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Poesias-->CORPO FRATURADO -- 14/05/2006 - 20:41 (ANTONIO MIRANDA) |
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CORPO FRATURADO
Poema de Antonio Miranda
Um corpo alado, falante, iluminado,
estrepitante, de pele transparente,
esponjosa, osmótica, viscosa e
tépida. Um corpo suspenso no ar,
quase enforcado, ressuscitando,
refletido, estampado, simétrico,
com a memória à flor da pele.
Um corpo que sabe, que respira,
que sente, que exala, que grita,
que é um amontoado de ossos,
de partículas, de saberes recônditos
singrando pelas entranhas, sangrando
pelas vertentes, despencando por ações
e reações. Um corpo estático,
dividido em múltiplos movimentos
combinados, somados — inertes!
As duas metades digladiando-se,
negando-se, dialogando, sem a
possibilidade de uma reconciliação.
Tensão. Reflexão. O corpo assimétrico,
expondo-se, buscando sua unidade.
Porque ele se recompõe, a partir
de fragmentos, das partes contraditórias,
dos desequilíbrios. Como uma ponte
entre duas metades que se não excluem,
que se completam, contradizendo-se.
Um corpo que é de todos os gêneros,
que é síntese das extrapolações,
sim e não, talvez, reafirmando-se
em suas misérias, necessidades,
em suas buscas inesgotáveis,
caindo no abismo, transformando-se.
em degeneração salvadora, transcendente.
Dormindo no fundo do poço, na almofada
de plumas, quase morto, revelando-se
múltiplo, suando, excretando humores,
sabendo-se mais dos outros que de si,
indivisível mas fragmentado. Atado,
atávico, atrelado a formas preconcebidas,
preconceitos. Dá-se, nega. Leva e traz,
reluz, falaz. Para habitar seu espaço
mínimo, seu tempo exterior, sua perplexidade.
E tão pouco, entanto, arvora-se inteiro,
sua vida é tão mínima, sua força débil,
memória indelével, turva, soterrada,
escombros, assombros, sobressaltos. Sem
um centro, inencontrável, fugidio, fugaz.
Que é isso: uma pedra, gravidade,
Susto, um planeta desterrado,
a palavra não? Que importa?
O corpo é negação, é atrever-se,
enredar-se, buscar-se nos outros,
reencontrar-se. Laços, silêncios.
Vai em duas direções opostas.
Sente-se inútil, reclama. Sem
sair de si espraia-se, propaga-se.
E se consome em dúvidas, súplicas,
horizontes contínuos, vaga-lumes errantes,
os dias alterando-se, um calor sufocante.
Um sopro, um gesto impreciso, ser.
Uma raiz geotrópica, um pensamento
em diáspora, mares agitados, sofismas,
a vida flui entre quatro paredes,
na penumbra, envergonhada, mesquinha,
guardando moedas na gaveta, anseios.
Que o homem encontre a solidão abissal
dentro do metrô, do ovo, no pátio,
na memória dos ausentes, dos consentidos.
No inferno das verdades absolutas,
nas incertezas intransponíveis.
E no que sabe, duvida. Questiona.
Fraciona-se, divide-se. Diverte-se.
Pois a dúvida é a reposta única,
insubstituível — é o saber que fragmenta,
engendra, mente — a mente aprisiona,
recria, refaz. O mundo, portanto, é
um somatório, um todo, inteiro
que só o homem pode perscrutar, dividir,
duvidar. Recompor, supor, medir,
refutar. Ele mesmo, frágil de tudo, firme.
Não há beiradas, dobras, nem sobras
na completude do corpo, integérrimo,
só de dentro para fora, numa redoma
de argumentos, defensórios, teoremas,
só nos despistamentos, álibis, convulsões
em que se derrama, exterioriza, confessa
e arrepende-se. É uma ilha habitada.
Planetas errantes fazem o périplo
infinito, sempiterno. Ensimesmado,
a criatura tenta evadir-se, romper
dogmas, arregaçar conceitos, convicções.
Aquele eu que pretende ser-o-outro.
Fechado em copas, garrafas perdidas no mar.
O homem busca a si nos estereótipos,
nos lugares-comuns, e encontra os demais.
Totens. Espelhos. Luzes na escuridão dos horizontes.
Aquela multidão de seres vazios em espaços abertos,
em procissões sinistras, de todas as religiões.
Postes. Ferrolhos. A vastidão das pradarias
desconhecidas, em qualquer direção, indo
ou voltando, tanto faz, caminhos perdidos,
insondáveis. A busca é incansável, obsessiva,
os mapas indecifráveis, bússolas avariadas,
provérbios, salmos, ditames, envenenamentos.
Deus petrificado, feito mármore e rosácea,
pedestal. Envergonhado de sua inutilidade.
No canto da parede, na fé dos desesperados,
transformado em esmola, em cetro e arminho,
em desterro e arrependimento. Pecado original.
Deus feito à semelhança do homem, redondo,
num infinito imaginário, omnipresente,
regendo o universo. Pirâmides, estrebarias.
O corpo é a presença de Deus, um sinal,
um vulcão dormindo, um grito de espanto
e espasmo, as águas insistentes, abrindo sulcos
nas veredas da salvação. Nos ladrilhos frios,
de joelhos, nos relicários, escadarias ascendentes.
Mendigos, profetas, incensos. Luz crepuscular.
A unidade e a verdade das alucinações.
Só aos loucos é dado vivenciar o Absoluto.
Os idiotas perdem-se nos detalhes, migalhas.
Meu cérebro perfurado, meu umbigo.
Aprendizagem múltipla, leituras transversais.
Como se o saber fosse uma linha reta,
método infalível, um troféu, descobrimento:
dentro de nós, refletindo a Deus, aprisionado
Manuscritos indecifráveis, alfarrábios, estantes,
hermeneutas, códigos, direitos adquiridos, Vaidade.
Nada. Desvio, desvarios. Confabulações profanas,
arrependimentos, promessas. A carne é fraca,
o corpo é inútil, a mente é um emaranhado
cujo centro, ápice, a própria mente capta, des
venda, decifra, e revela. No espaço-tempo,
na linearidade das palavras, nos discursos infindos,
nas justificativas, nas pregações legiferantes.
A Humanidade é um mosaico enciclopédico,
Que não representa a minimidade de cada quem.
Chácara Irecê, Goiás, 2000.
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