Escrever entre pensamentos cotidianos e usado pelo autor. Assim distingue-se seu perfil e sua estética, dando ênfase a diversas vertentes de seu pensamento inevitavelmente estranho.
João Felinto Neto é contemporâneo, porém, os seus pés ainda tocam, muitas vezes, o solo sagrado dos poemas antigos. Sua paixão pelos poetas que elevaram a humanidade com suas obras-primas impulsiona-o nessa transcendência de época e estilo.
Consolidar razão e emoção em versos “toscos” , como diz ele mesmo, é a única maneira de ressuscitar os mortos e eternizar os vivos.
Sopro poético é uma obra que viaja por um vento brando, com versos suaves.; atravessa uma forte ventania e finalmente, numa brisa, paira no mesmo lugar do qual partiu, o intrincado esboço do poeta, uma forma caricata do ancião que lhe habita.
O poeta não diz: eu quero ser reconhecido. Porém, só se sente feliz, com os olhos em brilho, quando diz: eu estou sendo lido.
A poesia é para João Felinto Neto, uma forma de pensar resumo, ou seja, toda a amplidão do universo físico e intelectual pode ser sintetizada em versos.
Através de seus versos, o autor manipula as impressões cotidianas estabelecendo deformidades no que parece perfeito e enaltecendo poeticamente a imperfeição.
André Tales
Sopro poético
Quando o vento
sopra a areia fria
na manhã que se inicia,
é sopro poético.
Quando o vento
sopra a chuva fina
sobre a casa vazia,
sem ter notado ainda,
sopra as dobradiças,
é sopro poético.
Quando o vento
sopra as flores no jardim,
sopra também para mim
os versos soltos na estrada,
sopra as árvores desfolhadas
pelas folhas que caíram sem ter fim,
é sopro poético.
Quando eu
enlouqueço pensamentos
com o sopro que vem de dentro,
o sopro poético é meu.
Conselhos da lua
Era uma lua que nascia,
que me olhava e dizia:
- Caminhe só.
Iluminava o meu caminho.
O tempo todo insistia:
- Vá sozinho,
é bem melhor.
Na verdade a lua mentia.
A solidão e a saudade
que eu sentia,
dava dó.
A cada passo,
eu consumia
a luz da lua,
e à meia-noite,
no meio da rua,
tornei-me pó.
Sopro do mar
Do mar,
à noite toda,
o vento trazia o teu perfume.
E na manhã ensolarada,
como de costume,
caminho na areia molhada.
Enquanto o mar me toca
com gotículas frias de água salgada,
o meu silêncio me consome
por estar só.
O mar se torna violento,
parece um pouco ciumento.
Se enfurece em ondas que me alcançam,
e cada vez mais se lançam,
tentando me arrastar.
Então escuto o mar
em plena luz do dia,
recitar uma poesia,
e me ponho a decorar.
Não sei qual de nós dois
seria o poeta,
o mar não foi,
na certa
fui eu, tentando me afogar.
Apesar da paixão
As frases vazias,
evasivas
de um inexperiente amante.
O olhar distante,
à procura de uma cena do passado.
O coração ilhado
por dois lustrosos diamantes,
o mais belo par de olhos
por mim já fitado.
A paixão inibe a fala
e deixa atoleimado o pensamento.
Mesmo sem um único compromisso,
o jovem coração ciumento
torna-se arisco.
Eis que o ardor
compulsivo do querer,
faz o homem crer
que tem posse do que preza.
Mas a bela fera
é mais forte,
e mesmo conquistada,
é presa enclausurada
que reage.
Como posso?
Como posso meditar
sob o telhado do templo,
quando sobre ele
não há razão, nem sentido?
Como posso acreditar
em meu próprio pensamento,
quando o meu coração
o mantém esquecido?
Como posso deixar
de escutar o que dizem,
quando a minha vaidade
abre meus ouvidos?
Como posso aceitar
e ser obediente,
quando tudo que quero
é ser diferente?
Eu não posso resolver
esse caso perdido,
se pelo acaso,
sou desconhecido.
Estranha criatura
Os detalhes de seu corpo,
não é possível compô-los,
apenas admirá-los,
misturados a areia,
petrificados,
uma estatueta grega
da glória do passado.
