No dia seguinte, a menina não foi ver o amigo que mora no quarto misterioso. Deitou-se, e ficou contando as sombras das pessoas que passavam de cabeça para baixo, na calçada. Ela viu passar um menino de mãos dadas com uma mulher. Logo, ambos desapareceram da imagem invertida, projetada na parede. Alguém tocou a campainha. Corina atendeu. — A senhora não quer entrar? — Não! Só vim trazer o Bob. Pego antes das dezoito. A mãe de Bob nunca entrava. Olhava, demoradamente, para Ravenala e dizia a seu coração: ‘Se fossem gêmeos, não se pareciam tanto: os mesmos olhos, cabelo, nariz...’ E repreendeu o pensamento, punha fim ao discurso de sua imaginação. — Oi, Ravenala! — Oi Bob! Em minha casa tem um quarto secreto. Misterioso. — Quero conhecer! — Eu disse que é secreto. — Amigo não esconde segredo do outro. — Se você prometer... — Prometo! — Olha lá hein! Quem revela o segredo de um amigo, perde a confiança e o amigo. — Posso ver o quarto agora? — Mostro a entrada e fico entretendo a vovó. Você entra. — É muito escuro? — Meia-luz. Tem uma janela, mas a vovó não deixa abrir. E, dirigindo-se para a cozinha, Ravenala põe em prática seu plano de manter a avó ocupada. — A senhora faz um bolo pra nós? — Sim, sim. Eu faço! Cadê seu coleguinha de escola? — Deve ter ido ao banheiro Robert, olha fixamente a porta que dá acesso ao quarto secreto. Volta depressa, caranguejando e tropeça em Corina. — Caminhando de costas? Viu assombração, menino? — Desculpe, senhora. Estava procurando Ravinha. — Ela está aqui. Desculpe se fui grosseira. Não quis ofender. — Nada não. Nada não! Desculpe mais uma vez, vó. Foi uma aposta que fizemos. — Gostei do vó. Ganhei um netinho, bonito e educado. ‘Aposta... Essas crianças!...’ Minutos depois, na sala de estar. — Nossa, como surgiu a ideia da aposta? Não apostamos nada... — A adrenalina aflora nos momentos de perigo, e o cérebro imediatamente, envia um fluxo luminoso, sugerindo opções que podem evitar situação de risco. — Minha avó é boazinha. Só não me deixa entrar no quarto dos mistérios. — Aquele é seu quarto secreto? — Sim! Conta o que viste! — Vi um quarto vazio. Não há nele nenhuma porta secreta. Nenhum portal para um mundo desconhecido. — Então o Portal não abriu pra você?... — Não. Para mim não se abriu. Você já fez viagens através do portal? Ravenala arrependeu-se. Não deveria ter falado do quarto secreto. — Que viste no quarto secreto? Insiste Robert. — Vou contar: estava sozinha no quarto — é preciso estar sozinho — Tive vontade de fechar os olhos. E quando abri... — Ravenala, chame seu colega! O bolo está pronto — disse a voz vinda da cozinha. — Conta logo!... —Não dá. Demora muito. — Fizeste contato com o invisível? — É brincadeira. Só queria saber se tens medo de escuro. — Medo, isso não tenho. Vi um velho conversando com um homem machucado. O velho também estava ferido. Contei tudo que vi. Mas o portal não se abriu. Agora conta o que viste. — O velho, nunca vi. — Também não vi nada — Disse Robert — Eu estava brincando. Só para ver se tinhas medo de visagem. — Não é válido! Usaste o mesmo argumento que eu. — Não tenho medo de assombração,. Não tenho medo de casa mal assombrada. Não tenho medo de nada. Não existe casa mal assombrada. Existe gente medrosa que pensa estar vendo assombração. — Chanana disse que tem um cabedal enterrado na antiga senzala da fazenda Campo Grande. Vaqueiros viram luzerna. A portinhola rangeu. — Espera um pouco, mãe — disse Robert. Ravenala começou a contar uma história agora mesmo! — Mais cinco minutos, então. — Será porque as mães só dão cinco minutos? — E a gente fica meia hora. Os dois riram. Robert não acreditou que o quarto secreto fosse só uma brincadeira. — Conta logo, Ravinha. Só temos mais cinco minutos! O que viu? — Aquele quarto não tem mistério algum! O meu tem. O meu tem mistério! — Então fala! — Se o tempo estiver nublado, não funciona. Mas com a luz do sol, em determinadas horas do dia, vejo imagens invertidas passando na calçada. Você mesmo vinha de cabeça para baixo. Eu o vi antes de tocar a campainha. — É engraçado, mas deve ter alguma explicação para isso. — Deve ter... — Vamos ver as figuras invertidas? — Cadê o sol? Só vejo sombras de pessoas andando de cabeça para baixo, em terminada hora de um dia ensolarado. — Sombra lembra assombração... — Pode ser — disse Ravenala entregando a Robert o diário dela — leia só a página de ontem! ‘Vi tuas lágrimas escorrerem no silêncio das noites mal dormidas nas insônias e pesadelos de teus medos...’ Vamos, Robert! — disse dona Leide — já passou da hora. Passou muito — pensou Dulcineia — deitada que estava em seu quarto, desde cedo. Ravenala recolheu-se em seu quarto, e de lá aguçou os ouvidos, para ouvir a conversa dos pais que há pouco se deitaram. Eles falavam baixinho, alguma coisa relacionada a ter mais um filho. A menina desejava muito ter com quem brincar e dividir seus segredos. Talvez para um irmão, contasse sobre o amigo secreto pregado na cruz.
*** Adalberto lima, trecho de "Estrela que o vento soprou."
Contato: adalbertolimapoetadedeus@gmail.com