Levo-me pela música que fizemos nossa, pelos passeios à tarde dos dias em que não se faz nada... demais.
Como as ondas se encontram com a areia, nos dávamos, um ao outro, tendo como troco o abraço e o silêncio, espesso, de terra e sangue. Por ele exorcizávamos as dores fantasmas, com ele estancávamos os lanhos ganhos, recuperávamos o sal perdido pelo olhar.
Era o silêncio redentor, cúmplice de uma culpa não tida, mas vivida contida.
Afinal, o descobridor do meu jardim revelou-se explorador. E assim esquartejei o meu parque, em canteiros, dando aos próximos amantes chave a chave da cancela de cada canteiro, que num todo era labiríntico, longínquo do jardim que era o dela... o nosso... o meu.
Críamos que ainda havia jardim a dar, ambos esperávamos por alguém que fizesse ruir todos os canteiros de uma só vez, com a primeira chave dada... com prazer.
Cada qual olhava para todos com os quais se cruzavam, nos outros dias, à procura da outra margem, imagem animando-se com cada reluz de mensagem recebida, palavra “chá” inserida, cúmplice amortalhada em abraço. A solidão assolava-nos, e o frio terminava na mortalha do chá.
No silêncio que acontecia, a respiração era funda, e do cimo de uma colina irreal víamos cada qual o seu jardim, sem lhe podermos tocar, dar ou usufruir... apenas ver, para crer que há, sustentando o modelo imposto a quem pretende entrar no parque.... modelo falso, como quem quer fazer-se subir num degrau que não existe... passo em falso, desequilíbrio, cama como refugio, projecções daquilo que irá acontecer, porque inevitável, porque falso, no fim, por ser pouco... pelo pouco que se sente... por ser nada, por Ser o acontecido.
Nós continuávamos, cada qual a ver as vistas de cada jardim... e de soslaio espreitávamos o do outro.
“Chá?” Sim, claro está, e lá estávamos os dois à espera do silêncio espesso e do calor do abraço... a redenção da culpa não tida, o suspirar de olhos fechados, perto do cheiro que nos faz mais perto de nós mesmos, enfim, tudo num todo. As despedidas eram lentas, chamando o silêncio, como força extra para mais uma desventura... que só duraria uma só semana.
Cada vez mais próximos, entrávamos em malabarismos, fintando o estável pelo ocasional... a infelicidade espreitava, e a conquista do espaço esperado ainda melhor sabia... estávamos, enfim, numa redoma de cumplicidade, de vontade... eram tantas as saudades., que o tempo do reencontro perdia-se no espaço.
O abraço dado e recebido, e lá íamos cada qual para o seu miradouro, de costas voltadas para o esquartejamento, recebendo a aragem do jardim, de fronte subida, de olhos fechados. As nossas mãos davam-se entre o escuro, e assim sabíamos que não estávamos sós.
Num desses dias, que nada demais acontecia, deu-se o inevitável. Durante um silêncio as mãos deram-se mais fortes e fundas, os dedos trilhando os fados desenhados nas palmas, em viagem voyager e como voyeur, cada qual viu os rostos dos corpos visitados, até que por fim ficámos frente a frente, medindo desta vez, o espaço que faltava percorrer, ambos, embaraçados, desviámos o olhar. O espaço lutava, em compressão, contra o esvanecer, e os nossos corpos cederam, dando um passo atrás.
;– Entre mortos e feridos restámos nós... o sorriso reapareceu cândido num canto, mas no outro canto da boca falia para o queixo, que encenava o início da investida livre, num rompimento para uma ágora adiada e desejada por ambos, da qual só tínhamos pequenos travos, alicerces da ponte cúmplice que havia sido erguida entre e por nós. Naturalmente do abraço surgiu o beijo, lento como a demora, tenro como a uva, pleno de jardim... era, por fim que nele caminhávamos, descalços, sentindo a verdura estalar, enquanto nos imolávamos diante do vento, do verbo mudo que é amar.
- Tanto tempo... – disse ela.
- Sim, onze anos...
- Esperámos... esperas-te. – sorriu, olhando chão, penteando o cabelo por de trás da orelha, relembrando as vezes que tentei, as outras que pediu e não recebeu.
- Não foi muito... não custou nada.
- Imagino as vezes que foste triste...
- Imaginas as vezes que fui em esperança(s)?
- Imagino as vezes da desilusão...
- A negação da realidade nem sempre foi um dom que agradeci.
- Podes começar agradecer agora...
- Sentes-te agradecida?
- Não se nota?!
- Sabes que nunca fui bom a decifrar nins...
- Acabas sempre por ser desconsertante
- E tu continuas sem responder...
- Tens aqui a primeira chave... – anunciou ela.
- Há muito que me deste a chave mestra... dos onze anos, quantos passamos fora do jardim?
- 3...
- Em 9 meses faz-se um filho.
- E 3 pontas no ar é uma cruz... – retorquiu ela.
- Temos jeito para Cristo, mas sabemos bem que não o somos.
- Onde isto nos vai levar? – perguntou ela.
- Onde queres que isto pare?
- Até onde for o fim...
- Qual é o nosso fim?
- Até ao momento de contar o tempo...
- Aqui não sei o que isso é...
- Nem eu sei contar...
- Marcou-te assim tanto o tempo? – disse-lhe enquanto sugava o trago do último beijo.
- Sempre reneguei escolher-te...
- Quer isso dizer que já vinha sendo escolhido...?
- Nunca acreditaste?!
- Sempre pensei ser o teu brinquedo de estimação... e como esperava, deixei-me ficar.
- Quem espera sempre alcança... – disse ela, displicentemente.
- Eu desesperei, tentei até correr... mas caía sempre no mesmo degrau... o chá.
E com a palma da mão sentiste a minha face por entre os teus dedos finos e frios, retirando-me, por fim, a última máscara que me restava: a vergonha de amar.
Suavemente fatiaste o meu último véu em carne embebida, recuperando-me o olhar-te. Fundo foi o meu mergulhar, puro foi o teu deixar entrar, de pupilas abertas (íris) ávidas por receber, prontas para voltar a amar... de vez.
- Sentiste o peso do tempo? – perguntei-lhe.
- Não foi assim tanto tempo... mas quando começamos a contar?
- Talvez nunca, talvez ontem...
- Estou sem memória hoje... – disse ela, fechando os olhos
- Quero renascer sem tempo – disse-lhe, purgando-me de tudo que achei nefasto em mim.
- Serias um Homem diferente?
- Não. Seria eu, como fui sendo contigo.
- Foste diferente com as outras?
- Fui o que não sou contigo.
- Brincas...
- Assim como não és como foste com os outros....
- Esperas verdade?
- Não. Cumplicidade. – disse-me sem hesitar, como se fosse a única resposta possível.