As coisas não iam bem na chácara. Menina lia no rosto do pai a preocupação que o afligia. Mais uma vez a mesma pergunta lhe vinha à mente: por que os adultos não falam o que sentem? Seria bem mais fácil pra todos, inclusive pra ela. Nada a deixava mais contrariada do que ver seus pais, tios e a avó, mudarem de assunto ou simplesmente calarem, quando uma das crianças se aproximava deles. O que poderia haver de tão grave que não pudesse ser compartilhado com elas? Será que ia ter outra guerra? Provavelmente era isso mesmo. Dom Mozart dera de ouvir, todo entardecer, a Voz do Brasil. O noticiário causava muito mal estar a Menina, principalmente quando o locutor anunciava as notícias do Ministério da Guerra.
Menina tinha tanto medo de guerras que chegava a ter pesadelos. Frederico, o Polonês, quando vinha visitá-los contava coisas horríveis que sofrera e que vira, durante a guerra na Europa. Os relatos eram impressionantes.
Uma guerra na chácara não podia acontecer. Na chácara não tinha túneis, não tinha abrigos antibombas, não tinha nada que pudesse servir de esconderijo pra alguém. Só tinha o paiol, o casarão, o curral dos cabritos, o galinheiro, o chiqueiro. Tudo era muito frágil, uma única bomba destruiria tudo aquilo num minuto. Tinha razão o pai de viver sorumbático. Seria por isso que ele não perdia aquele noticiário? O que poderia ser, senão a guerra? Antônio também estava preocupado, vai ver ele estava com medo de ser novamente chamado. Um dia a garota ouvira Siá Doninha, sua avó, dizer que os dois filhos mais moços haviam sido convocados pra guerra na Itália, mas Deus ajudou-os, e a guerra acabou antes do embarque deles. Preocupada com a sorte do tio, Menina chamou o irmão pra falar sobre o assunto.
_Zico! A gente vai ter de ajudar o tio Antônio. Ele precisa da gente.
_ Mas ajudar no quê? O que ele tá fazendo?
_Ajudar pra ele não ir pra guerra.
Zico franziu as sobrancelhas e receoso falou:
_Moço, é a guerra do Frederico, o polonês?
_Não sei ainda. Só sei que o papai fica todo dia escutando o rádio e depois fala baixinho com o tio Antônio. Depois os dois ficam pensativos. Só pode ser a guerra.
_Então deve ser. E o que nós vamos fazer pra ajudar o tio?
_Eu pensei que a gente podia cavar um buraco bem grande, e lá no fundo dele a gente fazia uma casa com cama, com água e comida e o tio podia ficar escondido lá. Ninguém vai achar ele. Só nós podemos ir lá. Nem a vovó pode saber.
Zico franziu a testa de novo:
_Por que a vovó não pode saber?
_Porque a vovô é mãe dele. Se os alemães vierem buscar o tio, ele vai tá escondido, aí os alemães pegam a vovó e batem nela pra ela contar onde tá o tio. É assim que eles fazem. Se ela não souber, ela não diz pra eles. Eu acho que vai dar certo.
_Mas, e se os alemães pegarem a gente?
_Nós vamos estar escondidos com o tio. Eles nem vão saber. É melhor a gente começar a cavar o buraco logo. Vamos lá no paiol pegar as enxadas. Anda, Zico!
Os dois saíram correndo em direção ao paiol de milho. Ao entrar, Menina advertiu o irmão para que mantivesse o assunto só entre eles. Melhor seria que ninguém soubesse de nada, nem mesmo Liviva, a irmã do meio podia saber. Nem Maria podia vê-los carregando as enxadas, primeiro porque ela diria que criança não brinca com enxadas, segundo, porque ela poderia ser torturada pelos alemães e revelar o esconderijo. Como dizia Frederico, “em tempo de guerra não existe confiança. Diante da dor, qualquer um cede”.
De posse das enxadas, os pequenos saíram do paiol esgueirando-se cuidadosamente. Falando em voz baixa a garota indicou a direção do rio e justificou a escolha:
_ Lá, fica mais fácil pegar água para o tio.