A perfeição de teu rosto,
besuntado com argila,
uma deusa negra,
representada numa forma
indefinida.
Seu pedestal é sagrado,
feito de pedra polida.
Um ancestral,
num mundo ilhado,
moldou uma eterna figura,
a mais estranha
criatura.
Amor de garoto
O garoto amava
platonicamente,
e ficava
à janela
olhando a bela
garota de tranças.
O ciúme tomava conta de si mesmo.
O garoto em silêncio
se atrapalhava nos primeiros passos
da dança.
Quando perto,
um imenso temor.
Na distância,
uma vaga lembrança
como fora
o seu primeiro amor.
Conquista
Apenas o olhar tocou meus lábios,
meu peito,
e voltou aos meus olhos num disfarce malicioso,
notei que ali nascia um namoro.
Não havia jeito,
era despir-se do embaraço
e jogar-se n’aqueles braços
que se abriam para mim.
Colhi a nobre flor
do humilde jardim,
com pétalas disfarçadas de pudor.
Um ato de juventude
que a própria atitude
confirmou.
Os dias arrastados pelo vento,
sem que eu tivesse tempo
de perceber.
Sou um velho jardineiro,
que sem saber
estava absorvido por inteiro
pelo mais singelo cheiro,
o cheiro do amor.
Na biblioteca
Não me encontro
enquadrado em moldura
na biblioteca.
Estou nas finas páginas
folheadas por entre velhas estantes
empoeiradas pelo tempo.
A minha voz eclode
no enorme silêncio
dentro da cabeça de quem lê meus versos.
Não é a minha face,
o reconhecimento,
e sim as impressões diversas
que minha loucura causa
em mentes alheias.
Eis que sou eterno
na poesia,
quando mania
dos que sempre lêem.
Em cena
Num intricado sistema
há apenas um simples curador
para sanar todos os problemas.
Perdoar àqueles que mantêm na dor,
eis um problema.
Quão pequena,
a chance de um desertor,
mesmo por amor,
outro problema.
No teatro,
crucificaram o ator.
Não há problema,
não tenha dó,
num ato só,
roubaram a cena.
Decrépito poeta
Enquanto o sol
se põe ao entardecer,
meus olhos podem ver
o que não viam.
Meus pés descalços
pisam a areia fria,
enquanto o mar
parece me dizer:
- Bom dia.
A lua, à noite,
na distância se perde,
como os meus versos
pelo tempo,
dia-a-dia.
Entre meus dedos
sinto aflorar a minha poesia,
apesar de meu sorriso
já não parecer o mesmo.
Minhas palavras
na garganta enrouquecida,
mostram mais sabedoria
e menos segredos.
Decrepitude,
que aos poucos me limita.
Minha última atitude
é olhar à janela
e ver o mesmo sol
que continua a se pôr
no fim do dia.
Onde me cabe?
Onde me cabe
no golpe do cutelo?
Onde me cabe
na batida do martelo?
Onde me cabe
no inferno da caldeira?
Onde me cabe
no batear da peneira?
Onde me cabe
no praguejar do coveiro?
Onde me cabe
no atraso do ponteiro?
Onde me cabe
nas treliças do confessionário?
Onde me cabe
nas mudanças do cenário?
Onde me cabe
nas verbetes do Aurélio?
Onde me cabe
na lâmina do bisturi estéril?
Se não me cabe
nas palavras do profeta,
enfim me cabe
na caneta do poeta.
O gato
Sobre as patas,
não há falas que incomode.
Na areia,
deixa o molde.
Não se importa
se o mundo não tem paz.
Sua paz
é o pé da porta.
Entre pernas
não se deixa iludir.
O telhado
é a sua cobertura.
Não se importa com a altura
a subir.
Sua presa,
quando presa, lhe apraz.
Não tem hora.
Os carinhos da senhora,
pede mais.
Não lhe impõe questões, a vida.
O seu beco-sem-saída
é apenas sua morada,
sua casa escancarada
para a rua.
Maluco
Uma tristeza estampada
por trás de um tolo sorriso.
Minha fala
não diz nada.
Não assumo compromisso.
Para mim
a morte é fruto
de uma árvore desgalhada.
No silêncio
não sou luto,
sou um maluco que se cala.
