Jeca Tatu era um pobre caboclo que morava no mato, numa casinha de sapé. Vivia na maior pobreza, em companhia da mulher, muito magra e feia e de vários fichinhas pálidos e tristes.
Jeca Tatu passava os dias de cócoras, pitando enormes cigarrões de palha, sem ânimo de fazer coisa nenhuma. Ia ao mato caçar, tirar palmitos, cortar cachos de brejaúva, mas não tinha idéia de plantar um pé de couve atras da casa. Perto um ribeirão, onde ele pescava de vez em quando uns lambaris e um ou outro bagre. E assim ia vivendo.
Dava pena ver a miséria do casebre. Nem móveis nem roupas, nem nada que significasse comodidade. Um banquinho de três pernas, umas peneiras furadas, a espingardinha de carregar pela boca, muito ordinária, e só.
Todos que passavam por ali murmuravam:
- Que grandíssimo preguiçoso!
Jeca Tatu era tão fraco que quando ia lenhar vinha com um feixinho que parecia brincadeira. E vinha arcado, como se estivesse carregando um enorme peso.
- Por que não traz de uma vez um feixe grande? Perguntaram-lhe um dia.
Jeca Tatu coçou a barbicha rala e respondeu:
- Não paga a pena.
Tudo para ele não pagava a pena. Não pagava a pena consertar a casa, nem fazer uma horta, nem plantar arvores de fruta, nem remendar a roupa.
Só pagava a pena beber pinga.
- Por que você bebe, Jeca? Diziam-lhe.
- Bebo para esquecer.
- Esquecer o quê?
- Esquecer as desgraças da vida.
E os passantes murmuravam:
- Além de vadio, bêbado…
Jeca possuía muitos alqueires de terra, mas não sabia aproveitá-la. Plantava todos os anos uma rocinha de milho, outra de feijão, uns pés de abóbora e mais nada. Criava em redor da casa um ou outro porquinho e meia dúzia de galinhas. Mas o porco e as aves que cavassem a vida, porque Jeca não lhes dava o que comer. Por esse motivo o porquinho nunca engordava, e as galinhas punham poucos ovos.
Jeca possuía ainda um cachorro, o Brinquinho, magro e sarnento, mas bom companheiro e leal amigo.
Brinquinho vivia cheio de bernes no lombo e muito sofria com isso. Pois apesar dos ganidos do cachorro, Jeca não se lembrava de lhe tirar os bernes. Por que? Desânimo, preguiça…
As pessoas que viam aquilo franziam o nariz.
- Que criatura imprestável! Não serve nem para tirar berne de cachorro…
Jeca só queria beber pinga e espichar-se ao sol no terreiro. Ali ficava horas, com o cachorrinho rente; cochilando. A vida que rodasse, o mato que crescesse na roça, a casa que caísse. Jeca não queria saber de nada. Trabalhar não era com ele.
Perto morava um italiano já bastante arranjado, mas que ainda assim trabalhava o dia inteiro. Por que Jeca não fazia o mesmo?
Quando lhe perguntavam isso, ele dizia:
- Não paga a pena plantar. A formiga come tudo.
- Mas como é que o seu vizinho italiano não tem formiga no sítio?
- É que ele mata.
- E porque você não faz o mesmo?
Jeca coçava a cabeça, cuspia por entre os dentes e vinha sempre com a mesma história:
- Quá! Não paga a pena…
- Além de preguiçoso, bêbado; e além de bêbado, idiota, era o que todos diziam.
Um dia um doutor portou lá por causa da chuva e espantou-se de tanta miséria. Vendo o caboclo tão amarelo e chucro, resolveu examiná-lo.
- Amigo Jeca, o que você tem é doença.
- Pode ser. Sinto uma canseira sem fim, e dor de cabeça, e uma pontada aqui no peito que responde na cacunda.
- Isso mesmo. Você sofre de anquilostomiase.
- Anqui… o quê?
- Sofre de amarelão, entende? Uma doença que muitos confundem com a maleita.
- Essa tal maleita não é a sezão?
- Isso mesmo. Maleita, sezão, febre palustre ou febre intermitente: tudo é a mesma coisa, está entendendo? A sezão também produz anemia, moleza e esse desânimo do amarelão; mas é diferente. Conhece-se a maleita pelo arrepio, ou calafrio que dá, pois é uma febre que vem sempre em horas certas e com muito suor. O que você tem é outra coisa. É amarelão.
O doutor receitou-se o remédio adequado; depois disse: “E trate de comprar um par de botinas e nunca mais me ande descalço nem beba pinga, ouviu?”
- Ouvi, sim, senhor!
- Pois é isso, rematou o doutor, tomando o chapéu. A chuva passou e vou-me embora. Faça o que mandei, que ficará forte, rijo e rico como o italiano. Na semana que vem estarei de volta.
- Até por lá, sêo doutor!
Jeca ficou cismando. Não acreditava muito nas palavras da ciência, mas por fim resolveu comprar os remédios, e também um par de botinas ringideiras.
