O dia amanhecera ensolarado e belo. Nos arredores da chácara a bicharada fazia a barulheira de sempre, os passarinhos cantavam ali e acolá anunciando um dia igual a todos os outros. Logo após a refeição matinal, Menina, de apenas seis anos convidou Maria, a empregada, para brincar com ela e Zico, o irmão caçula:
_ Maria! Todo mundo aqui da chácara disse que é pra gente não sair, que devemos brincar aqui mesmo, por causa dos homens que estão capinando o mandiocal. Você brinca com a gente?
A moça olhou-a com um sorriso doce e respondeu:
_ Num posso, Menina! Tô cum muito que fazê. Ocê brinca cum o Zico aqui mermo, adjunto da casa, a mãe doceis mandô, é mió assim.
_ Mas do que a gente pode brincar lá na varanda? Lá não tem nada! Até o gato Paizinho foi pro mato com a gata e...
_ Ocê num se avexe, daqui um bucadim os gato doceis vai vortá e oceis vai podê brincá cum eles. Prumode que ocê num pruveita e conta de novo, os causo das coisa que oceis viu lá no mato?
Maria se referia ao recente passeio pela mata, que Menina e as duas irmãs haviam feito em companhia de dona Emilia, a avó delas.
Menina olhou-a desolada e respondeu:
_ Outra vez? Todo dia é a mesma coisa. O Zico já está cansado dessa história, não é Zico?
O garoto que se divertia fazendo bolinhas com o miolo do pão que deveria ter comido, respondeu sem parar o que fazia:
_ Eu não estou cansado, você pode contar. Conta a história do Guariba, depois conta a do caititu.
_Ah! Zico! Todo dia você quer ouvir isso. Essa história é da mamãe, quando ela era pequena. Aquele guariba já ficou velho. Acho até que já morreu. Eu só escutei a vovó falando, nem sei o que é guariba.
Maria se afastou deles e, sem outra alternativa, eles foram pra varanda. Ali, Zico cobrou a promessa que Menina lhe fizera, de ajudá-lo a construir uma ponte e uma estrada. Estiveram ocupados com a brincadeira até perto das dez horas da manhã. Depois, farto de brincar de construtor, Zico perguntou sobre o passeio que a irmã fizera pela mata. Perguntou como era um guariba. Ela sabia tanto quanto ele, mas recordou-se que a avó dissera que o bicho era barbudo e que fazia um rumor estranho com a garganta. E como era seu costume, pra não deixar o garoto sem resposta, ela começou a inventar:
_Guariba é só um monstro cabeludo, de barba comprida e muito fedorenta. Ele usa a barba para amarrar as pessoas e não deixar ninguém escapar. Quando ele tá com fome, ataca até os outros monstros da floresta. Ele faz barulho com a garganta igualzinho ao tio Antonio quando escova os dentes.
O garoto ouviu tudo com cara de espanto. Mas, em seguida, para surpresa da irmã, ele a convidou para brincar de “guariba que não era”. Curiosa, Menina quis saber como era a brincadeira.
_ É assim: nós dois corremos pela casa e pela varanda e o guariba corre atrás da gente.
_ Mas, e o guariba? Quem vai ser o guariba que corre atrás da gente?
_ Não precisa de ninguém. É só um “guariba que não era”. Na dúvida , Menina perguntou:
_ É uma coisa de faz-de-conta? É isso?
_ Não! É só uma coisa que existe, mas não existe. É só pra gente brincar!
A garota não entendeu, mas pra não prolongar a questão, concordou com ele.
_ Tá bom! Você inventou a brincadeira, então você vai à frente, pra eu poder aprender como é que se faz.