Dedilhar
Dedilhei na vida
cifras de boa conduta,
porém a melodia
não soou tão bem.
Não peço a ninguém:
- Por favor, ajuda!
E quem me acusa
sabe muito bem.
Não conto vantagem.
Nem canto em praça,
meus dotes.
Não guardo em potes
de mel,
meus erros.
Embaixo de arcos,
meu medo
é ser descoberto.
Não sou tão esperto,
nem tão preguiçoso.
Nos versos da vida,
sou letra difícil de se traduzir.
O som que abriga
o meu coração,
sonata que não
consigo ouvir.
Golpe
O meu golpe
de mão,
fortuito,
suas lágrimas.
O meu mundo
sem chão,
minhas lágrimas.
A procuro
sobre o colchão,
entre meus dedos.
Perco a fala
e o coração.
O meu medo
é que a ilusão
perca a alma,
e que me sepulte
em vida.
A minha esperança,
o seu perdão.
Assim, eu serei
entre os cadáveres
o mais feliz.
Uma voz
Teme sua alma,
atirada em chamas,
queimar até a raiz.
Por ser radical
quer ser imortal.
Quando alguém o chama,
uma voz lhe diz:
- Percorri todas as distâncias
que o mundo quis.
Encontrei-me só,
e o nó
na minha garganta
desfez-se no riso
de um homem infeliz.
Impune
Chego a acreditar
em sonhos.
Mas minha alma
só me leva
à realidade de meus passos,
que pelo acaso
não são frutos de minha vontade.
Meus impulsos
são argueiros
nos olhos alheios.
Mantenho meus pulsos
acorrentados à natureza humana
em delírio.
Sou tão frágil
ante meus erros
quanto ante meus desenganos.
Sou tão falho
como os atos
que me deixam
impune.
Gente
Ah! Mundo quente.
O poeta está triste.
Será que por aí existe
um lugar que não tenha flor?
Eis que um mundo
sem amor,
não seria diferente.
Quanto mais conheço gente,
mais descrente
e triste
sou.
Quadro de nós
Entre as páginas
do livro vida,
flagra e perfídia,
pranto e pudor.
Enquanto colhe
tão sutil flor,
expõe-se a um corte,
abre ferida,
espinho de rubra cor.
Talvez as lágrimas
superem a dor sentida.
Quem sabe, às mágoas,
perdoe o amor.
Último ato
Pelos flancos
direito e esquerdo,
foi encurralado
à sombra do muro da prisão.
Teve apenas
o longo pescoço
destacado,
com o resto do corpo
pendurado
na árvore do pátio
da prisão.
Sua mão
mal tocava na vida.
Os seus pés
não tocavam o chão.
Não sabia
se era inocente.
Se culpado,
mais uma condenação.
Talvez fosse
um ato ensaiado
de um ator
em sua última
encenação.
O muro
Os tijolos
a amostra,
onde havia uma pintura.
Colorida criatura
que ainda hoje, separa
a minha casa
da sua.
Pelas frestas
se repara
que os anos se passaram.
Nos tijolos que restaram,
já não tem a mesma altura.
Esquisita estrutura
que espia o telhado.
No quintal abandonado
mantém a mesma postura.
Eis o muro,
que mistura
o concreto ao abstrato.
O cultivo
Não cultive flores
no jardim alheio.
De braços abertos,
muitos já morreram.
E quem deixou de desejar?
As mudas transplantadas com carinho
na poeira do caminho,
sem ninguém para regar,
murcharam entre o trânsito escasso,
retrato de uma luta desigual,
enquanto o bem e o mal
não param de sorrir.
As queixas que não consigo ouvir,
intensificam-se
na distante e sedutora noite.
Nos barcos, os braços lutam contra o vento.
Em cada cabeça, o pensamento:
Será que amanhã irei voltar?
Então desponta o sol por trás do mar.
Bem-vindo ao novo dia, diz o sol.
Não sei se de tristeza ou de alegria,
se a dura realidade ou se o sonho.
Estou nascendo pra testemunhar,
que a vida é a razão deste planeta.
Só peço ao mundo que nunca esqueça,
está em suas mãos, basta cuidar.
