NO dia 5 de novembro de 1669, voltando de uma viagem aos mares do sul, o Antílope, navio da marinha mercante inglesa, enfrentou violenta tempestade que o projetou sobre uns recifes.
0 cirurgião de bordo, Lemuel Gulliver, único sobrevivente de toda a tripulação, conseguiu, depois de esforços sobre-humanos, chegar a terra firme.
A noite chegara. Não descobrindo nenhum sinal de vida, Gulliver, morto de fadiga, deitou-se de costas e não tardou em dormir profundamente. 0 sol já estava alto quando acordou no dia seguinte.
Quis levantar-se, mas, oh surpresa! Sentiu os cabelos presos ao chão e os braços e pernas imobilizados por uma porção de amarras. Erguendo ligeiramente a cabeça, apesar da dor que os cabelos lhe causavam, viu sobre todo o seu corpo uma multidão de homenzinhos que não mediam mais de 15 centímetros de altura.
0 espanto e o medo lhe fizeram soltar tamanho grito que os pequenos personagens ficaram apavorados.
Na sua precipitação em fugir, alguns caíram de grande altura e tiveram muita dificuldade em se levantar.
Aproveitando-se da confusão, Gulliver conseguiu afrouxar os nos que lhe prendiam a mão, esquerda. Esperava soltar-se completamente, mas, seus minúsculos agressores não lhe deram tempo. Assim que voltaram a si do susto, atiraram-lhe no rosto uma multidão de flechas do tamanho de agulhas.
Compreendendo que nada conseguiria pela violência, Gulliver desistiu de se mexer. Logo as flechas cessaram de cair sobre ele. Um estrado foi logo rapidamente armado perto de seu rosto, e um personagem que parecia ser o chefe dos homenzinhos, ali se instalou e começou longo discurso numa língua que Gulliver nunca ouvira. Porem, pelos gestos que fazia, Gulliver percebeu que ele o convidava a ficar quieto, senão a resposta seria a violência. Da melhor maneira que pôde, Gulliver deu a entender que se submetia, e, como estivesse morto de fome, levou diversas vezes a mão à boca. Imediatamente lhe trouxeram pratos repletos de alimentos finos que teriam sido suficientes para alimentar a multidão de homenzinhos que o cercava.
Gulliver, para grande espanto deles, comeu-os em poucos segundos, assim como esvaziou de um trago os minúsculos barris de vinho que lhe foram apresentados.
Enquanto ele se alimentava, soldados arrancaram as flechas que lhe cobriam as mãos e o rosto, e esfregaram as feridas com ungüento perfumado que acalmou suas dores.
Mal terminara sua refeição, e já dormia profundamente sob o efeito de um narcótico que tinha misturado a sua comida.
Durante este sono foi arrastado para uma carroça puxada por centenas de cavalos e levado até as portas da capital do pais. Lá , enquanto os curiosos o
observavam de cima das muralhas, acordou e um oficial lhe fez compreender que punham à sua disposição um templo vazio situado fora da cidade.
Gulliver teve alguma dificuldade em penetrar em sua, nova casa, porque a porta era muito estreita, mas verificou com satisfação que podia esticar-se completamente em seu interior.
Pouco depois o oficial ordenou a seus homens que examinassem os bolsos de Gulliver. Entre os objetos dali retirados o que provocou a mais viva curiosidade
foi o seu relógio, sendo que muitos foram os que vieram admirar este objeto esquisito do qual eles não compreendiam a utilidade.
Durante este tempo (Gulliver o soube mais tarde) o governo do reino reunira-se para deliberar a seu respeito.
Finalmente o rei decidiu que todos os dias uma das diversas províncias do reino forneceria para a alimentação de Gulliver seis bois, 40 carneiros e quantidade suficiente de pão e vinho. Além disso, designou 600 pessoas para seu serviço e encarregou os melhores professores de lhe ensinarem a língua do país.
Gulliver tirou rápido proveito dessas lições, e procurou logo ampliar seus conhecimentos a respeito do pais no qual se encontrava.
Soube então que este se chamava Liliput, e que seus habitantes eram os liliputianos. Eles acreditavam que o universo se limitava a seu reino e ao de Blefuscu, distante dali uns dois quilômetros porque há dois mil anos seus historiadores não mencionavam qualquer outro país. Quanto a Gulliver, que eles chamavam entre eles de .homem-montanha. Acreditavam que tivesse
caído da lua ou de algum outro planeta.
Não podiam imaginar que semelhante raça de homens pudesse existir sobre a terra.
Pouco a pouco Gulliver foi conquistando a confiança do rei e de seus súditos. Explicaram-lhe a razão de certos jogos muito em voga em Liliput. A dança da corda, especialmente constituía grande sucesso, pois neste país um bom dançarino poderia pretender aos mais importantes cargos do estado.
0 grande tesoureiro fora escolhido para esta função porque era perito em saltos mortais. Os liliputianos tinham adotado este curioso processo de escolher os
ministros porque julgavam que - o poder não deve ser privilegio de algumas pessoas inteligentes, pois os erros de um homem honesto são menos perigosos que os atos desonestos de um indivíduo esperto demais.
Gulliver teve a idéia de ensinar-lhes novos jogos que permitissem mostrar sua destreza e sua boa vontade.
Verificara que as provas que determinavam a escolha para os cargos públicos eram muito perigosas e que muitos liliputianos ficavam aleijados, vítimas de sua ambição.
Obteve imenso sucesso fazendo que cavaleiros saltassem por cima de sua mão estendida no chão um escudeiro real conseguiu até realizar a proeza de pular por cima de seu sapato.