Zico não perdeu tempo, começou correndo pela varanda, entrou na sala de visitas, passou pelo quarto dos pais, subiu na cama e da cama para a janela de onde pulou pra fora da casa. Enquanto fazia isso ele gritava pra que a irmã fosse rápida, porque o guariba já estava perto deles. Menina entendeu o faz-de-conta e também pulou a janela. Os dois deram a volta por fora da casa, entraram de novo na varanda, e assim sucessivamente, tudo com muita algazarra. Numa das vezes, passaram perto da avó e da mãe, ocupadas a ensaboar roupas numa bacia gigante. Ambas advertiram pra que eles parassem com a correria. Eles apenas olharam pras duas e aos gritos de “a guariba tá chegando, ela vai pegar a gente, ela está chegando perto”, prosseguiram a brincadeira. Os dois estavam empolgados e acreditavam na própria fantasia. Num determinado momento, Zico já estava no alto da janela e Menina, no auge do entusiasmo, achou que o irmão estava demorando a saltar, então o empurrou lá de cima. O garoto caiu no lado de fora da casa e soltou um grito de dor. Josefa e Siá Doninha vieram correndo socorrê-lo. Menina, que não chegara a pular a janela, ficou parada escondida, ouvindo o que a avó dizia enquanto o examinava. Mãe e filha não paravam de lembrá-lo de que havia sido advertido pra parar com a brincadeira. Depois de alguns minutos que pareceram uma vida, Menina ouviu a voz de Siá Doninha anunciar que o braço de Zico estava quebrado.
Desesperada, a garota fugiu da casa e meteu-se pelo que sobrara do mandiocal. O mato havia invadido tudo, mas o horror que ela estava vivendo naquele momento não deixava lugar para o medo de entrar na mata. Grossas lágrimas desciam-lhe pelo rosto. Como seria a vida do irmão depois daquilo que acontecera? Ela não podia mais voltar pra casa. E Zico? A perdoaria? Menina andou sem rumo no meio dos galhos de arbustos que lhe batiam no corpo e no rosto.
O sol já ia bem alto e o calor era forte e de repente, ela ouviu vozes. Temendo ser encontrada e castigada, voltou a correr pelo mato até o momento em que encontrou um buraco de tatu que, aparentemente, havia sido abandonado. O lugar era grande e fundo o bastante pra que ela se escondesse. Com um galho seco cutucou o fundo do buraco e como não saiu nada de lá, escorregou buraco adentro. Os arbustos em volta, encobriam mais ainda, seu esconderijo.
Menina sentia o corpo doído, a garganta seca e os olhos ardendo. Com febre, começou a delirar. Via os tatus em volta da toca ameaçando cobri-la de terra. Outras vezes, via bonecas sem braços e sem olhos, que passavam gargalhando em volta dela. Depois aparecia o irmão mostrando que não tinha mais o braço. No meio do pesadelo, às vezes dormia. Houve um momento em que acordou e viu que os homens capinavam próximos ao lugar onde estava. As foices passavam por cima de sua cabeça, mas não se moveu, pra que eles não a descobrissem.
A tarde começou a cair e os delírios voltaram. Agora, sua irmã mais velha vinha à frente do batalhão de bonecas mutiladas. Latide não parava de dizer:
_ “Olha o que você fez com elas! Olha o que você fez. Isto é pra você aprender a não quebrar os braços e pernas das minhas bonecas.” – e prosseguia – “Vê esta aqui? Você arrancou os olhos dela. Você mutilou todas elas...”
Menina sentia a cabeça doendo e aquelas palavras machucavam ainda mais o fundo de sua mente. Depois já não era apenas a voz de Latide, eram outras vozes, muitas vozes que chamavam aflitas por ela.
_Menina! Menina! Onde você se meteu? Menina volte pra casa!
As vozes se aproximavam depois se distanciavam. Era um sonho confuso. Ninguém mais procuraria por ela. Não depois de haver quebrado o braço de Zico, como fizera com as bonecas da irmã. As vozes retornaram pra perto dela. Com esforço abriu os olhos e viu que já estava escuro. Subitamente um foco de lanterna iluminou o buraco. Então ouviu a voz do tio Antônio chamando por ela. Lentamente movimentou o corpo e arrastou-se em direção à saída. Antônio percebeu que alguma coisa se movia dentro do buraco e perguntou:
_É você, Lagartinha de fogo? – o tio a chamava assim por causa dos cabelos avermelhados da pequena.
Menina colocou o braço pra fora e balbuciou:
_ Tio!