A lâmina que corta sem parar,
pra separar as flores e as pessoas,
se torna cega,
tão cega
quanto quem jamais enxerga
que as flores cultivadas no jardim
são para um fim.
No fim,
um campo aberto pra pisar.
As mãos já começaram a cavar
a mesma terra que um dia há de comê-las,
não há como detê-las.
Não sou suporte para levantar bandeira,
falar asneira
é outra forma de falar.
Talvez seja melhor eu me calar.
Talvez, não é certeza,
e com certeza ainda tenho o que dizer.
O homem não escolhe seu poder.
Mas pode escolher o que plantar?
Alguns hão de voltar,
outros jamais iremos esquecer.
De volta, ainda sozinho,
diante das mesmas flores no jardim de seu [vizinho,
notou que mesmo de braços abertos
não há ninguém por perto
para abraçar.
Correr do mundo
e no fundo
se entregar a timidez,
e matar de uma vez,
aquele que talvez
possa sonhar.
Cultive cada um, o seu jardim.
Quem sabe com as flores
possam enfim,
unidos pelas cores,
o mundo, replantar.
Violação
Entre calos,
o dia, rápido amanhece.;
quando empalidece,
ainda estamos lá
com as mãos fechadas.
Nada nos aborrece
dentro do cercado,
mesmo estando cansados
de tanto plantar,
e não termos o poder
de poder colher.
Somos recolhidos
em um caminhão.
Ao olharmos o chão,
vemos então passar
veloz como o vento,
toda a nossa vida.
O pior do mundo
é não ter medida.
Poucos têm de tudo.
Tantos sem comida.
Encaixe
O seu corpo
delimita minha vida.
Suas curvas
desinibem minha alma.
Sou um anjo
que percorre o inferno.
Sou eterno
num desejo que se acaba.
Em sua luva
se encaixam os meus dedos.
Nosso medo
talvez seja nossa falha.
Sinto a fúria transformada em gemidos.
Nos seus gritos,
um demônio que se acalma.
Um espinho
encravado em uma flor.
Nossa dor
aliviada em prazer.
Eu, você,
duas formas de se ver
o amor.
Seguidores
Talvez a multidão me siga
em silêncio,
ou simplesmente me apedreje
em algazarra.
Um passo firme
nessa antiga estrada,
pode ser a minha glória.
Um passo em falso,
como conta a história,
talvez seja o meu fim.
Quem sabe, eu serei levado a sério,
ou enfim,
farão com que eu seja uma piada.
A minha cara
talvez seja engraçada,
mas minhas dúvidas
são como flores murchas
que permanecem no jardim.
A dama em chamas
Soberba dama,
que triste, clama,
que arde em chamas,
que me faz amar.
Vou adorar
morrer em braços quentes,
dama de alma ardente,
não quero me afastar.
Empalideço
tal qual a própria lua
que incendeia a rua
em meio a solidão.
Um coração
que minha mão apalpa,
e queima como brasa
por dentro do roupão.
Dama,
em chamas amanhece,
da noite enfim esquece
e continua a me queimar.
Ilhado
Numa ilha deserta,
em minhas mãos um livro.
Não sei como houvera
de estar ali comigo.
À sombra de uma palmeira,
começo a folhear.
Sentado na areia,
eu leio devagar.
Um poema me intriga,
talvez por minha situação.
O ronco na barriga,
sem ter um simples pão .
Eis que o poeta diz:
“Aqui neste lugar
estou muito feliz,
este é o meu lar.
Quando amanhece o dia,
café a esquentar,
tem queijo na vasilha,
tem pão pra se cortar.
No almoço, feijão verde,
uma bela melancia,
depois, sono na rede
e uma casa vazia.
À tarde adiantada,
como cuzcuz com leite,
carne-de-sol assada,
de volta para a rede.
Durante a noite fria,
debaixo do lençol,
uma doce companhia
que esquenta como o sol”
Eu fico indignado
com essa diferença.
Na mão, livro fechado.
Na cabeça, impaciência.
Não acho que é certo.
Que poeta cruel,
enquanto está no céu,
estou nesse inferno.
Aflição
Não faço emenda
em um verso errado.
Não quero paga
pelo poema.
Não vejo cores
em seu jardim ceifado,
com suas flores de encomenda.