Zico concordou inteiramente com ela e acrescentou:
_E também ele pode sair pra tomar banho, não é?
_Não pode não, Zico. Quem tá escondido não pode sair nunca. Ele vai ter que ficar fedorento mesmo. Ninguém toma banho no tempo de guerra, porque todo mundo se esconde. Tá vendo aqueles pequizeiros? É lá que nós vamos cavar. Depois a gente vai ter de cortar palhas e madeira, pra fazer a casinha dele.
Zico completou o trecho até os pequizeiros em silêncio. Depois, apoiando a enxada no chão, quis saber:
_Moço! Você sabe fazer casa debaixo do chão?
_Ora, deve ser mais fácil do que em cima do chão; embaixo não precisa fazer paredes porque o buraco já é parede.
_ Ah! - Fez Zico, em sinal de entendimento.
_ Agora vamos começar a cavar. A casa tem de ficar pronta logo, antes da guerra.
Menina fez um quadrado enorme no chão e começou a cavar. Zico imitou-a. Ao final de meia hora o garoto queixou-se de dores nas mãos. Menina também sentia as mãos ardendo, todavia, convenceu o garoto a prosseguir com o trabalho. A falta de jeito dos dois era grande, mas a necessidade de proteger Antônio era maior do que tudo. Os dois estavam molhados de suor. Zico, quase não agüentando mais a dor, perguntou:
_ Moço, por que você não faz a casa na árvore?
_Na árvore qualquer um pode ver e as bombas podem cair em cima dele. Vamos continuar, a gente precisa ajudar o tio.
O sol quente queimava a pele deles que vestiam apenas calças com suspensórios de tecido. Menina não queria parar o trabalho iniciado, o sentimento de urgência não lhe permitia. Zico, de quando em quando parava e sentava-se no monte de terra escavada. Duas horas mais tarde ele pediu pra parar. Já não agüentava mais. Menina consentiu, mas foi logo dizendo que na manhã seguinte eles deveriam retomar o trabalho. Preocupado, Zico lembrou-a que na manhã eles deveriam ter aula de música. Menina fez cara de contrariada e respondeu:
_Eu só estudo se o tio La Fuente mudar aquela música de guerra. Eu não gosto dela.
_Moço, aquela música é de guerra? Como é que você sabe? O tio falou que aquela música conta a história do índio guarani, não é de guerra.
_É de guerra sim. Quando o papai escuta a Voz do Brasil, toca aquela música toda hora e depois eles falam do ministério da guerra.
_O que é ministério da guerra?
_Acho que é a casa dos homens que fazem guerra. Daqui a pouco o papai vai ligar o rádio. Fica perto dele e escuta, você vai ver que a música é a mesma que o tio tá ensinando pra gente.
_Será que nós vamos pra guerra, moço? É por isso que tão ensinando pra gente a música do índio guarani?
_Se for por isso eu não vou. A gente se esconde junto com o tio Antônio, ninguém vai achar a gente.
Zico olhou para a palma das mãos e viu os calos em forma de bolhas, algumas já rebentadas. A dor e o desconforto eram evidentes. Menina percebeu a preocupação do garoto e mostrou a ele suas mãos também completamente machucadas. Para incutir coragem a si própria e ao irmão, falou:
_Não tem jeito, Zico. Só nós podemos fazer a casa no buraco. Se outra pessoa vier ajudar, pode contar para os alemães que pegaram o Frederico polonês.
Zico ficou pensativo por alguns segundos e depois perguntou:
_ Onde que moram os alemães, hein moço?
_ É bem longe, depois do mar, é lá onde se come cachorro.
¬_ Moço, por que eles comem cachorro? Lá não tem carne de vaca, e?
_Tem sim. Mas os soldados comem porcarias porque fazem a guerra, eu acho. O povo de lá também come porcaria porque os soldados não deixam eles saírem de casa. Se sair leva bomba na cabeça. Eles não podem comprar nada, aí eles fritam e comem os cachorros, os gatos.
_Gatos também, moço? Ainda bem que os nossos gatos não moram na terra do Frederico, o polonês. – depois, pensativo, perguntou – Será que eles comem também o papagaio da vovó?