Nos primeiros dias foi um horror. Ele andava pisando em ovos. Mas acostumou-se, afinal…
Quando o doutor reapareceu, Jeca estava bem melhor, graças ao remédio tomado. O doutor mostrou-lhe com uma lente o que tinha saído das suas tripas.
- Veja, sêo Jeca, que bicharia tremenda estava se criando na sua barriga! São os tais anquilostomos, uns bichinhos dos lugares úmidos, que entram pelos pés, vão varando pela carne adentro até alcançarem os intestinos. Chegando lá, grudam-se nas tripas e escangalham com o freguês. Tomando este remédio você bota p’ra fora todos os anquilostomos que tem no corpo. E andando sempre calçado, não deixa que entrem os que estão na terra. Assim fica livre da doença pelo resto da vida.
Jeca abriu a boca, maravilhado.
- Os anjos digam amém, sêo doutor!
Mas Jeca não podia acreditar numa coisa: que os bichinhos entrassem pelo pé. Ele era “positivo” e dos tais que “só vendo”. O doutor resolveu abrir-lhe os olhos. Levou-o a um lugar úmido, atrás da casa, e disse:
- Tire a botina e ande um pouco por aí.
Jeca obedeceu.
- Agora venha cá. Sente-se. Bote o pé em cima do joelho. Assim. Agora examine a pela com esta lente.
Jeca tomou a lente, olhou e percebeu vários vermes pequeninos que já estavam penetrando na sua pele, através dos poros. O pobre homem arregalou os olhos assombrado.
- E não é que é mesmo? Quem “havera” de dizer!…
- Pois é isso, sêo Jeca, e daqui por diante não duvide mais do que a ciência disser.
- Nunca mais! Daqui por diante nha ciência está dizendo e Jeca está jurando em cima! T’esconjuro! E pinga, então, nem p’ra remédio…
Tudo o que o doutor disse aconteceu direitinho! Três meses depois ninguém mais conhecia o Jeca.
A preguiça desapareceu. Quando ele agarrava no machado, as arvores tremiam de pavor. Era pan, pan, pan… horas seguidas, e os maiores paus não tinham remédio senão cair.
Jeca, cheio de coragem, botou abaixo um capoeirão para fazer uma roça de três alqueires. E plantou eucaliptos nas terras que não se prestavam para cultura. E consertou todos os buracos da casa. E fez um chiqueiro para os porcos. E um galinheiro para as aves. O homem não parava, vivia a trabalhar com fúria que espantou até o seu vizinho italiano.
- Descanse um pouco, homem! Assim você arrebenta… diziam os passantes.
- Quero ganhar o tempo perdido, respondia ele sem largar do machado. Quero tirar a prosa do “intaliano”.
Jeca, que era um medroso, virou valente. Não tinha mais medo de nada, nem de onça! Uma vez, ao entrar no mato, ouviu um miado estranho.
- Onça! Exclamou ele. É onça e eu aqui sem nem uma faca!…
Mas não perdeu a coragem. Esperou a onça, de pé firme. Quando a fera o atacou, ele ferrou-se tamanho murro na cara, que a bicha rolou no chão, tonta. Jeca avançou de novo, agarrou-a pelo pescoço e estrangulou-a
- Conheceu, papuda? Você pensa então que está lidando com algum pinguço opilado? Fique sabendo que tomei remédio do bom e uso botina ringideira…
A companheira da onça, ao ouvir tais palavras, não quis saber de histórias – azulou! Dizem que até hoje está correndo…
Ele, que antigamente só trazia três pausinhos, carregava agora cada feixe de lenha que metia medo. E carregava-os sorrindo, como se o enorme peso não passasse de brincadeira.
- Amigo Jeca, você arrebenta! Diziam-lhe. Onde se viu carregar tanto pau de uma vez?
- Já não sou aquele de dantes! Isto para mim agora é canja, respondia o caboclo sorrindo.
- Quando teve de aumentar a casa, foi a mesma coisa. Derrubou no mato grossas perobas, atorou-as, lavrou-as e trouxe no muque para o terreiro as toras todas. Sozinho!
- Quero mostrar a esta paulama quanto vale um homem que tomou remédio de Nha Ciência, que usa botina cantadeira e não bebe nem um só martelinho de cachaça.
O italiano via aquilo e coçava a cabeça.
- Se eu não tropicar direito, este diabo me passa na frente, Per Bacco!
Dava gosto ver as roças do Jeca. Comprou arados e bois, e não plantava nada sem primeiro afofar a terra. O resultado foi que os milhos vinham lindos e o feijão era uma beleza.
O italiano abria a boca, admirado, e confessava nunca Ter visto roças assim.
E Jeca já não plantava rocinhas como antigamente. Só queria saber de roças grandes, cada vez maiores, que fizessem inveja no bairro.
