." – Depois, assumiu a sua pose, e continuou: Que baixo astral você tem, arara!... Não tem essa de "vou indo"... Levanta essa cabeça, dá uma geral nessas penas sujas... cria tipo de ema...
A arara ficou sem graça, sem saber o que dizer. A ema mudou de assunto:
_ Você sabe das últimas, arara?...
_ Últimas!... – disse a arara, mais para si mesma.
_ Ah!... Desculpe querida!. Esqueci que você não freqüenta as altas rodas da sociedade do cerrado!... Mas você pelo menos sabe que deram meu nome a esse parque, não sabe?... Pois é, isso tudo aqui, é conhecido no mundo todo como o Parque Nacional Das Emas... E sabe de uma outra?... Nós, as emas, fomos convidadas para enfeitar o Palácio do Governo em Brasília, você soube?... Aquilo lá estava muito sem... como posso dizer?... sem elegância. Por falar nisso, querida, fique de olhos abertos, porque os contrabandistas andam por aí capturando araras para uns zoológicos... Deve se triste ser preso nesses lugares como alguns parentes de vocês, não arara?...
A arara estava muito sem graça diante de tanta arrogância. Esperava uma brecha na conversa, para se despedir e sair voando. Pensava consigo, que elas, as araras, eram quem tinham fama de que falavam muito.
Quando afinal ia abrir o bico para se despedir, a ema não deu tempo:
_ Ah! querida, você ouviu falar do Troféu Emas?... Eu te conto... É um concurso que foi criado em minha homenagem para incentivar o que há de melhor em cada especialidade... É claro que não vou concorrer, porque seria até uma covardia, né querida!... Vou só mesmo receber as homenagens, como o animal de maior destaque no país...
A arara estava ansiosa para ir embora:
_ Muito bem dona Ema... Parabéns por tudo... mas eu tenho que ir mesmo. Deixei os meus filhos com fome, e tenho que procurar comida ainda...
_ Pobre arara!... Não sei como é que você suporta essa vidinha de pobre!... Ter que sair procurando comida deve ser o maior saco!... O bom é ter a comida dos palácios à disposição... Eu vou arranjar um ótimo trabalho para você não ter que sair por aí nessa deselegância dizendo pra todo mundo que "meus filhos estão passando fome!" - Disse isso, volteando o bico e falando como a arara. – E continuou: - Eu tenho um coração muito bom, e não gosto de ver ninguém nessa miséria querida... Se ao menos você fosse um pouquinho mais elegante, e não tivesse essa mania feia de pegar os alimentos com o pé, eu bem que poderia te arranjar uma coisa melhor... Mas eu vou dar um trato em você, pode confiar. Vou fazer de você uma verdadeira dama. Cortar essas unhas horríveis, aparar um pouco essas pena deselegantes... Eu vou te ajudar, querida... Vai trabalhar como copeira no dia do concurso... Eu te aviso, está bom querida?
A arara se despediu, e finalmente voou. Estava desapontada com a arrogância da ema, mas não podia negar que estava mesmo precisando de ajuda, porque nessa estação do ano, estava muito difícil encontrar alimento para seus filhos ainda pequenos. E era justamente por causa deles que suportava a humilhação.
Assim que a arara voou, foi chegando o lobo guará.
_ Boa tarde dona Ema!
_ Boa tarde seu Lobo!... Viu só que deselegante a arara?... Estou tentando ajudá-la, mas não é fácil ajudar essa gentinha... E o concurso, seu Lobo, vai ou não participar?...
_ Vou, é claro!... Desculpe a indiscrição, mas a arara vai participar em que categoria?
A Ema começou a rir, tampando o bico com a asa, para não parecer vulgar, e disse entre risos:
_ Não, seu Lobo!... Ela só vai mesmo trabalhar como ajudante!... A arara é de uma outra classe... Desculpe, seu Lobo, eu achei graça da pergunta...
Os dois acabaram rindo juntos. Depois de um tempinho, a ema se recompôs:
_ O senhor vai participar em qual a categoria, seu Lobo?
_ E eu que escolho?
_ Claro!... é o concurso mais democrático que existe...
_ Olha dona Ema, eu estou boquiaberto com a organização. Isso é realmente fantástico, cada participante escolher a categoria... Porque cada um é quem sabe mesmo das suas qualidades... - Ele coçou o focinho como fazia todas as vezes que pensava, e disse: - Vou participar na categoria Simpatia e Amizade...
_ Muito bem seu Lobo. Ótima escolha. Acredito que quando o senhor ganhar, vai facilitar muito a sua vida.
O lobo continuou coçando o queixo, e pensando que se ganhasse essa categoria, ficaria mais fácil para enganar as suas presas.
_ Bom seu Lobo, agora a lista está completa. Creio que o Troféu Emas, será mesmo um sucesso!...
_ Posse dar uma olhada na lista, dona Ema?
_ Claro seu Lobo. A imprensa do país vai noticiar, mas para os participantes, podemos conceder certas regalias.
O lobo recebeu a lista e leu:
Categoria: Perfume.............................................................Sr. Gambá
Nariz Elegante..................................................Sr. Tucano
Beleza..............................................................Sr. Tamanduá
Asseio..............................................................Sr. Urubu
Elegância..........................................................Sr. Jacaré
Pele limpa.........................................................Sr. Tatu
Família Bonita...................................................Dona Coruja
Achou a lista o máximo. Ficaria perfeita com o seu nome incluído.
_ Só uma perguntinha, dona Ema, - disse o lobo. – Não tem perigo perder?...
