Tenho tido muita dor de cabeça ultimamente...
As alucinações estão diminuindo graças à medicação, as terapias de relaxamento e meditação, e principalmente, à força da oração.
Segundo o médico minha esquizofrenia adquirida com o uso da cocaína e do crack não tem cura, porém, se continuar tomando o remédio indicado, com certeza evitarei as grandes crises...
Nas épocas de férias escolares é que me sinto pior, pois diminuem minhas atividades nas escolas e essa estagnação me deixa muito deprimido. Eu moro sozinho e sempre quando vem a noite começo a entrar num processo de pânico que pode me tomar por completo. Utilizo várias técnicas para não enlouquecer por completo, que aprendi com mais de 35 terapeutas, e nas 15 internações por que passei. Mesmo assim, devido a um problema neuroquímico, sofro as conseqüências da esquizofrenia.
As vezes quando estou deitado, e ouço minha cachorra brincar com alguma coisa no pátio, tenho a impressão que alguém invadiu a casa e que quer me matar. É uma verdadeira paranóia que me maltrata e me persegue todos os dias. As vezes tenho que levantar da cama e ir lá fora olhar tudo. Há algum tempo atrás eu ficava dentro de casa tremendo de medo. Mas aprendi a enfrentar o fantasma da loucura e agora encaro minhas alucinações de frente, indo de encontro a elas. Assim verifico que elas não existem e as destruo dentro do meu próprio cérebro!
Tenho tido muita saudade de estar com minha família porém isso não é possível mais pra mim e tenho que aprender a conviver com esse fato. Ainda bem que hoje tenho ótimos amigos que me dão a liberdade de freqüentar suas casas. Eles hoje substituem muito a família do qual sinto tanta falta. Mas laços de sangue são laços de sangue.
Perdi o direito de estar junto dos meus diariamente, como todo mundo, quando teimosamente permanecia usando drogas. Enquanto meus pais tinham esperança eu os enganava aceitando os vários tratamentos que me ofereciam, com apenas a intenção de engordar um pouco na clínica e voltar a usar quando saísse... Levei assim por muito tempo. Cerca de dez das primeiras internações...
Eu estava com 11 anos e meio quando meus pais se separaram. O juiz determinou que eu ficasse sob a guarda de meu pai e minha irmã com minha mãe. Meu pai logo conheceu uma pessoa e se apaixonou novamente. Eu morri de ciúmes... Não aceitei... Comecei a incomodar a coitada da mulher dia e noite, tal o ponto, que quando meu pai retornava de suas viagens eu estava dormindo no carpete do lado de fora do apartamento...
Meu pai não agüentou muito minhas verdadeiras maldades e resolveu me colocar num colégio interno. Escolheu o melhor na idéia dele. O Colégio Bom Pastor em Nova Petrópolis-Linha Brasil/RS.
O internato era gigantesco. Uma imensa área verde em frente a auto-estrada. Em redor apenas mato, serra, cachoeiras e árvores. Mais nada. Senti-me perdido naquele local solitário. Eu estava revoltadíssimo, pois entendia que havia perdido uma guerra contra aquela mulher que eu combatia na minha cabeça de pré-adolescente. Achei-me injustiçado e abandonado pelo meu próprio pai. Entrei em profunda depressão e vivia chorando embaixo das árvores. A escola não conseguia me entreter e eu não me preocupava nem um pouco com minhas notas...
Um dia um colega de sala, que sentava na classe ao lado da minha, estava em frente a escola. Fui até ele. Ele estava meio esquisito aquele dia. Ria muito até chorar... Seus olhos estavam vermelhos e os lábios secos. Pareciam quebrados pelo frio. Mas aquele dia estava quente e ainda era verão.
Num certo momento ele puxou da pasta uma lata de cola de sapateiro e começou a usar. Eu estranhei pois nunca tinha visto aquilo, alguém fazer isso com cola. Ele, de uma hora para outra, caiu pra trás e ficou parado, com o olhar fixo para o céu. Pensei que tivera tido um troço. Fiquei com muito medo. Passou alguns minutos e ele voltou a si e começou a rir de um jeito muito esquisito e a me explicar como usar a cola.
Fui na onda dele e experimentei indo fundo. Senti um zumbido muito forte nas orelhas que pareciam que iam me deixar surdo. Vi que eu virei do avesso, tudo começou a rodar e um gosto de cola tomou conta de minha língua. Caí pra trás durinho! Não me lembro o que aconteceu durante o efeito só que depois de algum tempo voltei a dar conta de mim e estava correndo com ele, lá por trás do colégio. Ficamos até tarde da noite usando a cola até que a lata terminou. Perdemos a janta e acabei caindo na cama, morto de cansaço, e o pior é que teria que levantar cedo pra ir para aula no outro dia...
II
No outro dia já estava viciado!
Levantei-me todo moído pela manhã com a sineta do zelador... Doía-me as costas e os ombros. Arrumei-me, nem quis tomar banho, botei um boné, desci pra tomar café. Peguei os livros e fui p ra aula. Lá pelo segundo período comecei a ficar nervoso e a olhar para o meu amiguinho que estava ao meu lado. Ele também me olhava e apontava para a pasta dele onde certamente tinha outra lata de cola. Fiquei mais nervoso ainda. Comecei a me lembrar do cheiro da cola e me deu uma vontade muita grande de usar de novo. Quando bateu para o recreio corremos para o pátio dos fundos do colégio e entramos embaixo dumas árvores gigantes que haviam por lá e começamos a nos "empapuçar". Perdemos o resto da aula aquele dia. Também nem me importei com isso. Só queria cheirar.
A dependência química havia se instalado imediatamente no meu organismo porque a tinha herdado geneticamente de meus antepassados. Ela estava dentro de mim, adormecida, só esperando que um dia eu bebesse ou usasse alguma droga para acordar. E lá estava ela, a todo o vapor, operando minha cabeça. Foi tudo muito ruim...
Comecei a matar aula, a não fazer os temas. Estudar então, nem pensar. Quando minhas notas ficavam muito baixas então eu tentava dar uma parada na cola e estudava um pouco,mas era o mesmo que nada. Não entrava nada na minha cabeça. Eu não conseguia guardar nada em minha memória. Era como se nem tivesse estudado. Comecei a vender cigarros pros guris dentro do internato e aí também comecei a fumar. Com a venda dos cigarros, comprava mais cola. Vendia também minhas coisas, trocava os bagulhos com a gurizada,inventava mil e uma p ra arrumar grana.
Comecei a ter umas loucuras e vivia fugindo da escola. Corria para Porto Alegre e ia pra casa da minha vó. Meu pai recebia a notícia que eu tinha fugido e ia lá me buscar. Trazia-me de volta a laço. Eu voltava chorando lhe explicando que queria ficar morando com a vó.
No final do ano rodei e meu pai me tirou de lá. Consegui que ele me botasse num internato em Porto Alegre do qual acabei sendo expulso de tanto que aprontava lá dentro. Fui morar com minha vó que se ofereceu para me cuidar. O pai repassava um dinheiro para ela, que me repassava em forma de mesada.
Minha vó morava no centro da cidade na época e eu acabei sendo matriculado pelo meu pai, num colégio particular, o Sévigné. Lá então a coisa das drogas desandaram de vez... Comecei com a maconha...
Era a moda no colégio. Todo mundo usava. Quem não usasse era caretão, CDF, essas coisas, como ainda acontece...
Minha vó nem se dava conta de que eu tava indo fundo e que andava sempre chapado. Afinal de contas eu sabia, através das palestras no colégio, dos sinais que os drogados apresentavam quando estavam chapados, e o que os pais deviam saber para descobrir se seu filho estava ou não usando...
Essas palestras me ensinaram a me proteger. Fazia de tudo para ninguém descobrir...
Minha vó e meu pai achavam que eu apresentava aquele comportamento porque era um demônio, mas na verdade era porque andava sempre muito louco.
Eu decidi não dar mais bola pra nada.
Não me preocupava em tomar banho ou escovar os dentes. Soltei-me total...
Larguei de usar boas roupas, até porque, quando tinha roupa de marca vendia tudo. Passei a andar "tri - chulé", rapava a cabeça, rasgava as calças pra andar tipo doido...
Achava-me o máximo dentro da minha cabeça de porongo...
Guria, namorada, essas coisas, nem dava bola, a não ser que eu soubesse que ela usasse drogas também.
Mas sempre rolou um papo, que as que usavam drogas se entregavam para todo mundo, e que tinham um montão de doenças.
E tenho certeza que isso era a única verdade que rolava por ali. E digo mais, não eram só elas que tinham doenças. Eu tinha um monte de amigos, que já estavam na cocaína, que andavam mal com doenças venéreas, principalmente gonorréia, de tanto se prostituírem com os tarado da Praça da Alfândega...