_Não! Papagaio eu acho que eles não comem, porque papagaio é todo verde, por dentro e por fora...
_Moço! Como é que você sabe que papagaio é verde por dentro?
_Ora! É claro que é, por isso que as penas dele já nascem verdes.
Menina falava apenas o que imaginava e, principalmente, porque gostava de ver o ar de admiração do irmão diante de seus conhecimentos. Zico tinha a expressão preocupada, o rosto suado realçava a situação. Menina achou melhor mudar de assunto para evitar que ele tivesse pesadelos, como ela, quando se preocupava. Os garotos esconderam as enxadas numa moita de cana. Era muito arriscado, naquela hora, aproximar-se da casa sem ser visto. De fato, próximo do galinheiro estava Siá Doninha e uma sua comadre, que recolhiam ovos. A mulher, ao ver as crianças saindo da plantação de cana, exclamou:
_Olha, comadre, sua pequena “cotovia” está chegando da caçada, mas vem de mãos abanando.
A fama de Menina como cantora, corria por toda região da chácara. Muitas mães, cujos filhos estudavam na mesma escola onde a garota estudava, já tinham ouvido seu canto nas festas escolares.
Siá Doninha voltou-se pra direção apontada pela mulher e falou com os pequenos:
_Onde vocês andavam que nem apareceram pra comer a merenda?
Menina adiantou-se temendo que o irmão dissesse algo revelador e respondeu:
_ Nós fomos procurar besouros coloridos.
_ É? E onde estão eles? Não vejo nada em suas mãos...
A garota não se deixou encabular e acrescentou rápido:
_ Eu deixei todos lá mesmo. Eles estavam muito magros.
As duas mulheres soltaram gargalhadas. Menina despediu-se delas dizendo que devia tomar banho. Siá Doninha ainda brincou com a neta, perguntando como é que se conhece um besouro magro. Menina não quis prolongar a conversa e afastou-se do local. Zico, ao ver-se fora do alcance da avó comentou com a irmã:
_ Nossa! Ainda bem que a vovó não perguntou mais nada. Já pensou se ela olhasse a palma da nossa mão?
Quando a tarde caiu, Zico ficou ao lado do pai para ouvir o noticiário A Voz do Brasil. Aos primeiros acordes da música de abertura o garoto assumiu um ar preocupado. Dom Mozart, embora imerso nos problemas que vivia naquele dias, não deixou de perceber a atitude do filho. Curioso, perguntou ao pequeno:
_O que tá acontecendo com você, filho? Desde quando você se interessa pelo noticiário?
O garoto suspirou e disse:
_Essa música é aquela que está na partitura do tio La Fuente. Ele disse que era a história do guarani, o índio. Por que tá tocando nesse programa de guerra?
Surpreso dom Mozart perguntou:
_De que programa você está falando? Não existe nenhum programa de guerra. De onde você tirou essa idéia?
_Daí do rádio. Agora mesmo falaram no ministro da guerra, eu ouvi. Vai ter guerra aqui, não vai?
_ Não, meu filho. Essas notícias são da guerra na Coréia, bem longe daqui. Fica no continente asiático. Depois eu lhe mostro no mapa da enciclopédia, tá bom? De onde você tirou essas idéias?
_ Eu não posso falar, é segredo.
_Tá bom, se é segredo você deve guardar com você. Mas olha! Presta atenção, esse programa dá notícias de todos os ministérios. E a música que você ouve é realmente um trecho da ópera “O Guarani”, de Carlos Gomes. Amanhã, quando o seu tio chegar pra dar aula pra vocês, diga-lhe que essa música não é de guerra.
Zico ouviu as palavras do pai e rebateu.
_ Não foi o tio que falou da guerra. Então, se não vai ter guerra, o tio Antônio não precisa se esconder dos alemães, não é mesmo papai?
Mozart ouviu o menino e sem entender do que ele falava perguntou:
_Hoje você está me surpreendendo. Primeiro quis ouvir o noticiário, agora essa estória de guerra envolvendo seu tio Antônio e alemães. De onde você tirou isso?
_ Eu não tirei de nada. Eu só quero que o tio não vá pra guerra. O Frederico contou que na guerra dele os alemães batiam em todo mundo e faziam eles revelarem os segredos. O tio Antônio sabe segredos, papai?