Aceno a mão
para um adeus negado.
Doce ilusão,
querer que me entenda.
Extensa ponte.
Você do outro lado.
Talvez não me encontre
e se arrependa.
A sua dor
será por ter pulado,
por um amor
que sempre foi
uma lenda.
Entre o bem e o mal
O bem que me quer.
O mal que me perturba.
Entre o inferno e o céu,
a fé.
Sob as tábuas de Iavé,
a dúvida.
Pelas ruas,
sem saber quem é.
Entre linhas e gráficos,
a curva.
Sob a claridade do sol,
a sombra,
como à noite,
em face da lua.
O mal que me quer.
O bem que me culpa.
Observo à minha volta
O poeta passeia pelas ruas
numa velha cidade
que assombra,
por debaixo das árvores
que ele sonha
ter um dia plantado.
O poeta observa calado,
em cada face
que leva seu mistério,
uma expressão de loucura, de remorso,
de sofrimento e de tédio.
O poeta é apenas um anônimo,
que sentado
nos degraus de um sobrado,
é apenas um homem assombrado
com os dias de hoje.
O poeta cumprimenta as pessoas
que transitam numa pressa corriqueira
e assim descem a vida numa ladeira
de tempo perdido.
O poeta percebe o colorido
de um mundo rabiscado em preto e branco,
onde as dores
são feitas de pranto
e os amores
são flores sem jardim.
O poeta assim
desaparece,
um alguém que dobra a mesma esquina.
Simplesmente o assimétrico lhe fascina.
Todo fim é apenas o reflexo,
no espelho, de um começo .
O misto
Aponta para mim,
na distância sem fim,
a poeira no caminho.
-Lá vem Raimundinho,
que enfrenta sozinho
o chão dessa estrada.
Pela madrugada,
a lua ajudava o velho farol.
O misto seguia
e me espremia
dentro do lençol.
Quando amanhecia,
até parecia
que o mato era feito
d’aquela poeira.
A estrada, uma esteira,
que às vezes, estreita,
espremia o misto.
Na chapada, o risco.
Diante do abismo,
meu peito apertava.
Quando é inverno,
dizia um velho,
o mesmo inferno,
de cara mudada.
O misto atolava,
eu me divertia.
Tudo parecia
uma grande aventura.
Da minha estatura,
eu observava
a estranha figura
no meio da estrada.
Então eu pensava:
Eis a criatura
que sempre me leva
de volta pra casa.
Seu futuro
Seria eterno
em sua má conduta,
em sua intensa luta.
Seu mundo
seria um sorriso discreto,
disfarçado de preconceito.
Seria o pior dos homens,
ou poderia ser o eleito
e tornar-se uma lenda.
Sem saber
faria parte de um poema
que não citaria seu nome
em nenhum verso,
somente seu universo
de atitudes e maquiavelismo.
Seria bem lembrado
pelos seus maus feitos,
ou pelos seus estreitos laços
com a humanidade.
Amor urgente
Qual flor
que desabrocha no inverno,
amor eterno,
reflete nas retinas,
um brilho sedutor.
À noite,
teu perfume,
como de costume,
permanece junto a mim.
A intensa cor
que vejo no jardim
transborda em teus lábios,
no batom,
num belo tom,
vermelho carmim.
É mágica
tua imagem no espelho.
Reflete por inteiro
e sem pudor,
teu corpo
que deixou
as roupas que a cobriam moralmente,
caírem lentamente,
tal qual as pétalas
d’aquela mesma flor,
tornando assim,
urgente o nosso amor.
Aos olhos da fome
Ontem,
a fome fitou-me com seus olhos esbugalhados,
através de uma criança.
Pedia-me que eu a saciasse.
O que eu poderia fazer,
se ela estava em todos os lugares?
Aos olhos da fome
sentia-me culpado.
Achava-me tão inocente
que não percebia que estava enganado.
A fome fala todas as línguas,
se expressa através das retinas,
não manda recado,
não pede perdão.
A fome é uma guerra vazia,
um monte de vítimas,
nenhuma explosão.
A fome,
em seu eterno silêncio,
nos fere por dentro
se ousarmos fitá-la.
Diante de nossa frieza,
a fome é prosaica,
se torna banal.