Eu não tava naquele tempo nessa onda, porque ainda não tinha conhecido a cocaína, e não aceitava quando me ofereciam, porque tinha medo de usar e ficar como os meus amigos...
Eu conseguia ver que eles estavam mal, que tinham emagrecido um montão e ainda precisavam se prostituir pra arrumar a grana pra droga, mas não me dava conta que eu seria o próximo.
Quando eu andava chapado, não tinha tesão nenhum por sexo...
Olhava as gurias passando e tirava sarro, achava bonito e tudo mais, mas pra ir pra cama eram outros quinhentos...
Naquela idade, 15 pra 16 anos, nem mesmo me masturbar eu fazia, pois não tinha vontade nenhuma.
A única vontade que tinha, era de ficar chapado o tempo todo. Por isso vivia correndo pra cima e pra baixo, atrás de um baseado...
Subia morros, descia nas bocadas. Quase morria caminhando, as vezes. Isso começou a me emagrecer bastante. Foi num verão que larguei a maconha e caí no Artane...
III
A maconha com o passar do tempo passou a não me fazer mais efeito nenhum.
Fumava e parecia que estava fumando grama. Não dava nada. Deu aquilo que os médicos chamam de tolerância. Fiquei forte pro THC.
Meu organismo criou resistência a substância química ativa, e o único jeito, era passar pra outra coisa...
Como eu morria de medo da cocaína, decidi entrar pro Artane. E foi a maior viagem da minha vida. Uma loucura, demais, demais...
O Artane é usado para as pessoas que tem o Mal de Parkinson, mas se a gente toma muitos comprimidos, dá uma alucinação que te deixa maluco. Comigo pelo menos foi assim...
A verdade é, que pra cada pessoa, pode acontecer uma coisa diferente, eu pelo menos, ficava maluco de internar...
E foi o que acabou me acontecendo.
Eu já estava com 16 anos. Foi então que meus pais descobriram que eu estava usando drogas. Quando eu perdi de vez o controle...
Até então eu tinha conseguido esconder, já que não morava com meus pais, e minha vó, me deixava fazer o que eu quisesse, pois eu a dominava muito bem. Enfim, é sabido que nós os viciados aprendemos com maestria a arte da manipulação das pessoas, ainda mais quando elas tem uma personalidade fraca. Com minha vó era fácil, ela tinha uma idade muito avançada, e eu chegava sempre depois que ela estava dormindo, o que me facilitava mais as coisas.
Um dia a coisa acabou...
Não consegui mais esconder. Perdi todo o controle da coisa. Cheguei em casa viajando muito, falando um montão de besteiras, que o mundo tinha que mudar e que as pessoas também, e que todo mundo era louco, e não sei mais o quê... Fiz minha vó se sentar, e comecei a dar discurso...
Ela viu que eu tinha feito uma besteira com drogas, e começou a chorar. Eu fiquei com raiva das rezas dela, peguei no meu quarto um pedaço de pau que eu tinha e comecei a quebrar os vasos, os bibelôs que ela tinha pela casa, e tudo mais...
Ela foi até a parede onde estava pendurado uma foto de Jesus Cristo, e começou a Lhe pedir que me ajudasse. Eu, enraivecido, fui até o quadro e dei uma paulada quebrando todo ele... O quadro caiu no chão. Minha vó se apavorou e saiu porta afora, escada abaixo no edifício chorando, e foi telefonar para minha mãe pra lhe pedir ajuda.
Minha mãe veio rápido (acho eu...), e viu que eu tava podre de drogado. Decidiu chamar meu pai, que veio voando. E voando roxo de brabo...
Meu pai chegou e nem falou comigo. Pegou-me pelos cabelos e me atirou dentro do elevador. Colocou-me no carro e me levou até a Clínica Pinel. Uma das coisas que me lembro, é que teve uma hora que tomei um tapão que cheguei a rodopiar...
Na clínica, me colocaram numa sala de espera, fechada, sem janelas, enquanto meu pai falava com o médico. Acho que demorou poucos minutos. Na sala, eu ficava fumando feito um condenado, já que tinha cigarros e isqueiro comigo. De repente entraram cinco gorilas (enfermeiros) na sala, e arrancaram o cigarro de minha mão... Fiquei louco e não aceitei o convite de seguí-los. Neguei-me. Os caras então me pegaram pelos ombros e me levantaram do chão...
Dei uma de doido completo e comecei a distribuir pontapés pra tudo quanto é lado. Lembro-me que consegui dar um soco na boca de um deles, que tirei uma lista de sangue do coitado. Depois vi que ele não tinha culpa de nada e que só estava fazendo o trabalho dele.
Eles viram que eu tinha reunido forças, e que seria difícil me levar por bem, me botaram deitado no chão e gritaram por mais ajuda. Veio então, nem sei de onde, mais três caras que ajudaram a me segurar, uma mulher apareceu e me grudou um agulhaço no meu ombro, que vi estrelinhas no céu...
Ela preparou outra injeção em segundos e me enfiou outra, no outro ombro.
Ficou tudo colorido na minha frente, meu corpo todo amoleceu na hora. Era o tal de Aldol Decanuato, que tem um efeito de trinta dias... Durante um mês, o remédio endurece teu corpo e se contraem os músculos, não deixando com que a gente consiga se mexer direito. É a chamada medicação de contenção, que eles usam nos pacientes psicóticos e violentos...O pior é que junto com a contração dos músculos, a gente sente uma dor que não passa nunca.
O cara se baba, volta e meia, e dá uma vontade de ficar pulando no mesmo lugar em que a gente tá... O cara fica pulando nos dois pés, porque o desejo é de lutar contra o efeito... Que raiva eu fiquei daquele remédio. E que raiva que fiquei da minha médica que tomou conta mim. Foi muito triste mesmo. Fiquei com ódio mortal, vivia imaginando como enforcá-la, quando ela passasse por mim lá dentro...
Fiquei internado 60 dias exatos. Um mês na ala particular e um na pública. Não recebia visitas porque nunca mostrei bom comportamento.
Foi uma internação muito traumática, já que não serviu para colocar na minha cabeça que eu devia parar de usar drogas. Ao contrário, só planejava os tamanhos dos "charutos", das "bombas" que iria fechar e fumar, até morrer, pensando nos meus pais. Estava com ódio deles terem me deixado lá, e queria vingança...
Não vi mais meu pai durante os próximos dois meses que fiquei internado...
IV
Hoje sei, que até mesmo aquela internação muito doida que aconteceu comigo, foi boa pra mim...
Afinal de contas, alguma coisa meus pais fizeram, dentro do pouco conhecimento sobre o assunto que eles tinham. Havia ainda o lance da emergência da circunstância. Eu estava biruta, e meu pai não sabia o que fazer comigo. A única idéia que deram pra ele foi a de me internar, numa clínica psiquiátrica!
A Pinel foi minha primeira clínica. Mais 14 vieram depois dela...
Cinco dias depois que saí da Pinel tive a recaída... Peguei um dinheiro na carteira de meu pai, durante à noite, enquanto ele dormia, e saí pra rua... Fui até uma favela e comprei um tijolinho de maconha. Sumi de casa por uns cinco dias. Fiquei só andando pela rua, dormindo embaixo das escadarias do centro...
Passado os cinco dias, fui pra casa da minha mãe. Ela me deixou ficar lá uns dias, enquanto pensava o que ia fazer comigo, e como ia resolver as coisas com meu pai, pois eu dependia dele pra viver, e o juiz tinha dado minha guarda pra ele...
Um dia, minha mãe saiu, e eu fui para o quarto dela fazer uma "revista"... Achei todas as jóias dela... Peguei tudo. Ela tinha quase um quilo em jóias. Peguei o material e levei até um amigo que eu tinha, e fiz ele empenhar pra mim tudo aquilo... Deu uma grana dos diabos. E com os bolsos forrados, me mandei pra Argentina. Mas antes, mandei a cautela do penhor (documento que comprova o empenho das jóias na Caixa Federal) pelo correio, para minha mãe. Acho que a coitada deve ter chorado por uns dez, dias sem parar...
Fiquei sete meses na Argentina. Só que o dinheiro não durou muito. Acabei ficando pelado, sem nenhum tostão no bolso. Cheguei a dormir vários dias na beira da praia, em Mar Del Plata, com cinco graus abaixo de zero... Eu dormia embaixo de uns papelões, que tinha arranjado nas lojas do lugar...
Lembro-me que uma noite, apareceu um cara super esquisito, que veio me fazer uma proposta... Perguntou se eu não queria dormir numa cama quentinha, comer alguma coisa na casa dele... Eu só precisava fazer o que ele quisesse...