O rapaz correu pra perto do buraco e gritou para os outros|
_Aqui! Ela está aqui! Venham me ajudar!
Seu pai Mozart e o tio Francisco iluminavam a entrada do buraco, enquanto Antônio retirava a garota, puxando-a pelos braços. Ao tocá-la o rapaz percebeu que ela queimava.
_Ela está com febre alta! O que será que aconteceu?
Dom Mozart passou a mão no rosto quente da filha e perguntou:
_Minha Menina! Por que você fugiu? Por que você deixou todo mundo preocupado?
Com dificuldade a pequena respondeu:
_Eu empurrei o Zico da janela. Agora ele não tem mais braço. Eu ouvi a vovó dizer que o braço dele quebrou.
Os três homens, embora aflitos pelo estado em que ela estava, deram risadas. Só mesmo com Menina aconteciam coisas do gênero. Então, Antônio falou enquanto a transportava nas costas:
_ Foi por isso que você fugiu Lagartinha? Seu irmão está bem. Ele só terá que usar o gesso e a tipóia por alguns dias é só isso. Braço de gente não é como braço de boneca!
Bonecas! Tão cedo Menina não esqueceria o grotesco desfile de bonecas sem olhos, sem pernas e sem braços.
Quando Menina chegou em casa, foi examinada pela avó que lhe deu um banho para baixar a febre. Menina dormiu até a manhã seguinte quando foi despertada pela avó perguntando como se sentia. Menina Estava fraca, mas teve forças pra perguntar pelo irmão. Dona Emília fez um aceno com a mão e num segundo Zico estava diante dela. O garoto tinha a aparência mais tranqüila deste mundo. Ao vê-la acordada, mostrou-lhe o braço envolvido no gesso.
_ Olha moço! Foi o médico que pôs isto. Sabe? Eu só chorei um pouco, depois não doeu mais. Quando nós voltamos do hospital a Maria estava procurando você e não achou. Onde você comeu? No mato? O que você viu lá? Moço, você tá doente é? – Zico a chamava de “moço” pra fazer de conta que ela era um menino, por que não havia nenhum outro garoto na casa.
Siá Doninha, vendo que a neta ainda estava muito abatida, falou com o neto para sair do quarto, mas Menina pediu pra que ele ficasse. Era bom vê-lo, era bom saber que ele ainda tinha o braço. Melhor ainda saber que braço de gente não sai do corpo quando quebra. Depois ela estendeu a mão pra ele e desculpou-se:
_ Zico, eu só empurrei você porque tive medo do “guariba que-não-era”. Ele já estava quase me pegando.
Siá Doninha, ouvindo aquilo, quis saber do que ela falava.
_Que estória é essa de guariba?
_ É o monstro que a senhora falou naquele dia lá na mata e que a mamãe tinha medo, quando era pequena - disse ela.
A mulher começou a rir e ainda rindo falou com eles:
_ Por que vocês não perguntam as coisas pra gente? Isso evitaria um monte de dores de cabeça. Guariba não é nenhum monstro. Guariba é só uma espécie de macaco um pouco maior do que aqueles que nós vimos lá na mata. Peçam pras irmãs de vocês verem se na tal enciclopédia ilustrada, tem guariba.
Zico ouviu a avó e concluiu:
_ Não precisa mais vovó. A senhora já disse que guariba é macaco. – em seguida, olhando pra irmã, pediu:
_ Moço! O tio Antônio disse que encontrou você escondida num buraco de tatu. Foi mesmo? Conta como foi, você conta, moço? O tatu não te mordeu? Como que era o tatu? Você viu o tatu de perto?
Menina sorriu e olhou pra Siá Doninha pedindo socorro. Tudo o que ela desejava naquele momento era esquecer aquele episódio dramático. Siá Doninha saiu do quarto levando o neto. Menina só precisava de repouso. Logo estaria pronta pra outras artes, outras aventuras na chácara.
Fim
(Este conto faz parte da série composta por dezenove episódios, sob o título “A Menina da Chácara”. Neles eu relato as aventuras da minha infância na chácara).