A menina olhava o Tocador de Flauta pregado na cruz. Machucado. Desprezado. Coberto de chagas. Resignado, não reclamava, não levantava a voz.
— Foste tu que tocaste flauta, e uma rataiada atirou-se ao e se afogou?
— Aquele é outro tocador de flauta.
Ravenala percebeu que ainda não era capaz de compreender tudo. Nem mesmo se rataiada é coletivo de rato, e preferiu mudar o rumo de suas indagações:
—O vovô mora nesta parede, mas não desce para conversar comigo.
— Teu avô mora no céu.
— Chanana disse que meu avô morava numa estrela.
— Ele é uma estrela. Olhe para o céu. Aquelas estrelas são as almas dos fiéis cristãos. A lua são as almas religiosas.
— Não consigo reconhecer uma estrela especial, entre milhões de seres luminosas. Qual delas é meu avô Generoso?
— Não faça distinção das coisas criadas, elas são obra de minhas mãos. Eu dei a cada uma o mesmo brilho, de modo que, quando olhares as estrelas, saberás que teu avô Generoso é uma delas, assim, amarás a todas, igualmente.
— Quero ser uma estrela!
— Ainda não é chegada tua hora. Vais crescer, tornar-se adulta...
— Quero crescer logo.
— Como nas novelas, a existência humana é divida em capítulos. És ainda e apenas a epigênese da vida.
— Não consigo compreender...
— Se ouvires Aquele que toca flauta à beira do mar, tudo que lhe parece obscuro, virá às claras e a vida brilhará como o sol.
O desejo de tornar-se estrela invadiu a pequena a alma da menina Ravenala. Mas, os dias se lhe pareciam lentos, viajando, preguiçosamente, nos ponteiros do tempo.
— São doze horas. Venha almoçar!
— Como pode ser doze horas, se só faz seis que o dia amanheceu?
— Boa pergunta, Ravenala. Tem sentido. Como sugeres que seja?
— O dia deve começar quando o sol se levanta. E terminar quando ele se deita.
— No tempo de Jesus era assim: depois das dezoito horas era outro dia... é do teu agrado, não?
— Sim. O dia é dia, a noite é outro dia. Dois dias: um claro e outro escuro. Talvez no céu seja assim.
— Lá não há noites nem trevas, tudo é tão claro como o dia. Mas não há dia. É como se vários sóis nascessem, em cada fração de segundos..
— Como no asteroide do Pequeno Príncipe?
— Sim, como no asteroide B 618.
No outro dia, a menina não foi ver o amigo que mora no quarto misterioso. Deitou-se, e ficou contando as sombras das pessoas que passavam de cabeça para baixo, na calçada. Algum menino soltou a mão de uma mulher e desapareceu da imagem invertida, projetada na parede.
A campainha toca.
— A senhora não quer entrar?
— Não! Só vim trazer o Bob. Pego antes das dezoito.
A mãe de Bob nunca entrava. Olhava, demoradamente, para Ravenala e pensava: ‘Se fossem gêmeos, não se pareciam tanto: os mesmos olhos, cabelo, nariz...’ E repreendeu o pensamento, pondo fim ao discurso de sua mente.
— Oi, Ravenala!
— Oi Bob! Vou contar um segredo: em minha casa tem um quarto secreto. Misterioso.
— Quero conhecer!
— Eu disse que é secreto.
— Amigo não esconde segredo do outro.
— Se você prometer...
— Prometo!
— Olha lá hein! Quem revela um segredo perde a confiança de quem lhe confidenciou.
— Posso ver o quarto agora?
— Mostro a entrada e fico entretendo a vovó. Você entra.
— É muito escuro?
— Meia-luz. Tem uma janela, mas a vovó não deixa abrir.
E, dirigindo-se para a cozinha, Ravenala põe em prática seu plano de manter a avó ocupada.
— A senhora faz um bolo pra nós?
— Sim, sim. Eu faço! Cadê seu coleguinha de escola?
— Deve ter ido ao banheiro
Robert chega caranguejando, e o olhar fixo na porta que dá para o quarto escuro. Tropeça em Corina.
— Andando de costas? Viu assombração, menino?
— Desculpe, senhora. Estava procurando Ravinha.
— Ela está aqui. Desculpe se fui grosseira. Não quis ofender.