Puxa vida o cara era nojento!
Tinha um montão de cicatrizes na cara, mas se vestia bem. Senti logo o que ele queria, pois já estava acostumado com os meus camaradas, que saiam com os caras da Praça da Alfândega.
O cara tinha uns trinta e cinco anos, não era gordo nem magro. Só era muito esquisito mesmo. Olhava pra todo lado, como se estivesse com medo de ser preso, ou como se alguém nos estivesse vigiando...
Lógico que neguei a "barbada"...
Barbada nada. Sei lá o que ele iria fazer comigo. Pela cara que ele tinha, é certo que iria me estrupar, e depois me matar... Eu fora... Preferi ficar passando frio na beira da praia.
Pela manhã, me larguei para o asfalto, e de carona, voltei para o Brasil.
Enquanto estive na Argentina, meio que parei de usar drogas na marra. Sentia muita vontade, mas não conseguia nada. Naquele tempo, era época da ditadura, e a polícia prendia todo mundo, sem dar maiores explicações.
Acho que voltei pro Brasil, principalmente por causa das drogas. Enquanto estava na Argentina, me virava lavando louça nos bares, lavando chão de restaurantes, mas também já estava louco de saudades de minha família...
Voltei pra casa de minha mãe, por surpresa minha, fui bem recebido, já que ela estava com muitas saudades também...
De volta a Porto Alegre, comecei tudo de novo...
Veio então a segunda internação no Hospital Espírita.
V
Minha nova recaída, foi novamente com a maconha, mas logo voltei para o Artane. Lembro-me que antes de ser internado, eu tive uma viagem muito louca mesmo...
Eu estava em frente à Assembléia Legislativa, no meio da praça, em frente à Catedral Metropolitana de Porto Alegre...
Eram mais ou menos meia-noite. Estava eu e um amigo. Recordo-me que tinha um vidro, com cem comprimidos, que havia arranjado...
Naquele tempo o remédio ainda não era controlado, era fácil de se comprar nas farmácias. Graças a Deus, hoje não é mais tão fácil conseguir...
O meu colega abriu o vidro e meu deu uns dez comprimidos. Nós tínhamos comprado uma garrafa de coca-cola, e a usamos para poder engolir o remédio.
Eu tomei tudo de um gole só. Estávamos sentado junto ao monumento. Ficamos conversando alguns minutos e nos observando, esperando o efeito chegar. E nada acontecia...
Resolvemos tomar mais vinte drágeas... E nada. Bom, não sei quantos eu tomei, mas sei que chegou uma hora que o vidro acabou...
Eu e o meu amigo, resolvemos nos levantar e dar uma caminhada...
Foi aí que notamos que o efeito tinha começado, porque nossas pernas se flocharam, quando ficamos de pé, e caímos no chão... Acho que fiquei deitado sem conseguir me levantar, umas três horas pelo menos... Quando consegui, saí cambaleando.
Perdi a consciência do que estava fazendo e apaguei. Quando voltei a mim, tudo estava na escuridão... O meu amigo havia desaparecido, não sei pra onde.
Os postes de luz estavam apagados. As casas e os prédios, tinham desmoronado a minha volta, tudo era puro escombros...
Foi a imagem mais feia que já vi em minha vida!
Os carros estavam cobertos com uma poeira que brilhava... O ambiente, o ar em redor, tudo cheirava a carne apodrecida. Haviam cápsulas de balas, de armas de fogo, espalhadas pelo chão, em todos os lugares... Também poças de sangue, inexplicáveis, pois não haviam corpos... Apenas sangue coagulado, que exalava um cheiro agridoce que me davam náuseas...
De repente, senti que estava amanhecendo. Olhei para o céu e não enxerguei as nuvens.
Havia uma poeira no ar, que não deixava ver o firmamento... Não conseguia enxergar nada, através daquela bruma poeirenta. Meus olhos, ardiam muito, e as lágrimas, corriam sem parar. Sentia que meu corpo ardia todo. Era como se um gás corroesse minha pele. Eu me coçava, tinha vontade de me atirar em alguma poça dágua.
Mas ao meu redor, só haviam poças de sangue...Sangue coagulado...
Com o amanhecer, notei que figuras humanas começavam a surgir, de todos os lugares...Pareciam fantasmas...
Despontavam nas esquinas... Saiam de dentro dos carros destruídos...
As portas dos edifícios, em ruínas, se abriam, e dali saiam pessoas em péssimo estado... Suas roupas estavam rasgadas, verdadeiros farrapos humanos.
Nos olhos, marcas profundas de olheiras... Os olhos sem brilho, mostravam uma tristeza profunda, uma falta de esperança que me emocionou, fanzendo-me chorar...
Desesperei-me com todo aquele quadro, e me deu vontade de sair correndo, gritando por ajuda...
Descobri, então, como se uma luz tivesse brilhado em minha cabeça, que o mundo havia sido destruído, por um holocausto nuclear...
Dei-me conta então, que a poeira que cobriam os carros, era da nuvem radioativa que havia coberto o planeta... Comecei a pensar o que haveria detonado a guerra. E não conseguia entender o porquê. Porque havíamos chegado a esse ponto...
Comecei a examinar todo o meu corpo, a procura de algum sinal de ferimento...
Mas meu corpo estava intacto.
Não haviam feridas. Nem arranhões. Minha roupa continuava limpa, como se eu tivesse tirado ela da loja naquele dia. Não entendi mais nada.
Como é que eu não havia sido atingido, como todo mundo?
Senti-me mais perdido ainda... Não achava justo, estar bem, enquanto tantas pessoas estavam morrendo, e tantas outras jaziam mortas. Comecei a ter vontade de socorrer as pessoas que andavam feito zumbis. Mas não sabia como. Não tinha remédios, nem faixas, nem ataduras.Como socorrê-las?
Num segundo depois, me vi dentro do apartamento de minha mãe...
Tudo havia voltado ao normal.
Foi como se eu tivesse tido um pesadelo. Mas tinha sido muito real... O sentimento de desamparo, ainda continuava a agitar o meu coração, que não parava de bater com muita força...
Fui correndo até a janela para olhar para a rua... Tudo estava normal... Senti um desafogo em meu coração, e me lembro que caí sentado no chão, soluçando sem parar... Nunca havia sentido tanto horror em minha vida, chorava, agradecendo por tudo ter sido apenas mais uma horrível alucinação, produzida pelas drogas...
Eu andava muito magro. Não conseguia passar dos 56 quilos. Minha mãe, muito assustada com a situação calamitosa do meu corpo, exigiu que eu me internasse, caso contrário, disse que eu devia sair de casa, que ali não poderia mais ficar... Eu, sentindo a coisa feia para o meu lado, aceitei a nova internação. Mas cá comigo, não tinha nenhuma intenção de parar com as drogas...
Não me importava estar me destruindo...
Não me importava estar magro, puro osso e pelanca... Sentia vontade de usar, como se fosse uma pessoa perdida no deserto, clamando por água... Para satisfazer esse desejo, eu faria qualquer coisa... Mas sabia que precisava ter uma casa. Um lugar pra ficar, que o apoio de minha mãe era importante, até para continuar usando...
Fui pra clínica, totalmente contrariado, mas sem deixar que minha mãe notasse... Lá, a coisa foi horrível. Ela me internou numa ala pública, onde estava cheio de pessoas com problemas mentais gravíssimos. Pessoas que haviam enlouquecido completamente, outras com vários graus de insanidade mental. Poucos viciados em drogas ilegais. Muitos alcoólatras também.
Comecei a tomar vários medicamentos que me foram receitados pelo psiquiatra da clínica. Receitou-me um benzodiazepínico (remédios a base de Diazepam), e um neuroléptico. Também tomava um antidepressivo, para regular o estado de humor que nos viciados se altera muito fácil.
O neuroléptico (Neuzine 100mg), logo impregnou meu organismo. Meu corpo se enrijeceu todo... Contraíram-se todos os meus músculos, uma dor horrível tomou conta de mim...
Senti-me péssimo... Comecei a me queixar na enfermaria da situação, as atendentes levaram para o mal, e registraram no livro de ocorrência que eu estava incomodando a enfermagem, fingindo uma impregnação...
Nos casos de impregnação do organismo, o médico tem a orientação de prescrever Fenergan injetável, já que este medicamento relaxa toda a musculatura, e o paciente para de sofrer. Porém, este tipo de medicamento também causa dependência química, os médicos não gostam de ministrar em seus pacientes esse produto. Muitos pacientes, realmente até fingem um estado de impregnação, pois querem essa injeção...