Um dia ele teve a idéia de fazer a guarda do rei manobrar em cima de seu lenço amarrado em quatro estacas, e esticado como a pele de um tambor.
0 rei ficou encantado com o espetáculo, e alguns dias mais tarde tendo que assistir ao desfile do exército, pediu a Gulliver que fizesse passar as tropas entre suas pernas, como sob um arco de triunfo
Porém, a pedido de certos conselheiros que achavam que o sustento de Gulliver ficava muito caro, este foi convidado a assinar um compromisso solene que o obrigava a dar auxilio e a prestar assistência ao reino de Liliput em todas as ocasiões em que seu tamanho e sua força pudessem ser úteis ao país.
Em troca desta promessa, Gulliver teria a garantia de receber todos os dias a alimentação necessária ao sustento de 1874 liliputianos. (Este número fora
calculado pelos matemáticos mais célebres.)
Gulliver obteve igualmente a autorização de visitar a capital de Liliput chamada Mildendo.
Com infinitas precauções, atravessou a muralha coroada de torres que a cercava, e chegou até o centro da cidade, onde se erguia o palácio do rei. Pelas janelas abertas em sua honra, pôde examinar à vontade o interior das casas decoradas com luxo e bom gosto que o deixaram encantado.
A rainha mostrou-se muito lisonjeada com as palavras amáveis de Gulliver e concedeu-lhe a honra de ir até o balcão e dar-lhe sua mão a beijar.
Alguns dias mais tarde, o ministro das Relações Exteriores pôs Gulliver a par do estado das relações com o reino de Blefuscu.
Faz muito tempo, explicou ele, todo o mundo estava convencido que a melhor maneira de abrir um ovo era quebrá-lo pela ponta mais grossa. Ora, o príncipe
herdeiro tendo cortado um dedo assim fazendo, o rei fez publicar edital ordenando a seus súditos que quebrassem os ovos sempre pelo lado mais pontudo. Esta decisão autoritária provocou vivo desagrado. Houve revoltas, seguidas de medidas muito severas, e numerosos liliputianos foram obrigados a exilar-se em Blefuscu.
0 soberano deste país tomou a si suas queixas e desde então uma guerra acirrada divide os reinos de Liliput e de Blefuscu.
No momento sabemos por nossos espiões que importante esquadra está pronta a ser lançada ao mar. Estes preparativos preocupam seriamente o nosso rei que desejaria vê-lo agir imediatamente contra esta ameaça.
Gulliver, fiel à sua promessa, tomou logo providências para ajudar os seus amigos. Fez preparar grande quantidade de cabos e, tendo verificado que podia atravessar facilmente a pé e a nado a estreita passagem
que separava as ilhas Liliput e de Blefuscu, tirou o casaco e os sapatos e dirigiu-se para a esquadra inimiga.
Em menos de uma hora chegou às proximidades dos navios de Blefuscu. As tripulações e os soldados que estavam a bordo ficaram apavorados com a chegada de Gulliver. Quase todos se atiraram à água e procuraram salvar-se nadando até Blefuscu.
Os mais valentes continuaram em seu posto, e fizeram chover sobre Gulliver, todas as flechas que traziam, mas, quando viram a inutilidade de sua resistência, abandonaram, por sua vez, os navios.
Então Gulliver, utilizando os cabos que trouxera, reuniu toda a esquadra, rebocou-a e voltou para Liliput.
Foi recebido com demonstrações de alegria indescritíveis. Festas e cerimônias sucederam-se durante muitos dias para comemorar seu sucesso.
Os melhores cozinheiros foram requisitados para o banquete que o rei e a rainha ofereceram em sua honra. Mas estas provas de gratidão foram logo esquecidas quando Gulliver se recusou a prosseguir na luta contra Blefuscu. Ele demonstrou que todo o perigo de invasão estava evitado. E que, portanto, Liliput devia aceitar as propostas de paz.
0 rei e seu governo desejariam explorar completamente a superioridade que tinham sobre seus inimigos e reduzir assim Blefuscu à escravidão.
Tendo-se Gulliver recusado a servir a tais fins, o rei cedeu afinal e a embaixada de Blefuscu obteve a assinatura de uma paz justa.
Gulliver não ignorava que sua atitude prudente e generosa atrairia sobre ele o ódio de alguns conselheiros do rei, invejosos de sua influência cada vez maior.
Certa noite um personagem importante a quem Gulliver tivera ocasião de prestar serviço veio procurá-lo secretamente para pô-lo ao corrente de alguns perigos que o ameaçavam.
Soube assim que o conselho do rei estudara as acusações feitas contra ele, especialmente pelo almirante em chefe. Este, com efeito, ficara muito irritado com a facilidade com que Gulliver capturara a esquadra de Blefuscu e era um dos mais encarniçados em afirmar que Gulliver era um traidor.
Então, desde que Gulliver comunicara sua intenção de visitar Blefuscu, os ataques de seus inimigos haviam redobrado contra ele, e o rei acabava de aceitar a suacondenação à morte.
Gulliver desanimado com tanto ódio e tanta ingratidão, resolveu deixar Liliput sem procurar provar que era inocente.
Foi então a Blefuscu, onde foi acolhido generosamente.
Ali ficou até o dia em que o mar, tendo lançado à costa uma canoa ainda em bom estado, ele consertou- a, e encheu-a com todas as provisões que o reino de Blefuscu pôde oferecer-lhe, e fez-se ao largo. Alguns dias depois teve a felicidade de cruzar com um navio que o recolheu e levou de volta ao seu país.
Autor: Jonathan Swift
Produção Visual: Carlos Cunha