Setenta anos de idade, habituado ao cultivo dos refinamentos do raciocínio e às labutas do saber, da invenção, o sr. Leonel possui uma elasticidade invejável de corpo e mente, a mesma juventude de suas idéias claras e concisas, no falar ágil e atualizado.
Tudo muito simples. A forma como fala e a tudo observa desconcerta pela singeleza e pelo despojamento. Espanta-se o interlocutor, ao ver a verdade tão palpável, destituída de complicações, a beleza que vem dos gestos cotidianos. Em suas mãos, um aparelho de precisão parece tão tosco e trivial. Apoiado no fogão, o aparelho de Foulcault é o que é, para medir a curvatura dos espelhos.
Deus? O verdadeiro cientista, o “cientista puro”, é ateu, ele diz. Mas crença não se discute. Tendo fuçado o firmamento como ninguém, nada veio lhe alterar as convicções. Existe um Ser que criou o céu e nos plantou em planeta de tão modestas proporções.
E a gente, seu Leonel? A terra é um grão de areia. O universo é enorme. Nós não passamos de micróbios. Vermes é o que somos.
Mora, mas não vive sozinho. Quem chega de visita, vai encontrar um homem afável, ocupado com o que produz, apaixonado pelo que faz. Enquanto se esmera em gentilezas, fricciona de passagem algum espelho, observa-lhe a superfície ainda fosca, mede, avalia, mexe aqui e ali, ordenando o aparente caos do seu ambiente de trabalho.
O céu de Araraquara é um mirante límpido e privilegiado. Não na cidade, é claro. Um pouco mais adiante, pelos arrabaldes, matões, velhas estradas desativadas, desvios, desvãos, escuros. Os olhos perscrutam o céu, embebedam-se de luz, surpreendem-se com o súbito aparecimento de comas errantes, com os derradeiros lampejos de uma supernova que explodiu a 130 mil anos. Melhor não entrarmos tanto pelo campo das quantidades, dos números, das estatísticas. O céu, inverossimilhanças. Do que ouve, o leigo não retém mais que espanto, encantamento, comoção, matéria de poesia.
Diante da imensidão do céu e da reduzida dimensão dos homens e do planeta que habitam, o sr. Leonel, seu discípulo Weber e os repórteres desta página estão tomados pela emoção de terem vivido juntos alguns bons momentos de elevação e humanidade.
Já de saída, se algo ainda dissemos, terá sido por força do hábito. Instantes assim dispensam fórmulas e palavras. Estávamos tomados pelo entusiasmo, cheios de espírito.
"Entusiasmo" vem de “teos”, que quer dizer “deus” em grego. A presença divina é uma força na qual o sr. Leonel jamais deixou de acreditar. Tudo o que sabe e tem visto, não pode ter vindo do nada, não se explica apenas pela evolução, como quer a maioria dos cientistas.
Ali, no instante em que nos despedíamos, naquele quarteirão deserto da Rua Zero, ainda que humanos, ainda que vermes, micróbios, experimentávamos a plenitude. Estávamos cheios de Deus.
[Este texto foi escrito a partir de uma entrevista que eu e Henrique Punk fizemos com o sr. Leonel, na presença do Weber, tendo sido publicado neste jornal em 13/07/97. Com algumas poucas alterações, ele mantém o presente das emoções vividas naquela noite estrelada do mês de julho. O cenário agora está vazio, a casa da Rua Zero em que o sr. Leonel viveu os trinta e tantos prodigiosos anos de sua existência como construtor de telescópios. A cidade vai e não vai sentir a sua falta. A cidade sabe e não sabe que perdeu uma de suas referências mais intensamente luminosas.]