Eu porém, não fingia, já que era muito sensível a substância química ativa do Neozine. O Neozine, realmente me impregnava, poucos minutos após sua ingestão...
Sofri muito naquela clínica psiquiátrica. Sofria muito também, vendo aquelas pessoas, com problemas mentais...
Tinha vontade de ajudá-las, e não podia. Fiz amizade com muitas delas, conversava muito. Soube de diferentes histórias, cada uma mais dramática que a outra...
Meu pai, pouco me visitava, até porque ele sofria muito quando me via internado. Sempre era um choque pra ele. Ele nunca aceitou minha dependência como uma doença incurável, conforme ela é considerada, pela OMS-Organização Mundial da Saúde. Sempre evitava conversar com meus terapeutas...
Numa vez, em que ele me viu cheio de esparadrapos no braço, em função dos soros, ele teve um ataque...
Começou a se jogar contra as paredes, gritando e chorando sem parar. O coitado teve uma crise nervosa! Teve de ser medicado. Lembro-me que, depois de tantos anos de muita dor, eu e ele choramos abraçados um no outro...
Lembro-me, que naquele dia, prometi que não iria mais recair... Tenho certeza, que foi uma promessa que veio de dentro do meu coração... Porém, ainda não estava maduro dentro de mim, a decisão de agüentar a qualquer preço a tentação...
Talvez pelo seu pouco estudo, e pelo pouco tempo que tinha para buscar informações, ele sustentasse seus argumentos, com o pouco que tinha em sua bagagem de conhecimentos e de experiências.
Diga-se de passagem, que a família de meu pai, sempre foi muito conservadora, e o uso de drogas para eles significava o fim do mundo. Nunca ouve argumento que os deixasse mais flexíveis, para casos de drogas na família...
Era sem-vergonhice, e ponto final! Lógico, quem usa drogas acaba tornando-se sem escrúpulos, em função da alteração de nossa personalidade, dos hábitos que adquire com a companhia de "amigos" com o mesmo problema.
Quando sob efeito, ou sob "fissura", principalmente durante a ativa. Porém, quando conseguimos desintoxicar, e ficar um bom tempo fora (mais de um ano...), voltamos a ser como deveríamos ser...
É lógico, que somado a nossa personalidade restaurada, ficam também, os problemas causados pelas seqüelas, deixadas pelo tempo de uso de drogas. Incapacidade de memorizar informações, problemas físicos, problemas neurológicos irreversíveis, etc., que as vezes, se refletem gravemente em nós, como acontece ainda hoje comigo...
E o pior de tudo, é que fica pra sempre, como sempre gosto de repassar, nos eventos que participo, é a tentação.
A vontade reprimida de voltar a recair...
VI
Quando saí do Hospital Espírita de Porto Alegre, estava cinco quilos mais gordo. Minha mãe me incentivou a voltar aos estudos, resolvi fazer um supletivo de 1º grau. Por incrível que pareça, consegui concluir.
Sentia tentação de recair, mas estava me agüentando bem. Estavam chegando os meus dezoito anos. A maioridade tão esperada. Confesso, que não consegui notar como cheguei aos 18 anos. Foi tudo muito rápido...
Acho que perdi os prazeres da adolescência normal. Ainda não havia tido nenhuma experiência sexual. Nunca ouve oportunidade, aos 18, ainda era "virgem"...
Não havia tido nenhuma experiência sexual, também, porque nem ao menos eu procurava por isso. Não me lembro de nenhuma vez, que tivesse me interessado por alguma guria, enquanto estava em plena "ativa", como a gente chama... Para o usuário de drogas, e principalmente, para a menina viciada, a questão dos problemas na nossa sexualidade são muito presentes.
Na menina usuária de maconha, há um atraso na menstruação, cólicas freqüentes, problemas de pele...
Já o menino, não nota muito que acontece com ele nessa área, porque ele não se preocupa tanto com o corpo, quanto a mulher...
Eu, por exemplo, nunca observei o crescimento do meu corpo... Nem tava aí pra isso.
Ora, a maconha age diminuindo a produção dos hormônios, produzidos pelas nossas glândulas hormonais...
No meu caso, haviam vários problemas, que nem notava...
Um dos maiores, que até as pessoas me falavam, era a questão da minha voz, que não queria engrossar nunca...
Tinha sempre uma voz de taquara rachada! Em 1997, eu fiz um tratamento com injeções de testosterona (hormônio masculino), isso fez com que minha voz ficasse mais grave, para minha felicidade, mas, ainda quando atendo um telefone, as pessoas acham que é uma mulher, do outro lado da linha... Também tive, e tenho, um problema série de constituição muscular... Ou seja, minha musculatura é mal formada...
Tenho uma tendência, a deixar cair a cabeça para frente... Isso acontece porque quando aos 12, 13 anos, a parte da musculatura dos meus ombros e costas, estavam se desenvolvendo, e eu estava profundamente metido na maconha... Ora, para o desenvolvimento muscular, o hormônio masculino é imprescindível!
Não há desenvolvimento muscular sem um normal fluxo das glândulas hormonais... Minha barba também pouco cresceu... E a questão da maturidade também foi afetada!
O homem, para se tornar um ser naturalmente desenvolvido, em sua maturidade mental, depende, substancialmente, da liberação hormonal, sem o quê, nunca passará de um estado mental de adolescente, para o de um adulto...
Não bastam apenas o passar dos anos, ou o acúmulo de experiências...
É necessário a liberação hormonal, sempre presente nesse processo de desenvolvimento, do corpo e da mente humana.
Nessa época, comecei a notar que estava com muitos problemas nos dentes...
Fui a um dentista, ele encontrou 14 cáries, 2 canais por fazer e 2 dentes permanente,s que só restavam extrair, de tão podres que estavam... Minha mãe conseguiu que meu pai pagasse todo o tratamento odontológico, que me lembro, custou uma fortuna...
No final dele, tive que colocar uma prótese provisória, que uso até hoje...
Ela já se quebrou três vezes, e atualmente não tenho condições de a substituir, porque seria muito caro...
Meus problemas na dentição toda, também foi ocasionada pelo efeito da maconha. Quem não sabe que ela seca a boca? Só quem nunca usou...
Você sabe para que serve a saliva?
Nós aprendemos na escola que ela serve para a formação do bolo alimentar... Mas não é só essa a sua função... Nas palestras que faço, sempre conto a historinha da mamãe urso:
Um dia, a mamãe ursa estava em frente ao seu micro-ondas, programando o tempo de cozimento da refeição do seu filhotinho. O ursinho, muito arteiro, aproveitou-se da distração da mamãe, e se mandou caverna a fora, numa grande aventura!
Na corrida, ele tropeçou e caiu, machucando sua patinha. Voltou pra casa, mancando, sangrando e assustado, chorando de dor!
Mamãe ursa, quando viu o ferimento na pata do seu bebê, saiu desesperada para o quarto, pegou o seu celular e ligou para o pronto-socorro, pedindo uma ambulância urgente... Mas a ambulância teve muita dificuldade em chegar até a montanha, no meio da floresta virgem, a mamãe aflita, teve que tomar uma atitude: lambeu e lambeu a patinha ferida, até que o sangramento interrompeu e o ursinho se acalmasse...
E viveram felizes para sempre! Fim !
Eis o poder da saliva!
Ela contém substâncias químicas, que agem como se fosse uma água-oxigenada, desinfetando e higienizando a ferida!
No caso do ser humano, nossa saliva também consegue manter a higiene de nossa boca, destruindo boa parte das bactérias, que a ela tem acesso. A saliva, também mantém a saúde de nossas gengivas!
Quando eu fumava maconha, o THC- Tetra-hidro-canabinol Delta 9 ,agia sobre meu cérebro, não apenas interrompendo as funções de minhas glândulas hormonais, mas também a das glândulas salivares!
Era por isso que eu vivia com gengivites... Minhas gengivas inchavam...
Ficavam expostas, as raízes dos meus dentes ao ar, que cariavam mais facilmente.
E enquanto estamos na "ativa", não nos preocupamos com as cáries, deixamos assim mesmo... Azar!
Outro dia, fui convidado pelo Gabinete da 1ª Dama do Estado do Rio Grande do Sul, para participar de um debate com o Gabeira, o Deputado Federal que ainda teima em defender a liberação da maconha no Brasil...
Num certo momento, um jovem ali presente, lhe perguntou se ele deixaria a sua filha adolescente usar maconha tranqüilamente...
Ele respondeu, que se a maconha não viesse a interferir nos estudos dela, na sua felicidade enfim, não haveria porque proibi-la disso...
Achei que era uma das respostas mais imaturas, que já tinha ouvido em minha vida de um pai, e lembrei ao Sr. Gabeira dos prejuízos no desenvolvimento das características sexuais da menina, que ocorreriam caso isso acontecesse...