_ Só se for segredos com as namoradas dele. Saiba que os alemães também estão em outro continente, tão longe quanto os coreanos. A guerra da qual participou o polonês, terminou há mais de cinco anos. Ele ficou doente depois do que passou, vai ser difícil esquecer tudo o que viu. E você trate de esquecer as histórias dele. É o melhor que faz.
Durante a noite, os dois pequenos tiveram dificuldade pra dormir. Os ferimentos nas mãos e o sol que haviam tomado por mais de duas horas mostravam as conseqüências. Josefa percebeu que algo não estava bem e foi examiná-los. Assustou-se quando viu as bolhas inflamadas nas mãos e as queimaduras nas costas deles. Ambos estavam com febre. Josefa acordou Siá Doninha pra pedir ajuda. Enquanto tratava dos pequenos a avó se perguntava o que eles teriam feito pra se encontrarem naquela situação. Curiosa perguntou à neta. A estória dos besouros não a convencera. A garota, mesmo debilitada pela dor, resistia em contar o que fizera.
_ Nós fomos caçar besouros, vovó. Pode perguntar pra meu irmão.
_ E como vocês fizeram tantos calos nas mãos assim? Os besouros estavam enterrados? Sim, porque parece que vocês usaram enxadas pra cavar o chão.
Zico ouviu a avó falando e lembrou-se da conversa que tivera com o pai. Só então se deu conta de que não falara do assunto com a irmã.
¬_ Moço, não vai ter guerra. O papai disse que a guerra é em outro lugar do mundo, bem longe daqui. Ele falou que os alemães do polonês estão lá na Europa, e é bem longe também. O tio Antônio não vai pra guerra.
Josefa e Siá Doninha ouviram a conversa sem entender do que o garoto falava. Menina, ainda temendo pela segurança do tio, insistiu com o irmão:
_ Zico! Você prometeu! Fica calado!
_ Calado por qual razão? - indagou sua mãe.
_ Não fica com medo não, moço - tranqüilizou-a o garoto - O papai me explicou tudo. Depois ele vai mostrar no mapa da enciclopédia, onde é que tem guerra.
Menina convenceu-se do que dizia o irmão. Josefa insistiu em saber o que tinha acontecido com eles e o que a imaginosa Menina havia feito. A própria garota respondeu:
_ Nós fomos fazer uma casa debaixo do chão pra esconder o tio Antônio.
_ Pra que isso? Pra que esconder o seu tio?
_ Pra ninguém levar ele pra guerra e os alemães não baterem nele.
Siá Doninha comoveu-se com o amor da sobrinha pelo tio e num impulso a abraçou. Depois quis saber de onde a garota tirara aquela idéia de guerra.
_ Eu vi o papai e o tio Antônio falando baixinho e eles estavam com cara de tristeza. Depois tinha aquela música e o locutor que falava do ministério da guerra... Então por que eles estão tristes?
Josefa e a mãe se entreolharam e talvez para evitar novas trapalhadas das crianças, resolveram contar o que estava se passando. Eles temiam ser mandado embora do trabalho. A Fundação Brasil Central, com sede no Rio de Janeiro, estava pra demitir vários funcionários do Centro Oeste. Era por essa razão que eles ouviam o noticiário, pra saber se o presidente havia assinado a ordem de demissão.
_ O que é demissão, mamãe? - perguntou Menina.
_ Demissão é tirar o trabalho de uma pessoa, é mandá-la embora do emprego.
_ Se tirar o trabalho, o que é que tem?
_ Sem trabalho a pessoa não recebe mais dinheiro e não pode sustentar os filhos. Seu pai tem medo de ser demitido, entendeu?
As palavras da mãe causaram mais desconforto à garota do que as bolhas e as queimaduras nas costas. O que fazer pra ajudar o pai e o tio? Demissão era um inimigo invisível, ela apenas acabara de saber de sua existência, como ajudar os dois? Sem resposta diante da nova ameaça, a garota apelou pra avó:
_ Vovó, me ensina a rezar, eu preciso ajudar o papai.