Tinha sete anos, e se lembra de quase todas as estórias que sua avó contava. Passava a mão na cabeça da netinha e dizia: ‘Durma, Princesa, durma... Vou retirar os monstros dos teus olhos. Pode dormir agora. Eles já se foram!’ Dormia, não sem antes reclamar: “Eles estão voltando, vovó! Os monstros estão em meus olhos e não me deixam dormir. Conte uma estória!” — Posso contar outra vez A Lagoa Encantada? — Não, aquela não! Tenho medo da carimbamba. — Já contei todas que sabia! — Pode ser inventada, vovó! Pode ser inventada. — Todas as estórias são inventadas, minha filha! — Então invente uma! E Corina contou: A fada da sabedoria foi convidada para um congresso que deveria acontecer, nos primeiros dias de vida de uma pequena formiga albina. A formiga seria um fardo para o formigueiro, por isso, deveria ter sido arrancada e jogada fora, quando ainda ovo. O destino da pequena formiga estava prestes a transformar-se num exílio de vida ou numa pena de morte, mas, por sorte, a fada madrinha postou-se no meio da assembleia e vaticinou: ‘Esta menina será frondosa como uma palmeira, e quando soprar o vento Norte, navegará os sete mares e será muito aplaudida. O som de seu trompete será um acalento para a alma de quem dela se aproxima, e toda a Terra conhecerá seus feitos.’ Houve profundo silêncio, no mundo encantado das formigas, em seguida, a rainha decretou: ‘A partir de agora, a formiga albina se chamará Beethoven. Providenciem a orquestra, organizem o espetáculo, quero ouvir o último momento da quinta sinfonia. ’ — Beethoven existiu de verdade, vovó? — A formiga Beethoven, só existiu na imaginação de seu criador, mas o compositor existiu. A nova sinfonia de Beethoven, por exemplo, faz um bem enorme a minha alma. Por certo, minha filha, gerações futuras, haverão de usar a boa música para estimular o cérebro humano a se reorganizar. Corina teve vontade de dizer que o menino Davi tocava harpa quando, o rei Saul se sentia perturbado por maus espíritos, e logo que Davi tomava a harpa, Saul acalmava-se, sentia-se aliviado e o espírito mau o deixava. Parece que Corina fala de um menino sem parte do cérebro, que aprendeu a ler e a escrever, ouvindo músicas. Mas, como poderia saber de Herman, se ele ainda não nasceu? Como saber se não será abortado? Muitos morrem antes de nascer!... Como pode morrer uma pessoa antes de nascer, a boneca de Ravenala não compreendia. Talvez Corina falasse de seu filho Ludovico que tinha um buraco no cérebro, viveu sete anos e aprendeu a tocar cavaquinho. Ou falasse mesmo de Beethoven! Não necessariamente da formiga, mas do alemão filho de dona Magdalena. — Beethoven tinha um buraco no cérebro? — Não! Ele tinha um cérebro privilegiado. — Não entendi. — Desculpe-me, Maria Emília! Esqueço que tua cabeça é de pano. — Branquela! — Cuidado com o preconceito racial. Isso pode ser considerado crime. — Em algum país do mundo, é crime quebrar um ovo de tartaruga, mas é permitido matar um feto humano. O diálogo interrompeu-se. Passos arrastados aproximam-se do quarto. — É vovó! Finja que dorme!... — Já estou fingindo. O trinco deu um estalo e a porta do quarto se abriu. Corina vê Emília embrulhada em panos de dormir. — Vovó! Emília está aborrecida comigo. — Por que Emília está brava contigo? — Dei uma palmada no bumbum dela. Corina faz uma retrospectiva, desde as primeiras horas da manhã, até o entardecer, e se recorda de que, ainda cedo, “acariciara” o traseirinho de Ravenala, com uma palmada, por causa de uma travessura. — Amanhã, você pedirá desculpas a Emília! — E se não houver amanhã? E se o sol não acordar?... — O Sol vai nascer outra vez! É necessário que o dia velho descanse e desperte renovado. É preciso que o galo cante três vezes para despertar o homem que dorme. — Não deveria haver noite! Vultos vagueiam. Vampiros e lobisomem passeiam na escuridão. — Isso é lenda! — A carimbamba também é lenda? Tenho medo da carimbamba. — Muitas vezes, a ficção avança os muros da realidade ou a realidade penetra o labirinto da ficção. O que hoje é ficção, amanhã pode ser realidade, mas monstros não existem. Eles são obras criadas por mente doentia. Ravenala insiste. — A carimbamba existe? — Quando se acredita numa coisa, ela passa a existir de verdade. Mas a carimbamba só existe em teus medos. E agora que se casou com a mocinha camponesa, o encanto foi quebrado. — E a velhinha? — Bem, a velhinha faz parte da técnica utilizada pelo autor, para que a história nunca acabe, continue viva e passe de geração para geração. A ficção mostra-se tão real, que personagens dos contos de fadas saem dos livros e vão morar em mundos reais, como a tua boneca. Sabe de onde ela veio? — Emília me falou que seu pai era um homem bom, e foi preso, porque escrevia livros. Se eu escrever um livro, também serei presa? — Não dê crédito a tudo que diz uma boneca. Agora, durma, Princesinha. Corina retirou-se. Seus passos lentamente se afastavam, até desparecerem do alcance auditivo da neta. — Pode acordar, Emília, a vovó já foi. — Ufa! Já estava cansada de fingir...