Naquele momento, ele foi defendido então, pela apresentadora do programa Barraco/MTV, que coordenava o debate, com o argumento que aquilo podia não acontecer, e que ninguém sabia ao certo, se isso era verdade, etc.
Ora, nós já temos a publicação do último relatório da OMS-Organização Mundial da Saúde, que afirma, depois de muitos estudos com usuários de maconha, de que o problema na inibição hormonal é um fato constatado cientificamente, em laboratório!
Naquele dia, o Sr. Gabeira mostrou ao mundo que tinha muito poucas informações sobre o assunto, e que estava aproveitando-se da polêmica por objetivos questionáveis, e , na verdade, ele jamais se importou conosco, nós os jovens!
O que realmente ele quer de nós, são os votos!
Isso sim, lhe interessa muitíssimo!
VII
Assim que terminei o supletivo de 1º grau, tive outra recaída... E fui mais fundo dessa vez...
Eu tinha feito concurso para a Brigada Militar, tinha passado, e já estava fazendo o curso na ESFECs-Escola de Cabos e Soldados da Brigada Militar.
O curso era muito puxado. Não agüentava o ritmo dos exercício físicos e dos estudos, e resolvi voltar a usar drogas, acreditando que isso iria me fazer bem. Vã ilusão de viciado...
A recaída, é sempre assim...
A gente acha, que dessa vez iremos controlar, que ficamos mais velhos, que temos mais experiência, por isso, não perderemos o controle, essas idiotices fomentadas pela própria doença, que pretende sempre justificar a recaída...
Foi uma pena, pois eu estava gostando muito de ter entrada para a Brigada Militar! Foi minha primeira conquista na vida.
Minha mãe, minha vó e meu pai, estavam muito orgulhosos de mim... Parecia que os problemas tinham definitivamente acabado... Mas que nada! Só estavam começando!
Na Polícia Militar, a coisa é séria mesmo... A gente tem que se esforçar muito, para concluir um curso tão exigido quanto aquele, que estava freqüentando. Drogas nem pensar... Mas acabei conhecendo alguns rapazes de minha turma que usavam drogas. E o pior, usavam cocaína...
Até então, nunca a tinha experimentado devido ao medo, e a um aviso interior que eu tinha...
Mas fumar maconha durante um curso na polícia, é ruim meu amigo...
Fica o cheiro na roupa... Tem que "esmorrugar" (triturar para poder fechar o cigarrinho...), isso demandava tempo, maiores cuidados, riscos que eu não estava a fim de passar, pois não queria ser expulso.
Então aceitei a cocaína, que um dia um dos rapazes me ofereceu...
Naquele momento, uma página muito diferente na minha vida começa a ser escrita... Naquele momento, me autocondenei à dor, à paranóia, que até hoje me acompanha, e ao desamparo de minha família... Aceitar a cocaína, foi a mesma coisa que dizer:
"-sou culpado! Me fuzilem! Quero morrer!"
A cocaína entrou na minha vida, como um tanque de guerra, destruindo tudo...
Emagreci de uma hora para outra...
Virei pura pele e ossos...
Não sei como, consegui concluir o curso, passei por um fio...
Fui trabalhar na rua, mas logo enlouqueci. Cerca de cinco meses depois de ter concluído o curso, comecei a ter umas paranóias horríveis...
Achava que todo mundo queria me matar, e o pior, é que trabalhava armado, vivia achando que alguém iria chegar por trás de mim, me tirar a arma e me dar um tiro em minha cabeça...
Também o serviço era barra pesada. As vezes eu trabalhava na PATAMO, um Grupo Tático da Brigada que fazia patrulhamento ostensivo, com armas pesadas, e a gente enfrentava grandes operações policiais, tipo barreiras, revistas em favelas, etc.
Isso me deixou mais comprometido, psicologicamente falando...
Num dia, cheguei completamente alucinado no quartel, acusando todo mundo de traição e espionagem. Acabei sendo mandado para o Hospital Psiquiátrico da Brigada Militar, aqui em Porto Alegre.
Foi o fim de minha carreira policial.
Acabei sendo excluído por incapacidade física para o exercício da função, como eles dizem: alínea 4ª !
No Hospital Psiquiátrico da Brigada Militar, tive uma das mais intrigantes alucinações de minha vida: passei quase dois meses achando que era Jesus Cristo ! E o pior: acreditava que Jesus não precisava usar roupas, por isso, andava peladão, pelo pavilhão psiquiátrico...
Eu não aceitava usar roupas, e quando me davam, as pegava e jogava tudo pela janela...
A enfermagem ia lá fora buscar, e me traziam de volta. Eu pegava e jogava pela janela, tudo de novo!
Foi tantas vezes, que deixaram de me entregar, e guardaram tudo...
Lembro-me que uma tarde entrei no quarto, vi uma colcha branca sobre minha cama. Dei-me conta que ali estava a minha roupa oficial: o Manto Sagrado !
Meus pais, quando me visitavam, tinham que entrar embaixo do "manto sagrado", enquanto isso, eu ficava rezando vários pais-nossos, para eles saírem mais "purificados". Coitados...
Como sofreram aquela vez! O interessante é que ainda hoje me lembro de todas essas minhas alucinações, com perfeição, porém, coisas de minha infância, e da adolescência, não consigo recordar...
Lembro-me muito bem, que uma noite fui visitado pelo próprio diabo...
Eu estava na cama deitado...
Alguém da enfermagem veio e apagou as luzes do meu quarto. No meio da escuridão, comecei a sentir que eu não estava sozinho... Sentia uma presença que me davam arrepios...
Sabia que era alguma coisa que estava ali para me fazer mal!
Aos poucos, senti que a coisa se aproximava mais de minha cama... Ouvi um rosnar, e depois alguma coisa, que parecia um cachorro mastigando, se lambendo todo... Foi assustador!
Tinha vontade de gritar, mas pensei que se gritasse, o bicho iria me comer inteirinho...
Puxei o lençol sobre minha cabeça , cobri todo o meu corpo, e comecei a tremer feito uma vara verde! Sentia que o bicho se aproximava cada vez mais de minha cama... sempre mastigando, e rosnando baixinho... Comecei a sentir um cheiro de podre, um cheiro de esgoto, que me inundou o nariz, deu vontade de vomitar...
Aquela coisa então, subiu em minha cama! Que droga!, pensei...
O bichano foi subindo devagarzinho... Primeiro uma pata. O peso da pata fez afundar a cama de mola, e tudo rangeu... Veio o outro pé, que passou por cima de mim, e foi ficar na cama, do lado da parede... O outro pé, ficou perto das minhas pernas, e o quarto no meio... Quase morri de medo...
Ouvi que um líquido começou a ser despejado, por cima de mim, me dei conta que aquela coisa estava se meando toda...
Ele estava meando em cima de mim por gosto!
Depois, vi que começou a cair uns "troços", em cima dos meus pés... Era cocô! Senti que a urina fedorenta daquela "coisa", atingia a minha roupa, me molhando todo, ensopando todo o meu colchão...
Sei que comecei a rezar e desmaiei !
Fiquei bastante tempo achando que era Jesus, com o passar dos dias, fui voltando a mim...
Recebi alta, e fui pra casa...
Tinha ficado tão impregnado com a medicação, que demorei cerca de um mês para recuperar os reflexos e a coordenação motora.
Tive que tomar uma medicação, a base de Piracetam, para reoxigenar minhas células nervosas, pois meu cérebro estava embotado, de tanta intoxicação medicamentosa...
VIII
Após dois meses, longe das drogas, conheci uma menina... Acho que me apaixonei, pela primeira vez em minha vida!
Ela era de uma personalidade muito forte, decidida, e exerceu sobre mim, um grande domínio... Foi a primeira mulher de minha vida!
O incrível, é que ela também nunca havia tido um namorado, eu também estava sendo o primeiro homem em sua vida... Então, por isso, posso afirmar, categoricamente, que descobrimos nossa sexualidade juntos...
Foi um acontecimento em nossas vidas, muito delicado, e bonito, recheado de muito romantismo...
Fazíamos jantares à luzes de velas, nos presenteávamos um ao outro... Tudo era maravilhoso. Mas ela trabalhava muito... Eu, na época, tinha conseguido um emprego com um advogado...
Esse advogado, acabou se candidatando à vereador e eu assumi o controle da campanha dele.
Tudo estava perfeito. Eu trabalhando. Ela também. Acabamos resolvendo ir morar juntos, e depois pretendíamos casar...
