Apesar de apaixonado pela navegação marítima, não tinha queixas em relação ao nome que lhe fora dado na pia batismal em homenagem ao piloto soviético, que se destacara na escola de Saratov.Yuri, o artesão pernambucano, queria registrar o filho com o Gagarin, quem sabe, o menino poderia vir a ser tão famoso quanto aquele primeiro astronauta a orbitar a Terra.
A mãe protestou:
—Não quero mais um ateu dentro de casa!
— Não vamos brigar. Fernão é o nome dele.
O menino cresceu em estatura, mas a idade mental, não passava dos seis anos. Abria a torneira e ficava vendo o riacho escorrer na ardósia. Depois, punha fim ao dilúvio, desligando a água, para não afogar uma formiga que passava distraída. Todas as coisas lhe devem fidelidade e obediência, do contrário, seriam punidas. Quantos carrinhos queimados em fogueira?... Quantos socos e pontapés levaram as portas e paredes porque não saiam de sua frente?
Olhar distante, desatento aos estímulos externos, parecia viver um mundo diferente daquele dos falantes. Criou seu próprio vocabulário para dar nome às coisas, de modo que sua comunicação só era possível com a família, e com as pessoas de seu relacionamento. Bité era chupeta, e menino, miné. Em seu país, a rede pública de ensino, não estava capacitada para lidar com crianças portadoras de necessidades especiais, se os pais não o houvessem remanejado para um colégio particular, Fernão jamais teria se tornaria aviador. Contudo, até realizar seus sonhos de pertencer à Esquadrilha da Fumaça, ainda teria que navegar muitas milhas. O pai quis brincar com uma réplica do Titanic. O menino não gostou. O medo de naufrágio o atormentava. Seria trauma por causa do Almirante Cohrne? E puxava conversas estranhas:
— Peixe gosta de picolé?
— Que conversa! Onde peixe vai encontrar picolé pra chupar?
Era preciso entrar no mundo dos autistas, se quisesse entender o que o filho dizia. Suas ideias não eram desalinhadas, elas ocorriam numa ótica diferente, superior à compreensão daqueles que se dizem normal. Aprendia com facilidade o que lhe interessava, mas tinha dificuldade de concentração. Não era autista, isso não era. Mas, era cedo demais para atribuir ao filho um diagnóstico de esquizofrenia. Teria inteligência acima da média ou muito baixa? Qualquer insignificante obstáculo lhe era pedra de tropeço. Caia com frequência e se acidentava numa garrafa descartável.
O menino insistiu na pergunta.
— Se um navio afundar em mar gelado a gente vira picolé?
O pai desconversou, contando-lhe a história do profeta Jonas apanhado por um peixe gigante.
— Peixe grande comeu o profeta?
— Não comeu! Dizem que a boca do tubarão-baleia é como uma sala de estar, e quando a presa é grande, fica ali por algumas horas ou dias, antes de ser empurrada para as entranhas do animal. O profeta Jonas, julgando estar numa caverna, tateou, até encontrar uma corda, talvez as cordas vocais da baleia ou as guelras. Isso provocou cócegas insuportáveis no animal, que, dando um espirro gigantesco, atirou o profeta na praia.
Sabia que era preciso entrar no mundo das crianças, se quisesse compreendê-las melhor. Entrar no mundo delas e tentar trazê-las para o mundo dos considerados normais. Até certo ponto, Fernão era perfeccionista, criterioso naquilo que gostava de fazer. Conversava com seus brinquedos e achava que eles eram capazes de obedecer às suas ordens de comando. Ele parece ser uma pessoa normal. Claro que quase toda criança tem ou teve sua fantasia de viajar num mundo encantado em que ela seja poderosa. Ser um Policial, ser um Bombeiro que resolve tudo, chegando na hora certa com seu Trovão Azul... thu... thu... thu.
Apaixonado por navegação, Yuri mantinha em casa um tesouro em réplicas da navegação e da aeronáutica. Aprendera a brincar, desafiar os perigos, nas grandes fantasias da imaginação, com o intento de ocupar a emente do filho. Fizera até uma miniatura do 14BIS, com motor movido a metanol e divertia-se controlando da terra aquela engenhoca como se fosse Santos Dumont, sobrevoando Eiffel.
Temendo reprimenda da mulher, Yuri guardou a sete chaves a certidão de nascimento do filho. O varão tinha nome de gente famosa: Fernão de Noronha Capelo.
— Não sou ouvida nem para escolher o nome de meu filho. Essa criança vai ter trauma com o nome — disse a mãe ao tomar conhecimento do registro de Fernão. Ela entrou no quarto e trancou a porta com duas voltas na chave. Ele saiu de casa. Era uma tarde cinzenta do mês de agosto, quando o pai de Fernão abandonou o lar e família.
***
Adalberto Lima, trecho de Estrada sem fim...
Imagem: Internet
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