E se alguém lhe perguntava:
- Mas para que tanta roça, homem? Ele respondia:
- É que agora quero ficar rico. Não me contento com trabalhar para viver. Quero cultivar todas as minhas terras, e depois formar aqui uma enorme fazenda. E hei de ser até coronel…
E ninguém duvidava mais. O italiano dizia:
- E forma mesmo! E vira mesmo coronel! Per la Madonna!…
Por esse tempo o doutor passou por lá e ficou admiradíssimo da transformação do seu doente.
Esperara que ele sarasse, mas não contara com tal mudança.
Jeca o recebeu de braços abertos e apresentou-o à mulher e aos filhos.
Os meninos cresciam viçosos, e viviam brincando contentes como passarinhos.
E toda gente ali andava calçada. O caboclo ficara com tanta fé no calçado, que metera botinas até nos pés dos animais caseiros!
Galinhas, patos, porcos, tudo de sapatinho nos pés! O galo, esse andava de bota e espora!
- Isso também é demais, sêo Jeca, disse o doutor. Isso é contra a natureza!
- Bem sei. Mas quero dar um exemplo a esta caipirada bronca. Eles aparecem por aqui, vêem isso e não se esquecem mais da história.
Em pouco tempo os resultados foram maravilhosos. A porcada aumentou de tal modo, que vinha gente de longe admirar aquilo. Jeca adquiriu um caminhão Ford, e em vez de conduzir os porcos ao mercado pelo sistema antigo, levava-os de auto, num instantinho, buzinando pela estrada afora, fon-fon! fon-fon!…
As estradas eram péssimas; mas ele consertou-as à sua custa. Jeca parecia um doido. Só pensava em melhoramentos, progressos, coisas americanas. Aprendeu logo a ler, encheu a casa de livros e por fim tomou um professor de inglês.
- Quero falar a língua dos bifes para ir aos Estados Unidos ver como é lá a coisa.
O seu professor dizia:
- O Jeca só fala inglês agora. Não diz porco; é pig. Não diz galinha! É hen… Mas de álcool, nada. Antes quer ver o demônio do que um copinho da “branca”…
Jeca só fumava charutos fabricados especialmente para ele, e só corria as roças montado em cavalos árabes de puro sangue.
- Quem o viu e quem o vê! Nem parece o mesmo. Está um “estranja” legítimo, até na fala.
Na sua fazenda havia de tudo. Campos de alfafa. Pomares belíssimos com quanta fruta há no mundo. Até criação de bicho da seda; Jeca formou um amoreiral que não tinha fim.
- Quero que tudo aqui ande na seda, mas seda fabricada em casa. Até os sacos aqui da fazenda têm que ser de seda, para moer os invejosos…
E ninguém duvidava de nada.
- O homem é mágico, diziam os vizinhos. Quando assenta de fazer uma coisa, faz mesmo, nem que seja um despropósito…
A fazenda do Jeca tornou-se famosa no país inteiro. Tudo ali era por meio do rádio e da eletricidade. Jeca, de dentro do seu escritório, tocava num botão e o cocho do chiqueiro se enchia automaticamente de rações muito bem dosadas. Tocava outro botão, e um repuxo de milho atraia todo o galinhame…
Suas roças eram ligadas por telefones. Da cadeira de balanço, na varanda, ele dava ordens aos feitores lá longe.
Chegou a mandar buscar no Estados Unidos um telescópio.
- Quero aqui desta varanda ver tudo que se passa em minha fazenda.
E tanto fez, que viu. Jeca instalou os aparelhos e assim pode, da sua varanda, com o charutão na boca, não só falar por meio do rádio para qualquer ponto da fazenda, como ainda ver, por meio do telescópio, o que os camaradas estavam fazendo.
Ficou rico e estimado, como era natural; mas não parou aí. Resolveu ensinar o caminho da saúde aos caipiras das redondezas. Para isso montou na fazenda e vilas próximas vários Postos de Maleita, onde tratava os enfermos de sezões; e também Postos de Anquilostomose, onde curava os doentes de amarelão e outras doenças causadas por bichinhos nas tripas.
O seu entusiasmo era enorme. “Hei de empregar toda a minha fortuna nesta obra de saúde geral, dizia ele. O meu patriotismo é este. Minha divisa: Curar gente. Abaixo a bicharia que devora o brasileiro…”
E a curar gente da roça passou Jeca toda a sua vida. Quando morreu, aos 89 anos, não teve estátua, nem grandes elogios nos jornais. Mas ninguém ainda morreu de consciência tranqüila. Havia cumprido o seu dever até o fim.
Meninos: nunca se esqueçam desta história; e, quando crescerem, tratem de imitar o Jeca. Se forem fazendeiros, procurem curar os camaradas da fazenda. Além de ser para eles um grande benefício, é para você um alto negócio. Você verá o trabalho dessa gente produzir três vezes mais.
Um país não vale pelo tamanho, nem pela quantidade de habitantes. Vale pelo trabalho que realiza e pela qualidade da sua gente. Ter saúde é a grande qualidade de um povo. Tudo mais vem daí.
Autor: Monteiro Lobato
Produção Visual: Carlos Cunha