O advogado se elegeu, eu ganhei um cargo de Auxiliar Parlamentar, na Câmara de Vereadores de Porto Alegre. Comecei a ganhar muito dinheiro...
Os nossos planos de casamento estavam a todo o vapor. Já imaginávamos até um filho para o outro ano. Ela me cuidava todo.
Já haviam se passado quase oito meses sem drogas, as coisas iam muito bem.
No gabinete, porém, começaram a surgir problemas... Comecei a encontrar algumas resistências. Não aceitava a corrupção que eu via acontecer, descaradamente lá dentro...
Vi que meu vereador se mantia omisso, ou melhor, ficava quieto e absorvera a "panelinha". Comecei a ficar decepcionado com tudo aquilo.
Eu tinha muitos planos, e haviam muitas idéias que surgiram durante a campanha, que não estavam sendo colocadas em prática, por falta de vontade política. Eu sempre tive essa coisa de ideologia, muito viva em minha personalidade... Isso era muito forte em mim, como até hoje é.
Os fatos, começaram a me causar stress e depressão...
As seqüelas neurológicas, do tempo de uso de drogas, começaram a se manifestar, num quadro grave de esquizofrenia paranóide...
Ninguém entendia nada. Meu comportamento começou a mudar com as pessoas. Comecei a ficar nervoso, largava na cara delas as verdades que eu acreditava. Pronto!
Armei toda a recaída, e foi no que deu... Recaí...
Comecei primeiro com a maconha, achando que seria o suficiente, que teria controle, mas ficava mais deprimido ainda. Chapado, e sem controle da razão, acabei recaindo na cocaína!
Encontrei-me com um "amigo", numa festa, e ele puxou um papelote, que fez eu sujar minhas cuecas na hora...
Não sei se vocês sabem, mas a cocaína age, numa área do cérebro, que coordena a formação das fezes e da evacuação, e quando lembramos do seu efeito, imediatamente acontece um fenômeno neuroquímico, em nosso cérebro, que desencadeia uma ordem a um grupo de neurônios, que entendem que há a necessidade de se ir aos pés... (pelo menos, essa foi a maneira que achei para explicar isso a vocês...). Perdoem-me, se provoquei algum mal-estar...
Talvez esse fato, faça vocês compreenderem, como é profundo essa coisa da dependência, acontecendo em nós...
Não é apenas psicológico como muitos dizem... É físico! É à nível neuroquímico!
Os neurônios, guardam para sempre, em sua memória, o efeito da droga, e agem sobre nossa mente, a solicitando.
Porque não dizer até, preparando a nossa recaída...
É como se houvesse um programa de computador, funcionando num arquivo escondido, preparado para agir quando a "senha" for "digitada"...
A minha recaída foi fatal! Por três vezes minha guria chegou em casa e não havia nada no apartamento... Nem os vasos de flores haviam sobrado...
Eu entregava tudo para o traficante...
E quantas vezes, em troca de nada!
Coitada... É impossível em poucas páginas descrever o sofrimento daquela menina...
Ela, com certeza, me amava muito, caso contrário, não teria agüentado o que suportou de mim.
Quantas vezes ela acordava de noite e colocava a mão no lugar onde eu devia estar deitado, sem me encontrar...
Quantas vezes perguntou por mim. Quantas vezes, eu gritei debaixo da cama que estava lá!
Lembro-me que ela ficava no escuro, chorando... Eu, embaixo da cama, morrendo de medo de um fantasma que eternamente me perseguirá, suando em bicas...
Meu coração, a 140 por minuto, não tinha um enfarte não sei porquê...
Eu fedia a cocaína...
Exalava cocaína por todos os poros...
É um cheiro de éter, que inunda o ambiente onde tu tá...
Eu mesmo, sentia aquele cheiro horrível, que saia de minha própria pele, que brilhava, devido aos cristais de coca, que saiam junto com o suor...
Eu sentia que mãos pegavam minhas roupas, e tentavam me puxar, para não sei aonde...
Eram mãos de assassinos, disso eu tinha certeza...
Ouvia pessoas falando do outro lado da porta... Elas discutiam, de que maneira iriam arrombar, e de que modo iriam me matar, quando a porta se abrisse...
Eu morria de medo. Eu chorava... Quantas vezes, peguei correndo o resto de pó que ainda havia no saquinho que eu tinha, e cheirei tudo de uma vez, só com medo que a polícia abrisse a porta, e me pegasse em flagrante! Quantas vezes corri o grande perigo da overdose...
Acabei então perdendo o emprego. Foi fatal. Expliquei ao vereador minha situação... Ele me deixou um mês de férias.
Após aquele mês, ele disse que o emprego não era mais meu, já que ele não podia correr riscos comigo, naquela situação. Ele tinha razão...
Minha guria me internou no Hospital Psiquiátrico São Pedro...
Eu, num dia de crise de abstinência, acabei fugindo... Não agüentei a crise de abstinência... Foi demais.
Comecei a ter cãibras pelo corpo todo, uma agonia tomou conta de mim. Numa hora, que abriram a porta que dava para o pátio, derrubei todo mundo, e saí correndo...
Fui aparecer em casa, vários dias depois...
A minha guria resolveu tentar me cuidar dentro do apartamento, e me trancou por um mês inteiro...
Era um kitinete, e a porta tinha grades, no lado de fora. Ela saía para trabalhar e me deixava trancado...
Trazia-me comida, me arrumou uma TV, um vídeo-cassete, e eu ficava assistindo fitas de vídeo. Usava alguns medicamentos homeopáticos. Tomava bastante suco de maracujá, para relaxar o stress, e agüentava a crise de abstinência no osso... Mas eu tinha o carinho dela, a me apoiar.
Foi a maior demonstração de amor que ela teve comigo, hoje sei disso...
Naquela época, minha sensibilidade estava completamente adormecida pelos efeito tóxico da droga...
Não tinha como valorizar qualquer coisa que viesse a ser feito por mim... O interessante é que a dependência nos torna muito egoístas. .. Só conseguimos pensar em nós mesmos... Na verdade, estupidamente, já que se pensássemos em nós mesmos, com inteligência, não nos deixaríamos enganar pelo vício e juntaríamos forças para largar...
Porém, ao contrário, nos deixamos facilmente escravizar pela droga, sem sequer darmo-nos conta disso...
Só sabemos lutar por drogas, passamos a não dar valor para nada, numa caminhada suicida... Muitas vezes estamos já arrebentados, magros, os ossos da face aparecendo, sem forças até para caminhar, e mesmo assim continuamos defendendo nosso direito às drogas...
Um ato inconseqüente de nossa parte, que demonstra o quanto ainda precisamos amadurecer, que, na verdade, só pode nos indicar que ainda temos muito o que aprender na vida!
Naquela vez, não valorizei o esforço dela... Para mim, era só mais um tratamento, e tinha que ficar trancado, sem liberdade...
Sem drogas....
Eu não havia chegado à maturidade, que hoje tenho... Ainda tinha que tomar na cabeça, mais um pouco...
Após um mês, ela me liberou, e as coisas voltaram ao normal.
Normal entre aspas...
Não demorou dois meses, e nova recaída... Agora a coisa foi séria mesmo. Comecei a ter umas paranóias na rua, e quantas vezes fui visto correndo, pelo centro, na madrugada, fugindo do nada...
Minha guria então, foi à loucura, e me deu um cartão vermelho! Estava liquidado o nosso relacionamento... Eu já estava então, com vinte e poucos anos...
Dessa parte em diante de minha vida, a história começa a ficar difícil de ser narrada por mim, porque, simplesmente, não me lembro de muita coisa...
Após ela ter me deixado, entrei numa forte crise depressiva, e fazia qualquer negócio para esquecer, que havia perdido uma pessoa maravilhosa... Não queria sentir em mim, os efeitos de minha consciência! Sentia quase uma dor... Uma dor muito forte, que representava todas as perdas de minha vida... Essa dor, apontava para um único culpado: eu mesmo! Eu negava a própria culpa. Através da droga, me esquecia dos fatos, já que era tomado por paranóias e alucinações. Eu estava acostumado a enganar minha consciência, fazendo-a calar-se...
Quantas vezes, a detestei, pois ela me cobrava uma renovação em meus hábitos, que preferia não atender...
A mudança me parecia inútil, justificava, que não me levaria a nada, a não ser, que teria que enfrentar a realidade da vida, que era muito dura... Na verdade, eu era um grande covarde, ou as drogas me deixavam covarde, confesso que não sei...
Lembro-me, que comecei a andar com uma gurizada "barra-pesada" do centro...
Comecei a vender droga misturada com aspirina para quem eu conhecia. Misturava também pó-de-mármore, Rehidrat... Misturava esterco na maconha. Fazia qualquer negócio para arrumar grana.