— Nada não. Nada não! Desculpe mais uma vez, vó. Foi uma aposta que fizemos.
— Gostei do vó. Ganhei um netinho, bonito e educado. ‘Aposta... Essas crianças!...’
Minutos depois, na sala de estar.
— Nossa! como surgiu a ideia da aposta? Nós não apostamos nada.
— A adrenalina aflora nos momentos de perigo, e o cérebro imediatamente, envia um fluxo luminoso, apontando opções que podem evitar acidentes.
— Minha avó é boazinha. Só não me deixa entrar no quarto dos mistérios.
— Aquele é seu quarto secreto?
— Sim! Conta o que viste!
— Vi um quarto vazio. Não há nele nenhuma porta secreta. Nenhum portal para um mundo desconhecido.
— Então o Portal não se abriu pra você?...
— Não. Para mim não se abriu. Você já fez viagens através do portal?
Ravenala arrependeu-se de ter falado do quarto secreto.
— Vou contar: estava sozinha no quarto — é preciso estar sozinho — Tive vontade de fechar os olhos. E quando abri...
— Ravenala, chame seu colega! O bolo está pronto — disse a voz vinda da cozinha.
— Conta logo!...
—Não dá. Demora muito.
— Fizeste contato com o invisível?
— É brincadeira. Só queria saber se tens medo de escuro.
— Medo, não tenho. Vi um velho conversando com um homem machucado. O velho também estava ferido. Não tive medo.
— Ravenala!
— Tô indo vó.
— Contei tudo que vi. Mas o portal não se abriu. Agora conta o que viste, Ravinha!
— O velho, nunca vi.
— Também não vi nada. Estava brincando. Só para ver se tinhas medo de visagem.
— Não é válido! Usaste o mesmo argumento que eu... Não tenho medo de assombração, casa mal assombrada...Não tenho medo de nada...
— Não existe casa mal assombrada. Existe gente medrosa que pensa estar vendo assombração.
— Chanana diz que há um cabedal enterrado na antiga senzala. Vaqueiros viram luzerna e um menino travesso, que esconde as coisas...é Romãozinho o menino invisível. Ele fica vagando por aí. Praga de mãe.
— Mãe não deveria rogar praga em filho!
—É mesmo! A gente só deve dizer coisa boa...
A portinhola rangeu nas engrenagens enferrujadas.
— Espera um pouco, mãe — disse Robert. Ravenala começou a contar uma história agora mesmo!
— Mais cinco minutos, então.
— Será porque as mães só dão cinco minutos?
— E a gente fica meia hora.
Os dois riram.
Robert não acreditou que o quarto secreto fosse só uma brincadeira. ‘Há mistérios ali.’
— Conta logo, Ravinha. Só temos mais cinco minutos! O que viu?
— Aquele quarto não tem mistério algum! O meu tem. O meu tem mistério!
— Então fala!
— Se o tempo estiver nublado, não funciona. Mas com a luz do sol, em determinadas horas do dia, vejo imagens invertidas passando na calçada... Você mesmo vinha de cabeça para baixo. Eu o vi antes de tocar a campainha.
— É engraçado, mas deve ter alguma explicação para isso.
— Deve ter...
— Vamos ver as figuras invertidas?
— Cadê o sol? Sem sol não tem sombra... Só vejo imagens de pessoas andando de cabeça para baixo, em terminada hora de um dia ensolarado.
— Sombra lembra assombração...
— Pode ser — disse entregando a Robert um diário — ‘Leia só a página de ontem!’
‘Vi tuas lágrimas, escorrerem aos quatro cantos, como chafariz ou cântaro partido. Vi teus segredos guardados, sentimentos reprimidos que perturbam a alma. Vi um cântaro de lágrimas, recolhidas no silêncio das noites mal dormidas na insônias e pesadelo de teus medos...’
— Não tenho medo. Nem sei se entendi o que escreveste! Talvez os versos toquem a ferida de alguém, nalgum sentimento represado, paixão, saudade, sofrimento, sei lá o quê!
— Apanhei de um livro. Não copiei. Fiz o cruzamento com o que li.
Vamos, Robert! — disse dona Leide — já passou da hora.
Passou muito — pensou Dulcineia — deitada que estava em seu quarto, desde cedo.
***
Adalberto Lima, trecho de "Estrela que o vento soprou."
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