Velório da boneca Maria Emília
Acordou.
Seu semblante pálido revelava medo. Emília estava fria.
— Vovó, vovó!...
— Que houve, minha filha?
— Emília morreu!
— Bonecas não morrem. As meninas crescem, e guardam suas bonecas no armário.
— Emília morreu. Quero um velório com todas as honrarias que ela merece.
A avó entendeu que era preciso penetrar no mundo das crianças, para compreender o recado que elas mandam aos adultos nas falas e diálogos estabelecidos com as bonecas. Era hora de guardar a boneca de Ravenala, como ela, Corina, guardara a sua quando ficara mocinha.
— Podes fazer tua Emília voltar a viver outra vez.
— Ela está velhinha demais, vovó. Não pode nascer de novo.
— Pode, minha filha! A ficção é uma realidade que ainda não aconteceu. No fantástico mundo da imaginação tudo pode acontecer. Nele, o intangível torna-se palpável.
— Por que há sempre um tesouro escondido atrás da porta?
— Para ser descoberto.
Tesouro atrás da porta ou obra inacabada? — Retrucou Emília com voz de quem está dentro de uma caixa de sapatos.
— Toda obra humana é imperfeita e inacabada. Devemos levantar hipóteses, sem afirmar, ou afirmar e depois negar. Por exemplo: as ondas atlânticas que sepultaram Escobar podem ser as mesmas que engoliram Fernão.
— Nunca me falaste de Fernão!
— Ainda não é hora de conheceres Fernão. Ele será levado em espírito ao dia de seu batismo, e no mergulho ao sobrenatural, verá seu corpo assim que plasmado no ventre da mãe, curvado como beato em genuflexão. Vai sentir muita angústia porque não era desejado. E já sente. O sentimento de rejeição provocou nele um bloqueio do desenvolvimento cognitivo. Cresceu, mas nunca quis ser adulto. Nunca quis.
— Que é desenvolvimento cognitivo — quis saber a boneca.
— É o processo de passar por estágios como o que estás nele agora: Eu falo, tu ouves; tu falas, eu escuto. Toco flauta e danças minha música, mas quando te tornares adulta, a música que toco já não será mais agradável aos teus ouvidos, porque os ouvidos perderam a sintonia com o Tocador de Flauta. E dirás que a música que toco é lavagem cerebral. Depois, na velhice, recobrarás a harmonia, e outra vez, ouvirás a voz do vento.
— Vi Machado tecendo o perfil psicológico de Capitu. Afinal, Capitu traiu o marido, ou não?
— Muitos leitores atiram-na do monte Capitolino, outros, acusam Bentinho pela morte de Escobar.
Ravenala fez uma pausa, depois retomou o discurso.
Somos uma colcha de retalhos tecida de muitos sonhos, bons ou ruins temos esse pano velho plasmado nas entranhas. Dito isto, abriu o arquivo onde ficam guardadas as boas lembranças, pegou um livro e folheou algumas páginas em que um homem de sobrancelhas fechadas dava a Emília os primeiros traços de vida. “ Olha, Emília, se esquadrinhamos cada personagem, vamos encontrar recortes da personalidade do criador. Ele não se livra de suas próprias lembranças. Mais cedo ou mais tarde, elas aparecem na face ou na alma de seus personagens. O autor coloca um pouco dele mesmo em cada personagem que cria. Entendeu?”
— Não consigo processar tanta informação, derramada assim de uma só vez. É justo fazer isso com uma boneca que tem cérebro de pano?
— Bob também pensava assim. Hoje ele reconhece que devemos apenas levantar hipóteses.
— O Bob só existe em tua imaginação, princesinha. Ele não é real.
— Claro que o Bob existe! Esteve conosco na Quinta da Boa Vista. Não te lembras?
—Aquele é Robert!
— Robert e Bob são a mesma pessoa.
— Desta vez, pensei como boneca!
— Nem tanto! Para meu pai, Robert é Bob. Para minha mãe, Robert é apenas o filho da quase vizinha.
— E pra ti?
— Para mim, Bobinho... Às vezes, bobinho. (pronunciado com vogal fechada no primeiro ‘ô’.)
— Bob não é bobo! (ô)
—Bobinho é forma de tratar as pessoas com intimidade. Neste caso, não tem o sentido de tolo.
— Que é ser quase vizinha?
— É uma pessoa que mora meio perto. Quase longe. Quase longe é quase perto. Quem mora em teu coração, mesmo estando longe, está perto. Isso é quase perto.
— Entendi quase tudo.
Esperou Emília acusá-la de plágio ou pelo menos de fazer um paralelo entre o ‘quase longe, e quase perto’ de Ravenala e o diálogo do pequeno príncipe com a raposa de Bach. Mas a boneca, a boneca simplesmente acrescentou: “Começas a amar uma pessoa no momento em que te aproximas do coração dela. Se nunca te aproximares, ela estará sempre longe, mesmo estando perto. Isso é quase longe. Mas se te aproximares dela, ainda que venha a se separar geograficamente, e, estando longe, estará perto. Isso é quase perto.”
Ficou contente, porque Emília aprendeu o que lhe foi ensinado. E nunca mais pensou que não devesse dar ouvidos ao que diz uma boneca. E foi por pensar como uma pessoa adulta, que a boneca Maria Emília conquistou a credibilidade de sua amiga.
— Achas que alguém vai ler a coisas que escrevo?
— Não há nada tão ruim que não sirva para alguma coisa.
— Lembro-me de um fato, quando meu pai estava prestes a rasgar o dicionário de sentenças latinas, e se deparou com estas palavras que acabas de dizer.