Nós tínhamos vários "camaradas" que saíam com caras, pra arrumar grana...
Era uma coisa de mal-gosto, mas dava um bom pagamento... A gente ia aos bares gays, e sempre saíamos uma ou duas horas com os homossexuais, que nos levavam até as suas casas... Lá rolava de tudo, conforme o gosto do cliente...
Muitas vezes, até "pintava" violência, roubo...
Nós, completamente "ligados" pela cocaína, "fissurados", não queríamos saber de nada...
O arrependimento é uma coisa que te mata! É impossível descrever a dor que a gente sente...
Dá uma vontade de chorar, de se matar, de sumir do mundo...
Durante minhas crises de consciência, eu pedia a Deus que me tirasse das drogas. Que fizesse com que nunca mais sentisse vontade de usar...
Numa delas, tive a idéia de tentar o suicídio. Carrego as cicatrizes nos pulsos até hoje...
Eu estava numa de minhas internações. Bateu-me a crise de abstinência, uma forte depressão... Resolvi me matar! Pedi o aparelho de barba ao enfermeiro e fui ao banheiro. Tranquei-me... Joguei rapidamente o aparelho de plástico no chão e pisei em cima, até quebrar.
A gilete se soltou...
Fui pra frente do espelho, olhando meu rosto, tive raiva de mim, cheguei a conclusão que estava fazendo o melhor pra todo mundo...
Fiz o sinal da cruz, e cortei os pulsos, num golpe forte e profundo, que fez jorrar o sangue pra cima!
Com a perda do sangue, perdi os sentidos e caí no chão do banheiro... Não cheguei a sentir nenhuma dor, somente muita ardência no pulso...
O sangue encheu o piso e correu por baixo da porta... Alguém da enfermagem deve ter notado e a arrombaram.
Acordei recebendo uma transfusão de sangue, na UTI de um pronto-socorro...
Meu pai, mais ou menos nessa época, desistiu completamente de mim...
Eu andava demais.
Teve um dia que eu queria dinheiro de qualquer jeito e ele se negou a me dar. Arrumei então várias latas de tinta spray e pintei todos os carros, e os muros das casas da rua dele, com o seu nome, e o telefone residencial...
Ele teve que mandar limpar e cobrir todo o prejuízo do pessoal... Soube que muita gente da rua ficou de mal com ele, por um bom tempo...
Com a desistência de meu pai, acho que começou o processo de amadurecimento de minha parte...
Minha mãe também desistiu. Não que ela tivesse realmente desistido, mas acredito, que ela havia chegado a conclusão de que o melhor era me largar, e deixar eu bater com a cabeça...
Afinal de contas, eu estava psicótico, violento... Numa das minhas loucuras, briguei com ela, porque queria dinheiro... Derrubei-a no chão e a enchi de pontapés... Ela ficou toda roxa, por vários dias...
Isso a deixou com o coração muito magoado... Era natural que ela me evitasse...
Quantas vezes cheguei de madrugada, e aos gritos, em frente ao edifício, pedia pra me deixar entrar... Ela ficava me olhando, pelas frestas da janela, chorando...
Ela conta, e eu não me lembro disso, que numa manhã, ela abriu a janela do edifício e me viu passar correndo, seminu, descalço, sem camisa, apenas de calção, com uma toalha amarrada na cabeça, e um cabide, que caía do meio da toalha... Realmente eu não me lembro disso...
A minha vó também tinha desistido... Numa das vezes que estava em sua casa, após ela me dar abrigo, eu levantei de madrugada, completamente "fissurado", por uma linha de pó, e não tive dúvidas...
Fui até a cozinha, peguei uma faca... Abri a porta do quarto dela, devagarzinho, cheguei próximo da cama... Dei um chute no estrado, foi tão forte, que minha vó se acordou, num pulo só... Então, encostei a faca no pescoço dela, fiz me dar o cartão do banco e me dizer a senha...
Pobre de minha vozinha... Tirei todo o dinheiro que ela tinha na poupança...
Realmente, eu estava completamente psicótico, e perigoso...
Quando estamos na droga, perdemos nossos sentimentos... Não importa se é mãe, ou pai, irmão ou irmã, importa é que eles tem dinheiro, e precisam nos entregar tudo! E para tirar o dinheiro deles, vale qualquer negócio...
Nessa época, eu comecei a me dar muito mal...
Sem mais o apoio da família, tive que começar a roubar, a me prostituir, a fazer qualquer coisa...
Fui definhando, até porque não comia nada, pois a cocaína me tirava toda a fome...
A cocaína é um analgésico. Anestesia o estômago, a gente perde a fome. Também começamos a emagrecer, porque o corpo precisa se sustentar, mesmo que não estejamos nos alimentando...
Para isso, nosso organismo começa a se utilizar dos depósitos de gordura, e de músculos, do tecido adiposo, e do tecido muscular. É por isso que todo o viciado em pó, crack, ou inalantes, emagrece a olhos vistos...
A cocaína também te provoca diarréia constante, pelo motivo que já expliquei, algumas páginas atrás...
Nessa época, tive minha primeira overdose...
Não consigo me lembrar com exatidão, em qual ano... Minha memória é péssima, devido a destruição de sua capacidade de armazenar informações e fatos passados... Sei que quase morri... Tinha cheirado demais, e o meu organismo entrou em choque...
Acabei no Pronto-Socorro, e de lá, para uma clínica psiquiátrica do estado.
Lembro-me que passei muitos dias tomando soro. Quando melhorei, uns dez dias depois, fugi da clínica, e voltei às drogas...
Fiquei vários dias na rua, e acabei pedindo água, ou seja, fui até o São Pedro e arrumei uma vaga pra mim...
Fiquei internado vários dias, quando ganhei alta, liguei para minha irmã em São Paulo, e pedi que ela deixasse eu ir morar com ela.
Ela deixou...
IX
Em São Paulo, aconteceu o pior... Conheci o crack, que tanto havia escutado falar...
Eu estava bem com minha irmã. Ajudava ela a cuidar de minha sobrinha, ela confiava em mim. Ela era casada com um cara, que trabalhava na área de segurança. Esse rapaz tinha um revólver e eu acabei roubando a arma...
Com a arma, subi a favela do Jardim Miriam e troquei o revólver, por 48 pedras de crack... Lembro-me que encheu um saquinho...
Foi arrasador, como tudo aconteceu. Eu nunca havia fumado aquilo antes... O crack, é muito violento. Chega ao cérebro em 15 segundos e o efeito é destruidor.
Com as pedras de crack, me internei em um quartinho de hotel, e fiquei seis dias, fumando as "pedras", sem parar...
Quanto mais fumava, mais vontade tinha de fumar... Era impossível parar... O crack me ressecava a garganta... Provocava-me uma tosse, que doía toda vez...
Mesmo assim, eu não parava de fumar... Fiquei aqueles seis dias sem comer e sem dormir! No sexto dia, sem sair do quarto, eu já estava um caco.
Havia emagrecido uns 14 quilos no mínimo!
Meu coração começava a doer, de tanto ter que trabalhar sob stress. Meus olhos, eram duas bolitas gigantes e estaladas, eu não conseguia sequer cerrar as pálpebras...
A coisa foi muito violenta. Iniciou-se o processo de overdose...
Comecei a estertorar, a ter convulsões, me mijei nas calças...
Comecei a me babar, e a sentir um frio horrível, que parecia que iria me congelar... Estava morrendo...
Naquela hora, me lembro que pedi mentalmente à Deus, por uma chance...
Pedi-lhe, que não me deixasse morrer! Vi, que dessa vez era o fim... Senti a morte de verdade! Naquela vez, não haveria retorno, pensei... Senti isso dentro de mim, e me apavorei, com a morte que se aproximava...
Todas as minhas forças se concentraram na imagem de Jesus, me lembrei do Salmo 23... Pedi perdão, e me apaguei...
Acordei-me no hospital de pronto-socorro de Jabaquara, com uma agulha espetado em minha veia. Era soro!
Eu não havia morrido! Cheguei a conclusão que Deus havia aceitado meu pedido, que uma nova chance havia ganhado...
E estava decidido a não desperdiçá-la mesmo...
Do hospital de Jabaquara, conseguiram uma vaga para mim na Clínica Santa Fé, em Itapira/SP. Fiquei vários meses. De lá, fui para o Hospital Charcot, de volta à São Paulo-CapitaL.
Daquela clínica, consegui entrar em contato com minha mãe, que a essas alturas morria de preocupação sobre o meu paradeiro...
Ninguém sabia, o que tinha acontecido comigo...
Minha mãe ficou muito feliz em saber, que faziam vários meses que eu estava internado, e a esperança, voltou a brilhar...