Diante de tanta fartura
a fome é loucura,
é irracional.
Confesso
Tocar teu rosto
e sentir a tua falta,
é engraçado.;
já que estás aqui, ao lado.
Meu corpo sente
a aflição de tua alma,
e minha alma
o arfar do corpo ardente.
O teu sorriso
tem pureza e malícia.
Doce magia,
quando eu a vejo sorrir.
Tenho uma promessa a cumprir
em minha vida,
viver somente para ti,
minha querida.
Nas poucas horas
que estamos separados,
com outras atividades,
eu te confesso, sinto saudades.
Por mais que o tempo
enfraqueça o coração,
desde o primeiro momento
é intensa essa paixão.
Perdição
Eu abro a velha porta
de uma noite perdida.
Urino em uma bacia
no chão de terra batida.
Deito-me em frios braços.
Ainda sinto o mormaço
da terra mal aguada.
De manhã volto pra casa,
ainda há cheiro de amor
no suor de uma ressaca
causado pelo calor.
Grudada em minha roupa
está a minha perdição.
Numa noite meio louca
depredei meu coração.
Não abro mão
Não me peça
para ir a guerra
e perder em um só dia
o que a vida me daria
para viver
uma eternidade.
Não é essa,
a minha guerra fria.
Não abro mão
de minha liberdade.
Quem diria
que na minha idade
eu prezasse tanto a vida,
que na certa
morreria de saudade.
Ilusão II
Frases soltas,
onde elas estão?
Procuro na resposta
uma razão.
Sem dúvida,
com certeza eu preciso pensar mais.
Além do mais,
posso assim,
encontrar parte de mim
que mais parece ilusão.
Mundo paralelo
Minha mão estendida a pedir esmola.
Seu filho na escola,
à espera de um mundo mais humano.
As nossas chances são poucas.
As nossas vozes estão roucas.
Eu deitado sob um velho banco,
sob o efeito do álcool,
um alucinado sono de uma mísera escolha
pelo dedo indicador de um deus que me [acusa por ser racional.
Uma criança chora de fome,
enquanto os tolos momentos são festejados
[com brindes e músicas teatrais.
Para nós,
pobres animais
que labutam por toda a sua vida por um [futuro melhor
e acabam como um parasita intestinal
que à procura de comida
se digladia em víceras alheias,
saúde!
A nossa plenitude
acaba no céu da boca de um herbívoro
que mastiga indefinidas vezes a nossa nova forma.
Nada é tão rude quanto o desenvolvimento tecnológico,
que sobre a égide do pensamento humano
comercializa as imagens da miséria planetária.
Somos internacionalmente conhecidos,
seriamos reconhecidos por nossos trapos
e nossos olhos de ressaca,
em qualquer lugar do mundo moderno.
Em rede, não tiramos mais um cochilo,
ao contrário, nos mantemos acordados.
E sob nossa vigília
estão nossos momentos de glória,
a nossa história é reprisada em rápidas [cenas do cotidiano.
Talvez estejam nos assistindo agora,
enquanto muda a sua roupa
ou mesmo quando ainda está no banho.
Somos ambíguos,
planejamos uma viajem de férias à lua
e nos matamos na rua
por uma simples dose de ódio.
Quando queremos ver, acendemos as luzes,
quando não,
fechamos os olhos.
Gostamos de marcar nossas covas com [cruzes,
elas representam o nosso remorso.
Os nossos bustos são para ativar nossa [memória,
não são para aparar dejetos de pombos,
embora pareça o contrário.
Criar canário em gaiola é coisa do passado,
eles agora são empalhados.
Eu ou você
poderíamos correr em volta do planeta,
descalços, semi-nus, sem comer ou beber.;
seriamos manchetes nos jornais,
e além do mais,
teríamos os nossos nomes no livro dos [recordes.
Há quem viva em função de uma causa,
e que nada,
nada mesmo, mudaria seu caráter,
a não ser a cadeira do poder.
Eu não quero ouvir dizer,
basta os que sabem que são tolos
e que sábios querem ser.
Abotoem as braguilhas,
dizem os homens de fé,
com a fé em pé de guerra.
Atrasaram meu relógio,
com a bela desculpa de que eu chegaria muito cedo.