Emília empalideceu.
— Eu não disse que cunhei a frase. Só não sabia como explicar que não era minha.
— É fácil. Se escreveres expressões ou textos de outrem, ponha aspas. Se o discurso for oral, diga: ‘Abre aspas. ’
— Então os falantes devem abrir aspas em tudo que dizem, porque ninguém é original. Nem o primeiro homem foi original! Adão só falou depois que Deus soprou em suas narinas.
A boneca ficou satisfeita por advogar em causa própria. E retomou o assunto:
— Suponhamos, que alguém leia teu livro. Para onde vão os livros depois de lidos?
— Ora, muitos livros nem chegam a ser lidos. As pessoas os têm como enfeite nas estantes, outras como fonte de pesquisa ou consulta. Nunca lidas ou consultadas, as páginas ficam amarelas, traças roem, e os livros são lançados fora. Os que tiverem a sorte de serem lidos, sofrerão pena de morte, vão parar na lixeira, e serão triturados pelas engrenagens dentadas do caminhão da coleta.
Emília fez uma carinha de tristeza. “ Muitas vezes, até a Palavra de Deus é jogada no lixo — disse sem muita certeza daquilo que afirmava.”
Semente lançada ao pedregulho — corrigiu Ravenala — Meu pai age diferente. Ele dá destino aos livros que lê: esquece-os de propósito, em algum lugar público. E vigia de longe. Avalia: se a pessoa folhear algumas páginas e levar o livro. É leitor. Se antes de folhear, olhar para trás, olhar para os lados... e constatando que não vem ninguém, pegar o livro e fugir. É ladrão. Ocorrendo a segunda hipótese, seu Jeremias resmunga: ‘A ocasião não faz o ladrão, o ladrão se revela, quando a ocasião é favorável. ’
Robert pega carona num fiapo de conversa, quando Ravenala pensava alto e deixou escapar conceitos aparentemente contraditórios.
— A intenção não era de que alguém pegasse o livro?
— Sim! Pegasse para ler. Ladrão não tem tempo de ler livros. São muito ocupados, trabalham demais no planejamento estratégico de seus crimes.
Emília teve vontade de rir. Mas fora feita sem sorriso.
— Falávamos mesmo de quê?
— Dos livros que meu pai esquecia em logradouros públicos.
— Então, por que teu pai não faz a mesma coisa com os jornais lidos?
— Quem vai querer jornal de segunda mão? Se ele se esquece de ler o jornal no mesmo dia da edição, depois não o lê mais.
— Bobagem! Tanto faz jornal de ontem, de hoje ou de cinquenta anos atrás, as notícias são as mesmas. Pode pegar o jornal velho e mudar só a data. ‘Fora Vintém!’ — protesto no ano de 1949 contra o aumento da passagem do bonde no Rio de Janeiro — Podemos retroagir mais. Situemo-nos no ano 99 depois de Cristo. Naquele tempo, a Europa entra em pânico: ‘O mundo vai acabar!...’ Já no ano de 1999 corria o boato: dois mil não inteirarão.
— Ora, Ravenala. Na história da criação do homem e do universo, mil anos é cisco no olho de um gigante.
— Então que achas deste cisco?
O orçamento deve ser equilibrado, o Tesouro Público deve ser reposto, a dívida pública deve ser reduzida, a arrogância dos funcionários públicos deve ser moderada, e controlada; a ajuda a outros países deve ser eliminada, para que Roma não vá à falência. As pessoas devem novamente aprender a trabalhar, em vez de viver às custas do Estado.
— É... este pronunciamento do senador romano tem mais de um século.
— Um século? Conte o tempo do ano 55 AC e veja se o cenário político de agora não é o mesmo da época do império romano! Tem mais: Ainda no tempo do rei Jeroboão, disse o profeta: ‘Não ficará impune quem diminuir a medida, adulterar balanças e dominar o pobre com dinheiro e os humildes com um par de chinelos. Ai daquele que esmagar no pó da terra a cabeça do pobre e transviar os pequenos’.
Emília faz as contas: O rei Jeroboão foi contemporâneo de Salomão, portanto, quase mil anos antes de Cristo. Isso somado a dois mil anos que já se passaram da vinda do Salvador, o resultado aponta para, aproximadamente, três mil anos, e as cenas são as mesmas: as sete colinas da cordilheira dos Apeninos, ainda olham a Cidade Eterna em chamas, enquanto isso, o imperador fecha a cortina do palácio e se regala com o imposto pago por daqueles que em chama se consomem. Tudo igual ao que era antes.
Discordou Ravenala.
— O crime agora usa tecnologia de ponta, e é mostrado na televisão com informações pormenorizadas, um manual perfeito para meliantes.
Emília só ouviu. Ela não conhece o mundo do crime, mas recorda-se de ter visto imagens do brinquedo assassino e isso lhe causou grande perturbação, porque, ficou gravado em sua alma o eco dessas más lembranças.
Parou, aguçou os ouvidos e deu sinal de alerta:
— Vem vindo alguém. Ouço o barulho de passos no soalho.
— Deve ser vovó. Finja que dorme.
Emília outra vez cobriu-se com a tampa da caixa de sapatos. Corina se aproxima. Afere a temperatura. Ravenala está com febre.
— Coisa passageira, minha filha. Amanhã estarás boa.
— Nunca fui ruim, vovó.
Riram.
E a boneca dormiu na caixa, como a menina que Ravenala fizera adormecer dentro de si mesma.
***
Adalberto Lima, fragmento de Estrela que o vento soprou