Ela resolveu me internar numa clínica em Porto Alegre, e me fez voltar para o Rio Grande do Sul...
Ainda me lembro, que, como não tinha roupas, tive que voltar no ônibus interestadual, com o uniforme do Hospital Psiquiátrico Charcot!
Foi um retorno de muita emoção para mim...
Sentia que estava voltando para casa, e que tudo havia terminado. Que dali em diante, eu iria trilhar o caminho da restauração!
Quando cheguei em Porto Alegre, ainda fiquei uns três dias na casa de minha mãe, até que surgisse uma vaga numa clínica particular, aqui em Porto Alegre.
Surgida a vaga, minha mãe me internou novamente. Mas agora, não havia mais a necessidade de tantos cuidados, pois já vinha desintoxicado de São Paulo.
Pude, de imediato, passar a receber visitas, e tive um ótimo atendimento, por parte do meu novo médico, o Dr. Rômulo Vieiro. Todos os médicos anteriores, não se acertaram comigo...
Eu tinha necessidade de conversar, de bater papo, sobre minha vida... Até de ser xingado...
Queria conselhos, queria me conhecer, queria entender minha própria doença...
Queria saber, porque tinha tanta compulsão, porque tinha tanta tentação, e como evitar a recaída...
Comecei a estudar vários livros, enquanto estava internado, e lá dentro, tive a idéia de fazer a minha primeira obra, que acabou se intitulando: "Meu Filho Não!".
Foi uma coisa incrível. Nunca havia composto um livro. Nem sabia como...
O Dr. Rômulo, muito envolvido, me apoiou, me estimulando até. Trouxe-me várias obras. Mostrou-me o CID 10-Código Internacional de Doenças, trouxe diversas publicações da área, então comecei um grande trabalho de pesquisa...
Minha mãe patrocinou a obra e mandou imprimir o primeiro milheiro. Hoje, já está na casa do 3º! As coisas foram acontecendo muito rapidamente...
Acabei indo morar no município de Porto Xavier, e lá, junto com um grupo de teatro, formado por crianças e jovens, produzimos uma fita de vídeo, que se intitulou: "Drogas, Abuso e Prevenção".
Foi um trabalho que durou sete meses para ser concluído!
Minha mãe teve que vender o carro que tinha para cobrir as despesas com a produção do filme. Todos nós trabalhamos como atores, e como quebramos a cabeça.
Foi muito difícil, maquiagem,iluminação, etc. Enfrentamos várias dificuldades. Toda a comunidade do município de Porto Xavier nos apoiou o que nos facilitou a produção. Mesmo assim foram quase sete meses de gravação. Quando terminamos as crianças não agüentavam mais...
Deus me iluminou, me orientando na montagem do roteiro e na direção.
Com a conclusão do vídeo, começamos a distribuí-lo para as escolas de todo o Brasil. Mais tarde, as pessoas começaram a nos pedir palestras para explicar a nossa abordagem e então começou o Projeto Renascer...
X
Com a idéia do Projeto Renascer, um novo tratamento para mim começou...
Já fazia quase um ano que estava sem usar drogas. A probabilidade da recaída estava aumentando. Para se chegar a esta conclusão, bastava olhar para trás, na história da minha dependência química. Ora, era lógico que logo voltaria às drogas...
Ainda hoje procuro explicar que sinto sim, vontade de usar...
Sinto uma forte tentação que as vezes me faz pensar.
Mas, se é assim, porque ainda não recaí?
Ou será que logo isso acontecerá novamente?
Minha vida se transformou totalmente. Isso todos que atualmente me cercam podem testemunhar. Apesar de haver o perigo da recaída, há uma situação muito intensa de prazer que me envolve e vicia...
E vicia mesmo! Não há nada mais gostoso que ver as crianças entendendo a minha situação e no final dos encontros, levantarem os dedinhos para pedir pra falar, e afirmarem em público, que irão rezar para que eu nunca mais recaia! Talvez seja pura carência minha, e deve ser, mas ver que estou interferindo num processo de evolução de uma mente humana me agrada muito.
Sempre me importei com as pessoas desde pequeno. Quando era criança e via um mendigo na rua minha mãe tinha que me segurar porque eu sempre queria abraça-los...
Não quero que as pessoas passem pelo que eu passei, pois sei que é um sofrimento muito grande, além de um grande atraso. Não temos tempo para perder. Não podemos entregar 10, 20, 30 anos, ou o resto de nossa existência às drogas. É um crime deixar isso acontecer aos pequenos.
Hoje tenho como missão realizar esse trabalho, que me sustenta emocionalmente, psicologimente falando...
Não recairei porque sei que ainda existem milhares de crianças que precisam conhecer minha história, para estarem alertas quando a "oferta" chegar. E a "oferta" é muito grande.
Ela não está apenas nas propagandas de TV, ou de jornais, ela está também inserida nas músicas que os nossos pequenos escutam, todos os dias no rádio.
Ela está inserida em amplos "debates", sobre a liberação ou não das drogas, promovidos por pessoas sem escrúpulos, que de alguma forma se aproveitam desse tipo de polêmica para ganharem notoriedade...
Eu entendo que drogas causam um grande transtorno ao desenvolvimento do corpo humano durante o seu processo de crescimento e puberdade...
No momento que as drogas trazem prejuízos, até para a sexualidade, é um ato de irresponsabilidade libera-las! Ponto final. Não há porque discutir mais...
Quando alegamos que somos adultos e que temos o direito de fazer o que queremos em nossa vida, e por isso queremos liberar as drogas, estamos sendo muito egoístas, com certeza!
Porque não estamos nos importando com os pequenos, que teriam acesso a ela facilmente, como já acontece com os cigarros e as bebidas. Não a liberação! Não mesmo...
Ora, lá pelos anos 30 a cocaína era liberada no Brasil...
A vendiam em farmácias... Porém, quando os filhos dos políticos começaram a morrer, como se tivessem dado veneno a eles, resolveram a proibir, utilizando o recurso da Lei. Mas parece que já se esqueceram disso. Lógico, isso aconteceu quando os pais deles estavam no poder...
XI
Nós jovens somos a peça fundamental na vida presente de nossa família, e para nossa própria vida, no futuro.
Nunca devemos ter a idéia de que sabemos tudo... Quem pensa assim, demonstra que pouco sabe... Ao contrário, devemos e precisamos ter olhos e ouvidos bem abertos, pois precisamos aprender. Principalmente, sobre nós mesmo.
Somos seres-humanos, maravilhosos, donos de uma brilhante inteligência, que supera todos os animais que circulam nesse planeta, porém, isso nos oferece também uma sensibilidade mais apurada.
Uma grande complexidade psicológica. É porque somos inteligentes! Quanto maior nossa inteligência maior será a chance de nos encontrarmos em conflitos existenciais! Esse é o motivo por que devemos ser "espertos"... Não nos deixarmos cair na depressão, que é uma armadilha, aonde os fracos perecem...
Todos somos fracos, enquanto aceitarmos esse fato. No momento, que realmente quisermos nos transformar numa pessoa forte, isso acontecerá. Porque o ser humano tem essa possibilidade. A facilidade de descobrir caminhos, para o crescimento interior. Já, os animais, não têm como buscar maturidade mental... Eles nem sabem o que é isso!
Um dos instrumentos colocados por Deus, para que aprendamos na "marra", é a dor... Em muitos casos, a droga se enquadra bem nessa circunstância... O que não é desculpa para o suicídio!
Precisamos muito de sabedoria, mas ela não está na droga, isso posso afirmar a vocês. Eu encontrei a sabedoria nos livros que estudei, no carinho dos meus professores, na presença de meus pais, no "cafuné" de minha namorada...
Também encontrei sabedoria, na partilha de meus momentos, com bons amigos, enquanto trocávamos experiências pessoais...
Enquanto usava drogas, "aqueles amigos" que usavam comigo, nada tinham a somar, nunca me deram prazer em nada... Hoje, tenho um prazer incalculável com os amigos que possuo, e, principalmente, em saber que ao término dessa leitura terei mais um novo amigo... Obrigado por você ter tido paciência e ter chegado até aqui! Espero ter lhe ajudado, pelo menos, em lhe oferecer mais conhecimento nessa área.
Que essas informações lhe possam ser útil, e que Deus, Lhe seja sempre Fonte de Luz!
Procuremos sempre mantermos nossa juventude e não sermos radicais.
O homem é um ser político, e precisa aprender a dominar sua tendência aos melindres...
Devemos aprender a conviver com qualquer situação...
Isso é o homem, um ser capaz de se adaptar e de ainda somar, à construção de uma sociedade melhor. Vamos juntos, fazer a nossa parte!