_ Claro que não seu Lobo. Pensamos em todos os detalhes. Sabe como é o júri? É composto só por um homem. Na verdade, um filhote ainda deles. E já está tudo combinado. Ele vai perguntar para cada um dos concorrentes, quem é o melhor na sua categoria, e quem responder certo, ganha o prêmio... E o senhor sabe como são os homens, não sabe? É justamente para não dar nada errado, que escolhemos um deles para "julgar". – Disse a ultima palavra piscando um olho maliciosamente para o lobo.
_ Será que estou entendendo bem, dona Ema?...
_ É simples. Por exemplo, o senhor vai chegar, e o juiz vai fazer uma pergunta só: Senhor Lobo Guará!... O Senhor acredita ser o melhor na categoria Amizade e Simpatia do concurso Troféu Emas? Aí, o senhor só perde, se disser não. Mas o senhor é um lobo, e não um - desculpe a palavra, - um burro. Daí em diante, é só gozar de todos os benefícios que o prêmio vai trazer...
O lobo todo satisfeito, pagou a taxa de participação, e saiu uivando de alegria.
O dia finalmente chegou. Muita gente, fotógrafos, cinegrafistas, flashes aos montes... A ema, a grande homenageada, abriu a cerimônia debaixo dos mais entusiasmados aplausos da platéia, e do quase interminável espocar de flashes.
E depois de tamanha homenagem, passou a palavra ao júri, composto de um só filhote de homem, que explicou:
_ Senhores e senhoras animais e pessoas. Tenho a honra de apresentar o que há de mais elevado em julgamento. É um método simples, que foi ensinado por um sábio muito conhecido entre nós os humanos, que disse que quem julga, será julgado. E para que não tenha dificuldades, colocamos esse espelho, e basta quem está sendo julgado, dizer que está vendo diante de si, a pessoa capaz de representar bem o prêmio que está recebendo. Só quero dizer que o espelho não houve nenhuma mentira, e todo o que mente para ele, derrete no mesmo instante, como manteiga ao sol.
Houve um pequeno tumulto na platéia, por conta desse negócio de derreter. A Ema, fez um gesto de impaciência onde estava. O juiz falou:
_ Vou chamar o primeiro candidato, o senhor Lobo Guará.
O lobo subiu ao palco, desfilando até um jeito novo de andar, ensaiado pela ema. Foi recebido com muito aplauso da platéia, enquanto se encaminhava para diante do espelho.
O juiz perguntou:
_ Senhor Lobo Guará!... Diante do Espelho da Verdade, o senhor pode me responder quem é o mais amigo e simpático animal do cerrado?
O lobo olhou o espelho, e viu atrás de si, a arara, que trabalhava como ajudante num lugar do palco, que não podia ser vista pelo público. Quando ela o olhou, ele teve vergonha, porque se lembrou de como é que caçava, e de uma vez que atacou e devorou os filhotes de arara, que caíram de um ninho. Então baixou os olhos ao chão, e não respondeu a pergunta. E como o menino insistisse, ele fugiu envergonhado, e não foi visto mais. E dizem que é por isso que hoje é muito difícil encontrar lobos por aí...
A ema muito nervosa, quase deu um chilique quando o lobo fugiu.
Foi chamada a coruja, em seguida, e ela repetiu a cena do lobo, quando avistou a arara atrás de si, cuidando dos seus afazeres.
A ema quase desmaiou de ódio.
E aconteceu que todos os outros candidatos foram chamados, mas a cena se repetia quase do mesmo jeito. E finalmente, só sobraram em cima do palanque, a arara, e o menino. Ele pediu que ela trouxesse alguma coisa, e quando a ave passava em frente ao espelho, ficou encantada de se ver assim de perto, como nunca tinha visto. Ficou encantada com o colorido das suas penas, com o seu jeito de andar, com a graça do seu bico...
O menino percebeu, e teve a idéia de perguntar:
_ Dona Arara!... Diante do Espelho da Verdade, a senhora acredita ser merecedora do prêmio na categoria de beleza?
A arara respondeu:
_ Desculpe senhor juiz, mas eu seria desonesta comigo mesma, se dissesse que não.
O público presente aplaudiu, e uma multidão de fotógrafos e cinegrafistas correu para focalizar a ave.
O juiz resolveu perguntar mais:
_ E a senhora se acha com a capacidade de receber o prêmio de amizade e simpatia?
_ Olha, senhor juiz, eu tenho que ser sincera, e dizer que jamais prejudiquei a alguém em qualquer lugar por onde passei. E tento ser simpática e amiga de todos...
O juiz sorriu, e a platéia se levantou dessa vez no aplauso.
_ A senhora se acha bonita?
_ Desculpe dizer que sim. Embora não seja responsável pela beleza das minhas penas, mas acredito que recebi do criador, esse dom de ser bonita...
Dessa vez não se sabia se o aplauso era por causa do prêmio, ou porque ela disse uma verdade até muito filosófica.
As perguntas foram sendo feitas, e a ave acabou por receber todos os prêmios, para desespero da ema, que perdeu a compostura, e começou a xingar tanto a arara, quanto o juiz.
Depois de receber todos os troféus, a arara foi convidada a dizer uma palavra, e se saiu com essa:
_ Na casa da mentira, da violência, da injustiça, do ódio, não há espelhos para que todos os seus moradores vejam quão feios são... Não haveria nenhuma injustiça, se todos pudesse se ver através do Espelho da Verdade...
Depois da festa, os jornalistas procuraram o menino para uma entrevista, mas ele não foi visto por mais ninguém.
Bom, aí como é natural, surgiram as especulações, e disseram até que ele é o próprio que há de julgar a humanidade.
Não sei não, mas eu acho que tinha mesmo algo de estranho com o menino...